Dados da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (CODEPLAN) apontam que o maior índice de pobreza se encontra na região administrativa de São Sebastião. Aproximadamente 3050 famílias vivem com renda abaixo R$154 por mês
Nenhuma definição, nenhum número…Nem os dados de endereço nem as palavras dos que vivem podem dar conta de descrever. Os dias são mais difíceis que o comum na Vila do Boa, bairro de São Sebastião, a 21 quilômetros do centro de Brasília. Faltam água, luz, asfalto, mas não sonhos sob os casas de tijolo. Nem nos casebres de madeirite. A falta do dinheiro não significa ausência de dignidade. Os que vivem ali dizem que não saber o que é “bom” não é fazer o ruim. E viver para trabalhar e ser melhor não é o mesmo que ser infeliz. Mesmo perto da capital, tudo isso ocorre distante dos olhos da maior parte da população. Invisível no lugar que tem o maior custo de vida do país. Longe dos ternos e das gravatas. Onde a maioria das promessas são entregues, não cumpridas e esquecidas. Hoje, a região administrativa de São Sebastião possui o maior índice de pobreza do Distrito Federal, segundo última pesquisa da companhia de planejamento local (Codeplan). Na Vila do Boa, um dos lugares mais pobres da cidade, a carência e a luta se encontram.
Conquista
Foi há 22 anos, em 1993 que tudo começou. No interior do Maranhão nascia um menino que precocemente ia se tornar um homem que lutaria por todos os seus objetivos desde muito cedo. O ajudante de serviços gerais Gustavo de Souza Mesquita, maranhense de 22 anos, chegou a Brasília em 2011. Morou, antes, quatro meses em São Sebastião e outros tantos entre Goiás e no Maranhão. Até que certo dia lá em sua cidade natal recebeu uma ligação que mudaria a vida. Os sonhos dentro do coração já não cabiam mais no interior, e foi quando chamou a mulher dele para voltar à capital do país para realiza-los juntos. Como todo início foi difícil, mas nada que a força de vontade não fosse maior. “Foi bem sofrido, mas graças a Deus a gente conseguiu a nossa casa. Hoje só temos que contar alegria”.
Gustavo trabalha noite sim e noite não no Complexo Penitenciário da Papuda. O descanso durante o dia fica para depois. Ele divide o tempo entre algumas obras de construção e ajudar um artista plástico com outras obras, ao desenvolver projetos sociais para os pequenos da Vila do Boa. Pensar em si é muito pouco. “A gente vai dar aula para criança, tentar tirar o pessoal do mundo do crime”. Gustavo não pensa em mudar dali. Portas abertas, clima calmo, bem semelhante ao do interior fazem ele se recordar das raízes. Mas só saudade mesmo, Maranhão, agora, só para visitar. “Aqui é o lugar que escolhi para minha família. E com fé em Deus vou trazer meu pai, minha mãe e meus irmãos e colocar tudo aqui dentro”. Para Gustavo, só faltam eles.
A casa cresce junto com os sonhos. Graças à ajuda de membros vicentinhos da igreja local, construiu quatro cômodos onde vivem sete pessoas. O menino nordestino cresceu e hoje é pai de uma garota que ainda vai ter muito orgulho desse homem que chefia o lar. Junto com a mulher trouxe mais dois enteados que ajuda a criar. A sogra morre de orgulho do genro que tanto luta pela felicidade juntamente da filha. Com o tempo, as feridas de um começo difícil são curadas pela realização de conseguir ganhar a vida aos poucos.
“Eu estou bem graças a Deus. Tenho meu serviço, meus filhos, minha saúde que é o que importa e vamos tocando pra frente”.
Princípio
120 mil réis. Esse foi o preço das terras que hoje é a Vila do Boa. Na década de 70, um homem cometeu alguns crimes em Brasília e necessitava ir embora, mas precisava vender todo seu terreno para se livrar de uma vez por todas das coisas ruins que o cercavam. Foi então que ofereceu para o senhor lavrador Boaventura da Silva, hoje com 78 anos de idade. No começo resistir foi a melhor opção, a falta de dinheiro impedia a grande negociação. Por fim, com um preço bom e a necessidade de seguir a vida sem interrupções, Boaventura fechou negócio e para conseguir pagar, fez sociedade com o dono de um ranchinho nas redondezas. Em três meses de muito trabalho, o senhor que nada tinha pagou a parte dele e a do sócio. Nem o mais otimista poderia imaginar que aquele ser simples, que nunca teve nada, era dono de tantos hectares de terras.
“Deus nunca desampara seus filhos, paguei tudo”. Boaventura dividiu as terras entre os dez filhos, frutos de um amor que terminou por um descuido e o levou para longe da primeira conquista. O tempo passou e naquela imensidão de terreno outras pessoas passaram a morar. Quando voltou, não encontrou aqueles que ajudou na criação só, a Vila do Boa (em referência ao apelido do morador) já havia ganhado forma. “Eu não posso falar como começou, eu não estava aqui quando começaram as construções (que tornaram o lugar como é hoje)”. Acostumado com outra época, certas coisas ainda assustam o pensamento conservador. Respeito “Acabou o respeito tudo. Filho não respeita pai, pai não respeita filho”. E aos 78 anos o baiano de Barreiras vive mais fora do que dentro do lugar que leva seu nome. “Gosto daqui, acostumei. Mas, eu não paro em casa. Gosto de andar. Goiânia, Mato-Grosso, viajar”. Há mais de 65 anos sem voltar as raízes, ele tem convicção que o sangue da família ainda corre por lá. E ai de quem perguntar se ele mora sozinho “É eu e Deus”.
Determinação
Tímida, com seis filhos e feliz. Deitada na rede o balanço lembra como as coisas sempre foram e voltaram. Maria da Pureza Ferreira, idade, chegou à capital há 30 anos, trouxe consigo muita vontade de mudar de vida. É um passado simples, particular, próprio. Lá do Piauí veio a vontade de crescer, de querer ser mais. A maioria dos filhos já são casados e moram em outro lugar, estudaram até um certo tempo e hoje só a caçula vai à escola. Com as coisas sempre difíceis, o que mais pesa para Pureza é o aluguel.“É um dinheiro que não tem retorno”.
A Vila do Boa acolheu a família de maneira bem harmoniosa, apesar de no início não ter parecido a melhor opção “Você chega a primeira vez e estranha, depois vai se adaptando”.
A doméstica Nilcimar Salazar Ferreira vive de passagem no Distrito Federal. Três ou quatro meses é o tempo necessário para ela trabalhar no Pará ou em São Paulo. É assim que ela ganha mais e as paredes do seu sonho crescem. “Ave Maria, não tem lugar melhor pra morar, eu acho é bom”, afirma sobre morar no local. Apesar da paixão pelo lugar, os problemas não se intimidam em aparecer. A falta de água chega a durar três dias seguidos. Em julho, o barraco da filha, também na Vila, pegou fogo e destruiu tudo. “Queimaram cinco barracos lá né? E um deles era da minha filha. Só que ninguém sabe ainda, ela estava dormindo e sentiu o cheiro de queimado. Ainda bem que ela acordou rápido”. A perícia nunca chegou à conclusão sobre o ocorreu. Entre as prioridades e necessidades, ajudar a filha a construir um novo lar é a mais importante. São duas mulheres diferentes, mas são duas mães. Elas buscam para os herdeiros coisas que nunca tiveram oportunidade de ter. E é com dignidade, que a luta do dia a dia forma seres humanos cada vez melhores.
O Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) de São Sebastião informou que não há trabalhos na região e não tem previsão de futuros projetos para a população. Na Vila do Boa, apesar das limitações, há gente que se identifica como feliz. O conceito de área mais pobre na cidade não se encaixa para os moradores. Apesar de ser parte importante da vivência de cada um, o valor material se torna coadjuvante nessa história que é a vida. Para eles, agradecer o que tem é mais justo do que pedir o que falta. No meio da poeira do lugar, de casas sem portão, ambiente de interior, sem emprego fixo, esperanças raras, os moradores garantem que, ainda isolados ou invisíveis, é dura e nobre a batalha de viver na Vila do Boa.
Confira no link abaixo mais detalhes sobre essa história
Arte na Vila do Boa
Por Júlia Campos e Nabil Sami