Uma terra chamada Fascinação

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6h16. Pelas fendas entre as tábuas, que juntas formam barracos erguidos com restos de madeiras, possivelmente, sobras de grandes construções de Brasília, adentram os primeiros raios da manhã. O cantar do galo, que substitui o barulho tumultuoso dos carros há 20 quilômetros, também cumpre a função do despertador há dois anos e três meses. O acampamento Fascinação, nome que recorda a sensação dos trabalhadores ao chegarem ao local, “abriga” 29 famílias sem terra. Dessas, 21 são retirantes nordestinos. No total, somam 76 pessoas, sendo 15 crianças. A propriedade localizada na ponte alta sul do Gama, região administrativa do Distrito Federal, pertence à Agência de Desenvolvimento do Distrito Federal (Terracap). Em 2014, foi destinada a reforma agrária pela Secretaria de Agricultura, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da unidade federativa. Contudo, os acampados se preparam para a pior notícia: somente seis famílias permanecerão neste terreno.

São 29 barracos em um território de 300 metros. Esse é apenas um acampamento, microcosmo do abismo social que exemplifica a realidade do país em que mais de 90 mil famílias permanecem acampadas. O Brasil está classificado como o segundo país no mundo em concentração de propriedade rural, onde 175,9 milhões de hectares são improdutivos segundo o Atlas da Terra Brasil 2015, pesquisa feita pelo CNPq/USP. No DF, são 10 acampamentos (terra ainda não regularizada) e nove assentamentos (espaço regularizado). Essas famílias compõem uma realidade invisível para quem mora no Plano Piloto, zona nobre da capital. A notícia que chega do acampamento não tem barulho. Por lá, ninguém atrasa a conta de luz ou água potável, já que a vida nos barracos viola todos os direitos básicos e não permite aos moradores o acesso a água encanada ou fiação de energia elétrica. No anseio de ter onde plantar, direito predito na Constituição Federal de 1988 sob Lei Complementar 8.634/93, os trabalhadores rurais se deparam diante circunstância de esquecimento, como se o motivo das lutas que travam fosse um mero favor prestado pelo Estado.

A rotina dos acampados se inicia junto com o cantar do galo. Acordam, preparam o café, partilham e aproveitam o “sol baixo” para começarem os trabalhos. O primeiro afazer das famílias é jogar o milho para as galinhas. Os moradores têm pequenos galinheiros atrás das casas, de aproximadamente 2 metros quadrados. Mais ao fundo, 10 dos 29 barracos têm construído um cercado de tela que prende crias de suínos. São alimentados com as frutas e verduras que não podem ser postas a mesa.

Proveito da terra

Feijão, milho, abóbora, mandioca, verduras e hortaliças. Além de frutas, essas são as especialidades do local. Representam o trabalho manual que alimenta as famílias da comunidade. São produtos colhidos da terra por mãos calejadas de trabalhadores que estabelecem com o solo uma relação de cuidado e alteridade. “A terra é herança a ser compartilhada e respeitada. É muito gratificante você nascer da terra, viver da terra e se alimentar da terra”, expressa João José dos Santos. Sorridente e comprometido com o acampamento, o camponês, que deixou o Piauí nos anos 1970, está à procura de trabalho. Hoje, almeja regressar ao trabalho com o campo. “A minha maior vontade é poder plantar e colher, sabendo que foi com o suor do meu rosto que consegui. Não tem preço que pague poder comer o que eu mesmo plantei”.

Servido como pamonha, bolo, ou ainda cozido na espiga. Para os moradores do acampamento, o milho é o serviço que exige maior atenção no primeiro semestre, juntamente com o feijão. Em frente a cada barraco a produção verde já está com os pendões formados em março. O trabalho dos acampados com o grão originário na América Latina é diário. Eles compreendem a necessidade de manter a plantação sempre limpa, livre do “mato” e de ervas daninhas.

O saco de feijão branco colhido na primeira safra da família encontra-se espalhado sobre a mesa posta em frente ao barraco. Maria Geralda cata e separa com a ajuda de duas amigas, enquanto gargalham ao recordar de quando iniciaram o plantio. “Plantei dois litros e colhi um saco”, sorri. Os grãos colhidos por elas são mais do que alimento. Representam o resultado de uma trajetória de alguém que saiu do campo, batalhou na cidade e hoje deseja retornar para o lavrado da terra. “Cuido da terra e ela cuida da mim. Quando era criança, eu e 13 irmãos fomos criados na lavoura e ela nos alimentava. Isso nos fez pegar amor e é por isso que hoje sonho com um pedacinho de chão”, recorda Geralda, sem tirar os olhos dos grãos. “A terra pra mim é tudo, faz parte de mim e eu faço parte dela. Sou filha da terra e para ela voltarei”, gargalha Maria Geralda da Silva. Com 55 anos, projeta no assentamento a sua realização de vida. “Meu sonho é ter um pedaço de terra para poder plantar, criar minhas galinhas. Eu gosto de cuidar da terra”.

Dupla Jornada

Para as famílias, adotar uma dupla jornada de trabalho é condição para garantir a permanência na luta pela terra. No acampamento, as lideranças são femininas. As mulheres são responsáveis por dirigir toda a luta dos acampados. Por isso, geralmente os homens são os encarregados por procurarem renda extra fora do local. Além de ajudarem no cuidado da terra, passam a trabalhar na cidade com “bicos”. “O sertanejo não desiste nunca”, assinala seu Raimundo.

Edicarlos Eneias Guedes, homem de voz calma, é exemplo desta realidade. O acampado trabalha no ramo da construção civil. “Não teria condições de viver aqui somente da terra, nessas situações que estamos”, assegura. O paraibano, que veio para a capital ainda criança, é responsável por dois sobrinhos e pela mãe, que permanecem no acampamento e se responsabilizam pelo serviço agrícola. Edicarlos é homem de esperança. Acredita que a dupla jornada compensará. “O trabalho no campo junto com serviços urbanos dão certo. Não podem dizer que não somos lutadores”, exclama enquanto direciona o olhar para os quadros religiosos pendurados na parede, como quem busca referência nas figuras dos santos.

Os trabalhadores percorrem aproximadamente 10 quilômetros para chegar à cidade. No Gama, buscam complementar o estoque do que colhem. Com a mochila de ferramentas sobre os ombros e devido à região não contar com transporte público constante, resta a eles caminharem sempre quando não passa a incerta carona. O ônibus percorre próximo da rua que dá acesso ao acampamento somente três vezes ao dia, manhã, tarde e noite.

Enquanto os homens trabalham na cidade, as mulheres cuidam da terra, no campo. A rotina de trabalho dos acampados é marcada pela dificuldade. Cultivar o solo vermelho é o grande desafio. Sem poder contar com irrigação, a terra do cerrado torna-se de difícil produtividade. “Não se tem uma estrutura que permita a subsistência. A gente trabalha no braço”, denuncia a coordenadora do acampamento, Karla Gontijo. Para compensar a falta de chuva na época de seca, os inquilinos daquela terra se mobilizam em mutirões para buscar água na barragem improvisada a 700 metros do acampamento. Com galões de cinco litros carregados em cima do carrinho de mão, fazem trabalho de formiguinha. A vida comunitária gera possibilidade de permanência no acampamento. A cultura da solidariedade é o ponto marcante do local. “No Fascinação um cuida das coisas do outro. Somos família”, ressalta a líder.

Junto com o problema de irrigação, a falta de auxilio diante das dificuldades do solo dificulta o trabalho no campo. “Não podemos contar com técnicos que auxiliem nos métodos de correção do solo. Nossa terra tem uma elevada acidez e não temos como tratar esse problema”, lamenta Karla, ao relatar as dificuldades com a terra. “Nem mesmo podemos aplicar qualquer quantidade de calcário já que não temos como conhecer a terra, saber do que ela precisa para ser mais produtiva”.

18h43. O sol se põe. Os moradores do acampamento se recolhem para os barracos. Acendem suas lamparinas alimentadas por óleo diesel. Mesmo os que têm geradores, utilizam o candeeiro. “O gerador é para dia de festa”, comenta Karla.  Depois do dia de convivência com a natureza pelo cultivo da terra, chegou o momento de compartilhar com a família. “Como foi o dia na escola?”, pergunta a mãe. A filha, de aparência cansada, acena com a cabeça ao parecer que tudo ocorreu bem. Com a noite, o dia se encerra em clima familiar. Todos dormem. Quando o ponteiro do relógio marca 10 horas da noite, não se avista mais luz no acampamento. As 29 famílias permanecem no local, sem muitos direitos. Amanhã acordarão e repetirão a mesma rotina de hoje, na esperança que chegue o dia em que 23 delas partirão para que as outras seis se aloquem nesta terra de luta.

Pás, enxadas e esperanças

7h13. No horizonte que une o anil do céu com o verde das três serras que rodeiam o acampamento, é possível notar a fumaça que sobe de intercalados barracos. A vida bucólica, do campo, é característica marcante do lugar.

Na casa da família Gontijo, as panelas penduradas nas paredes, algumas sobre tábuas que improvisam prateleiras, dividem espaço com as bonecas das filhas do casal. No local, também está o berço da Ana Alice, o bebê que nasceu no acampamento e está com oito meses de vida. A lenha ainda é o combustível para o fogão de barro construído na parte externa, que junto à pia e à mesa formam a cozinha. Ao lado do fogão estão os instrumentos para cultivar a terra. Sem mecanização do trabalho, o modo de produção dirigida pela agricultura é feita com pás e enxadas. Estes instrumentos plantam, cultivam e colhem sem nenhum tipo de agrotóxico. O orgulho de cuidar da terra de forma que não a agrida é compartilhado por todos os moradores. “Respeitamos o tempo da natureza. Quando atinge a natureza, nos atinge”, ressalta seu Raimundo Emanuel Arruda. Com XX anos, é o morador mais velho do acampamento.

A matriarca da família Gontijo e líder da comunidade, Karla, 36 anos, acordou com o beijo da filha ao se despedir para ir à escola. Aqueceu a água e passou o café que exala longe seu aroma. Cortou o bolo feito pela vizinha em fatias gordas. “A vida comunitária é forte por aqui”, lembra a militante, ao explicar a procedência do alimento que, juntamente com pão e margarina, dão sustância para os trabalhos da manhã. De voz mansa e personalidade cautelosa, Karla faz do acampamento motivo de vida. Para ela, os acampados são “filhos que, pela idade, poderiam ser pais”. “Eu luto pelas pessoas. A terra vai ser uma consequência que trará bem estar a elas”, comenta ao dar sentido às batalhas.

Com dois bancos, quatro cadeiras e três assentos improvisados, o ambiente externo onde Karla toma café enquanto amamenta a filha é o espaço de convivência da família. Pela quantidade de lugares para sentar, permite entender que este recinto é o mais visitado de todo o acampamento. Junto da líder da comunidade, senta-se o esposo. Givanilso Gontijo de Deus, 38 anos, está presente junto às quatro mulheres da casa somente uma vez na semana. Enquanto Karla milita pela reforma agrária, ele trabalha para garantir a maior parte da renda familiar. Ainda não é possível sobreviver do que plantam. “Viajo semanalmente para a Bahia e para São Paulo. Sou motorista de ônibus”, sorri ao mostrar a fenda entre os dentes, enquanto busca referência no olhar da mulher.

Vida comunitária

Ao reforçar o espírito comunitário do acampamento, Raimundo chega para compartilhar o café. Extrovertido, é conhecido na comunidade como aquele que planta para dividir. Em sua propriedade, o agricultor, de 73 anos, faz questão de mostrar os pés de maracujá suspensos atrás da casa. Enquanto apresenta a produção, aproveita para arrancar as plantas indesejadas. De estatura média, pele queimada pelo sol e com apelido de “velho”, Raimundo foi o primeiro a chegar à região demarcada para o futuro assentamento. “Eu medi todas essas terras, metro por metro, de cada barraco”, ressalta ao apontar os terrenos de cada família com precisão cirúrgica.

No barraco ao lado do Raimundo, mora a agricultora Carmosina Ciqueira, de 63 anos. Conhecida na comunidade pelos pratos que cozinha, saiu da roça com 13 anos para buscar atendimento médico na capital. “Vocês estão vendo que no meu rosto tem uma cicatriz?”, aponta ao passar o indicador na parte afundada da face. “Ela é resultado de um tumor que tive na mandíbula. Por isso vim para Brasília e aqui estou. Há males que vem para o bem”, comenta.

Em 1966, a moradora do campo deixou o interior de Goiás e se instalou em Brasília. Para chegar ao planalto central, precisou vender o único capital que tinha: quatro cabeças de gado. “Após a cirurgia, passei a trabalhar como doméstica. Sofri para danado, com minhas patroas gritando. Minhas chefes me tratavam um pouco grosseiro, mas eu fui aprendendo. Eu pensava que o povo da roça não iria conseguir fazer as coisas direito em um apartamento”, comenta Carmosina, ao lembrar do primeiro ano na capital federal. “Mesmo assim eu disse pra mim: vou ficar aqui para trabalhar e arranjar dinheiro pra comprar o meu gado. Batalhei, mas até hoje nunca consegui dinheiro pra comprar esses gados. Aqui ganhei nove filhos”.

Na parede de entrada do barraco de Carmosina, encontram-se inúmeras imagens de santos. O quadro de Nossa Senhora Aparecida enfeitado por terços, junto à imagem de Jesus, manifesta a sua fé. É possível ouvir o rádio que, de dentro da casa, dá voz a músicas católicas. “Eu só quero as coisas que vêm de Deus, não farei as coisas erradas para adquirir o que não deve ser meu”, faz questão de ressaltar. Na motivação para a luta pela terra, recorda das figuras religiosas do leigo Chico Mendes e da irmã Dorothy Stang, mortos por defenderem a reforma agrária no Acre e no Pará. “Eles lutaram para a terra do povo”.


Poeira nos pés: crianças barradas na escola

O barulho dos freios do veículo marca a primeira parada do ônibus. É sinal para que as três crianças matriculadas na Escola Rural Córrego Barreiro levantem de seus assentos, coloquem as mochilas nas costas e desçam do ônibus em direção às salas de aula. Entretanto, antes de entrarem na escola, certificam-se de que os calçados encontram-se limpos. As crianças não desejam reviver o trauma de serem notificados por estarem com os tênis sujos. “Minha tia não vai me deixar entrar, e aí choram e não querem ir para a escola”, conta Karla ao retratar o fato vivido pelas crianças. Este ocorrido foi exposto por uma das professoras em reunião de pais e revoltou os moradores do acampamento. Os responsáveis pela escola dizem não terem presenciado.

A matriarca da família buscou conversar com a direção a fim de entender a posição deles diante do episódio. A resposta da instituição foi de que as responsabilidades das dificuldades de chegarem até a escola não diziam respeito à direção. Em contrapartida à situação, Fernanda*, mulher de semblante sério, compreende que o compromisso da escola é ser um ambiente acolhedor.

“Escola, patrimônio de todos”. Essas são as palavras pintadas no muro de entrada da Escola Rural CEF Tamanduá, onde estudam cinco moradores do acampamento. A frase de caráter inclusivo contradiz a realidade da instituição. “Aqui no colégio funciona como um hospital. O que acontece quando não tem vaga na UTI, e você está doente? Você morre”, foi o que ouviu Fernanda Santos, mãe e residente da área Fascinação ao procurar quais os documentos necessários para fazer a matrícula de seu filho. As dificuldades foram postas pelo secretário da Escola Rural.

Localizada na região de Ponte Alta, precisamente no km 61 da DF 180, a instituição do ensino infantil ao médio, conta com uma infraestrutura nova. Nove salas de aulas, equipadas com mesas e cadeiras bem conservadas, estantes, livros e quadros brancos. Quadra de esporte coberta, parque infantil, mesas de xadrez e área verde compõem a parte externa da escola, na qual Fábio* e Kamila* estudam.

Fernanda*, ao matricular Fábio* na escola, encontrou dificuldades. De prontidão foi orientada pelo secretário que deveria ter certeza de que o filho frequentasse regularmente, para que assim a criança não tomasse a vaga de outro estudante. “O estudo do meu filho é a minha prioridade. Na época de chuva, os impasses são maiores por causa da lama que fica até os joelhos. Mas ele vai mesmo assim, porque não pode faltar”, desabafa a mãe.

Ao confirmar a seriedade da decisão de transferência, o secretário informou que era preciso que trouxesse o papel de reserva de vaga fornecido pela antiga escola que seu filho frequentava na cidade satélite de Ceilândia. Fernanda* solicitou a realização pelo sistema e teve seu pedido negado mesmo após expor suas dificuldades de locomoção e financeira.

Pedras no caminho para a escola

O direito à educação de qualidade faz parte dos deveres que devem ser assegurados pelo Estado a todo cidadão, segundo o artigo 205 da Constituição Federal de 1988. No acampamento Fascinação, esta é uma realidade que encontra pedras no caminho. A violação desse direito social está presente em muitos contextos, seja por falta de transporte público que assegure a chegada dos alunos à escola ou pelo preconceito sofrido pelas crianças por serem filhos de sem terra.

Os primeiros a acordarem no acampamento são as crianças. Karolina* deixa a cama que divide com outras duas irmãs, calça o chinelo e vai até o banheiro. É hora da menina de nove anos despertar a família Gontijo com beijo de bom dia. Apressada, Karolina* veste o uniforme – calça azul e camisa branca – e recolhe na mochila rosa os cadernos espalhados durante o dever de casa feito na noite anterior. Junto com sua irmã Kamila*, de 13 anos, caminha até a entrada da comunidade. O ponto de encontro dos estudantes é em frente à placa com letreiro que destaca quão produtivo é o país: “Brasil: celeiro do mundo”.

As irmãs se encontram com outras seis crianças e juntas caminham três quilômetros. O destino delas é a rua estreita onde fica a parada de ônibus. Fábio*, 11 anos, faz parte do grupo. Moreno, de estatura média para a idade e com uma mancha de nascença no rosto, veio morar no acampamento no início deste ano. Antes, encontrava-se separado da mãe, já que a escola não dispunha de vaga para recebê-lo. Fernanda* desejava que o filho estudasse e o trouxe para junto dela somente quando efetuou sua matrícula.

Ao mirar o horizonte, os olhos do menino carregam a história de luta da família. Com postura de adulto, o caçula de três irmãos insiste, sempre que possível, em percorrer o caminho até a parada de ônibus de mãos dadas com sua mãe. Com 63 anos, sua “mamãe” se emociona ao relatar a força de vontade ao enfrentar as dificuldades. “Eles olham pra gente e acham que a gente não precisa de educação”, denuncia Fernanda*. Para ela, são barreiras impostas por estarem à margem da sociedade.

Os três quilômetros que separam a calma do acampamento da BR 180 são marcados pelo descaso governamental. Os moradores do Fascinação são um povo sem terra e sem incentivo para o estudo. No trajeto de estrada de chão batido, pedras e valas dificultam o caminhar de crianças. “Hoje se pode dizer que é um asfalto perto do que era. Nós já passamos por uma temporada cruel”, rememora Raimundo Manuel Arruda ao descrever as situações enfrentadas pelos moradores com as vias que levam até o acampamento. Contudo, apesar das más condições da rua, as crianças diariamente carregam na mochila não somente cadernos. Junto, levam a motivação e a esperança que fazem superarem as pedras no caminho e crerem no futuro que se apresentará como realidade diferenciada da vivida pelos próprios pais.

Enquanto o transporte não chega, as crianças aguardam na parada de ônibus. Na margem da rua asfaltada, avistam os vendedores ambulantes que gritam ao oferecer milho, pamonha e guloseimas aos motoristas que passam em alta velocidade. Crianças, carros e vendedores dividem o espaço. Com realidades distintas, essas três categorias lutam por objetivos similares. A criança, pelo futuro; os ambulantes, pela comida; os motoristas, pela carga; porém, todos buscam um futuro digno.

O ronco do motor faz com que as crianças avistem o ônibus que as levará até a escola para mais um dia de aula. Quando contam com o passe estudantil, o traslado dos estudantes ocorre de forma gratuita. No entanto, no início do ano letivo, conta Fernanda, o auxílio atrasou e impossibilitou a mãe de sustentar os filhos na escola. O transporte custava R$ 18 por dia, o que tornava impossível a ida dos alunos a escola. “Passamos dificuldades no início do ano. Não poderia pagar com um dinheiro que não tenho”.

Acampados reclamam de isolamento

A reclamação principal dos moradores do assentamento Fascinação, no Gama, vai da falta de apoio para o trabalho até a ausência dos serviços básicos que, previsto pela Lei Federal nº 11.445/07, todos os cidadãos teriam direito. São cidadãos que se sentem isolados. Para as 29 famílias, resta apenas esperar. Por ser acampamento, não tem acesso a direitos básicos, como energia elétrica, água potável e saneamento. Enquanto não forem assentamento, não os terão, conforme explica a Secretaria de Estado da Agricultura, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (Seagri) do Distrito Federal. Segundo o órgão, não existem projetos específicos para atender os acampados. Não há políticas de incentivo para aqueles que reivindicam um retrato físico da reforma agrária. Ao serem questionados pelo Jornal Esquina sobre a falta de assistência pela parte do governo, a assessora técnica da Seagri não soube responder.

Como critério do governo federal, as áreas destinadas para assentamentos precisam ser produtivas. Durante o processo de regularização, o solo do espaço determinado é avaliado no quesito de produtividade. A Seagri, juntamente com o Incra, produz um relatório de viabilidade ambiental e estudo do solo, além do impacto ambiental da área. O documento é entregue ao Instituto Brasília Ambiental (Ibram). De acordo com Lúcio Pereira, analista administrativo do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do ponto de vista agrônomo, qualquer terra pode ser cultivada. “O que é preciso para cultivar é terra, tecnologia e recursos”, comenta.

No Programa de Assentamento de Trabalhadores Rurais (Prat), instituído pelo decreto nº 33.594 assinado em 29 de março de 2012, garante ao assentado uma série de benefícios. Ele visa possibilitar a consolidação do assentado na zona rural. Contudo, os incentivos não acompanham o processo de ocupação da terra que resultará em assentamento. A ação que o Incra tem para trabalhadores rurais sem terra e que se encontram em assentamentos é o estímulo para cadastrar as famílias que as inclui no sistema de Informação de Projetos de Reforma Agrária.

Demarcação

O processo de demarcação da terra para a efetivação de um assentamento inicia com a destinação da área. A partir da regularização latifundiária através da definição da dominialidade da terra, a titularidade e a posse de imóvel são destinadas ao processo que transformará em assentamento. Isso é o que vai definir qual tipo de política será aplicada. Corresponde ao Incra a remarcação de terras de sua propriedade.  “O órgão não tem responsabilidade sobre áreas de outros entes públicos, sejam eles Federais, Estaduais, Municipais e ou Distritais. O Incra só cria assentamentos em imóveis aos quais possui direito para transformar em assentamentos”, esclarece Pereira. Com o parecer do Instituto, o processo de remarcação é encaminhado para a Casa Civil, que avalia a aprovação para configurar o terreno como assentamento.

É responsabilidade da Seagri administrar terras públicas rurais de cada Estado. Para a assessora técnica e representante da direção da secretaria, Gleide Celia Virgolino, o cenário do Distrito Federal exige iniciativas de incentivo. “Em 2012, um fórum de políticas de reforma agrária do DF realizou algumas reuniões com o Governo. O fórum identificou várias áreas do programa nacional de reforma agrária e avaliou terrenos requisitando para assentarem trabalhadores rurais”, comenta. “A partir de então, o trabalho é para criar políticas de assentamentos e desenvolver a reforma agrária. Quando criado, inicia a abertura de estrada, é solicitado à CEB a instalação de energia, trabalha com a Caesb e a canalização da água”.

*Os nomes foram alterados para preservar a segurança dos entrevistados.

Por Carolina Gama e Guilherme Cavalli
Fotos: Guilherme Cavalli
Arte: Fernanda Roza

 

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