As notas musicais fluem, unem-se, recomeçam em acordes longos, silêncio. A música recomeça tantas vezes, nem sempre como imaginavam. Tudo se repete e se funde como um roteiro que precisa ser reensaiado. O olhar à partitura faz meninos viajarem cada vez que sobem ao palco. Quem ouve volta direto para a infância, retorna, depois, ao presente e mira a harmonia de algo distante que alguns chamam de futuro. Meninos e meninas sonham com sons claros e altos, modulados pelo acorde da cidadania.
A orquestra Brasília Sopro Sinfônica, hoje com 54 integrantes, foi criada pela Associação Cultural Música e Cidadania (ACMC). “Só não pergunte qual é o sonho, porque o céu é o limite”, afirmou o criador do projeto, maestro Valdécio Fonseca, 51 anos. Criado em 2007, o projeto, antes instalado no Varjão, está localizado em um galpão abandonado no Paranoá. A mudança foi consequência do aumento no número de jovens da orquestra. O espaço é da Administração Regional que liberou o uso para a escola de música que aguarda o alvará para ficar, legalmente, no local. Lá só há aulas, mas não comporta apresentações por causa do tamanho. Por isso, os ensaios da Brasília Sopro Sinfônica, aos sábados, são no teatro Dulcina de Moraes, no CONIC, zona central da capital.
Weksson e Liliane Araújo, ambos com 25 anos, foram este ano aprovados no curso de música da UnB. Juntos no projeto desde sua criação, os jovens têm a música como aliança. Conheceram-se no projeto, se casaram e ensinam música voluntariamente para as crianças da Associação. “Eu não me imagino fazendo outra coisa. Comecei um curso de administração, mas parei porque queria mesmo fazer música. A gente encara o projeto como um refúgio, a gente foge dos problemas aqui”, afirmou Weksson.

A melodia que era tocada no Paranoá percorreu distâncias jamais imaginadas. Hoje é sinônimo de encantamento até em outros idiomas. O aluno Celso Alves tocou durante três anos na Brasília Sopro Sinfônica. No ano passado deixou os palcos brasilienses e foi aceito para tocar em uma orquestra na Argentina. “É para mostrar que é possível, ele morava aqui no Paranoá e agora está lá, ele ligou para nos contar e nós explodimos de alegria”, declarou Cláudia Fonseca, 51 anos, produtora executiva do projeto.
Desafinou
A música, antes tocada em harmonia, desafinou. O projeto já teve problemas com pais de alunos que não querem que o filho construa uma carreira na área. “A mãe ligou e disse que estava muito decepcionada com o projeto, que o filho dela queria fazer direito e agora ele quer fazer música. E a gente sempre procura, nas reuniões, mostrar para os pais que se a gente formar músicos, a gente vai morrer de alegria, mas o que o projeto quer mesmo é a cidadania”, comentou.
Para convencer os pais, Cláudia alega que a música ajuda o aluno na aprendizagem do ensino regular. ”A música faz com que o menino melhore na matemática, no português, no inglês, porque aqui eles começam a ter contato com vários compositores e músicas. E eu sou muito chata, quando estamos em reuniões eu corrijo o que eles falam, às vezes assistimos filmes aqui com eles, temos uma minibiblioteca também, e isso abre a mente dos meninos”.
É a mesma opinião que tem o professor do departamento de música e diretor do instituto de artes da UnB, Ricardo Dourado Freire, relata que a música oferece uma oportunidade de se desenvolver na qual o aluno estabelece uma meta para aprender algo e o importante é que a criança saiba que a dedicação, a atenção e o esforço devem ser os mesmos para atingir objetivos na escola e nas aulas de música.

Em maio de 2015, a orquestra Brasília Sopro Sinfônica fez sua apresentação de estreia no teatro Dulcina com a presença de autoridades como o governador do Distrito Federal, o secretário de cultura e um teatro lotado. Emocionada, Cláudia lembra que foi neste evento em que acreditou que conseguiria ajuda financeira do GDF. Porém, nada mudou. A equipe do jornal Esquina entrou em contato com a Secretaria Adjunta de Desenvolvimento Social, responsável por projetos sociais no DF, mas não obteve resposta porque, segundo eles, a prioridade é a grande mídia.
O especialista afirma que a sociedade ainda possui uma visão arcaica do trabalho do músico. “Em todos os seguimentos sociais tem uma resistência muito grande a que os filhos estudem arte, mas o mercado é muito bem estruturado com oportunidades, música é uma área em que sempre vai ter necessidade de professores, é um mercado muito promissor”, explicou. Além da carreira de professor, Ricardo destaca que, com o diploma do curso de música da UnB, o jovem pode se candidatar a qualquer vaga do serviço público que exigir curso superior e pode trabalhar na secretaria de cultura.
Sonoridade
O projeto flui como música também porque é familiar. Cláudia, esposa do maestro Valdécio Fonseca, conta que se entrega integralmente às crianças e que é “a secretária, a faxineira e a Tia Cláudia para os alunos”. Além dos idealizadores, o projeto conta com a ajuda de professores voluntários e aulas de violão para adultos à noite com uma mensalidade de R$ 40 para ajudar a sustentar o programa.
Para as crianças de 7 a 9 anos o projeto oferece a musicalização infantil, dos 10 aos 17 anos os jovens praticam já com os instrumentos. Os alunos iniciam na banda Tocando Sonhos e almejam tocar na Brasília Sopro Sinfônica, que, hoje, conta com 54 músicos. Para esse crescimento, é realizada uma seleção interna para definir os melhores que vão para a orquestra.
Alunos possuem o apoio dos pais e demonstram alegria ao falar da música. A estudante Tamires Silva, 11, relata que se apaixonou pelos instrumentos e que o projeto se tornou um porto seguro. “Eu passei na frente da escola de música com a minha mãe e gostei muito do som que estava vindo de lá. Comecei a fazer as aulas e percebi que qualquer problema que eu tiver, é só eu vir para o projeto relaxar”, declarou.
Hoje, por meio de doações, o projeto possui todos os instrumentos de uma orquestra, menos o piano e a arpa. Na parte teórica, os professores voluntários são os responsáveis por produzirem as apostilas. O maestro Fernando Morais, professor da Escola de Música de Brasília e integrante da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional, ensaia, voluntariamente, com a Brasília Sopro Sinfônica aos sábados no teatro Dulcina de Moraes, no CONIC, e é o maestro da orquestra. “Uma hora de aula do maestro Fernando custa R$ 300, obras dele já foram tocadas no exterior, então, é uma honra tê-lo como nosso maestro”, contou Cláudia.
Para a estudante Ana Cecília Tavares, 12, a música faz parte do cotidiano da família. “A música me inspira, venho de Itapoã para o Paranoá só para ensaiar e aprender os instrumentos. Meu irmão mais velho fez minha inscrição no projeto e minha irmã mais nova, 9 anos, também toca aqui”. Tamires e Ana Cecília pretendem estudar e se aperfeiçoar para, um dia, poder participar dos concertos da Brasília Sopro Sinfônica.
Aclamação
A produtora Cláudia destacou que a orquestra Brasília Sopro Sinfônica não fará mais apresentações sem receber cachê. Segundo ela, os alunos merecem receber pelo trabalho que fazem. “Eles são a única banda sinfônica de Brasília e não adianta a gente estar aqui, ensinando música para as crianças que almejam tocar na Brasília Sopro Sinfônica para chegar lá e ficar tocando de graça para sempre”, reclamou.
Atualmente, o projeto precisa de doações de material de reposição como cordas de instrumentos, palhetas e material de escritório como papel e tinta para impressora.
Mas, o sonho da Associação em curto prazo é conseguir um patrocínio do governo para poder dar melhores condições de aprendizado às crianças. Em longo prazo, a música pode ser um fator responsável pela mudança social da comunidade. “Meu sonho de consumo é que a gente conseguisse um teatro aqui no Paranoá. Essa região daqui não tem nada. Diferentemente de Ceilândia, Taguatinga, Gama, Samambaia, em que todos têm teatro, aqui não tem nada”, completou.
Por Clara Sasse