Desde 2012, o aposentado José Vilmar Pereira, de 63 anos, visita o filho, hoje com 22 anos, na prisão todas as quintas-feiras. O drama começou, na verdade, há quase uma década, quando o garoto, que era ainda um pré-adolescente, passou a usar maconha. Diante da situação, Vilmar resolveu internar o garoto, compulsoriamente, numa clínica onde ele passou três meses. Mas não adiantou. Vilmar conta que a primeira prisão ocorreu logo após a saída da clínica. “Foi preso (apreendido) com 15 anos por tráfico de drogas. Ele ficou preso mais ou menos uma semana e depois ficou em liberdade assistida. Me deu muito trabalho, continuou usando drogas e andando com as mesmas companhias”, lamentou. Problemas como esse têm sido comuns em todas as classes sociais. O Centro-Oeste, entre todas as regiões brasileiras, teve o maior índice de consumo de maconha. Ao todo, 9% dos jovens entre 14 e 25 anos são usuários frequentes da droga.
Os números, embora não consigam descrever os desafios enfrentados por famílias de usuários, revelam que quase 3 milhões de jovens consumiram cocaína no Brasil no ano de 2012, quando foi realizado o último Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD), que pesquisou a situação dos adolescentes. “Toda família tem alguém que é a ovelha negra, a fruta podre”, desabafa a mãe de uma dependente química, que não quis se identificar. Já idosa e com um ar cansado, ela se levanta para contar a história em uma reunião para pessoas na mesma situação. Assim como ela, 28 milhões de brasileiros têm pelo menos um usuário de drogas na família. Mais grave: mais da metade dessas famílias têm mais de uma pessoa com esse problema.
No caso do filho de Vilmar, o menino passou ainda pela segunda internação, dessa vez em uma clínica no estado de São Paulo. Permaneceu por seis meses. Parecia que as coisas tinham melhorado. Ao completar a maioridade, conseguiu um emprego e conheceu a atual esposa. “Ele terminou o Ensino Médio, fez um curso de audiovisual e ficou mais ou menos um ano sem usar drogas”, contou o pai. Contudo, Vilmar começou a perceber os primeiros sinais do tráfico. “Encontrei nas coisas dele uma balança de precisão e logo depois ele apareceu com um carro que era roubado, dizendo que era de um amigo”, relatou. Nesse período, uma denúncia o levou de volta para a prisão. Aos 18 anos de idade, ele foi condenado a 16 anos de prisão por crimes como tráfico de drogas e porte de armas. “Ele está preso com 22 pessoas na cela, a comida é horrível, a cadeia é horrível. Estou tentando, por contatos, conseguir um trabalho para ele lá dentro” disse, entre lágrimas. As visitas semanais dos pais e da esposa servem de apoio para o jovem.
O trabalho voluntário com pessoas na mesma situação de seu filho foi o que ajudou Vilmar. Há cinco anos, ele faz parte da equipe de voluntários da Associação Francisco de Assis e do Grupo Enoque. “A partir do meu sofrimento e da minha família, comecei a ver o sofrimento de outras famílias. Passo para eles a minha experiência, o que eu vivi e o que eu fiz que deu certo”, comentou. Entre os trabalhos executados, estão a distribuição de alimentos a moradores de rua na Rodoviária e a divisão de custos de internação de dependentes químicos.
Outro desfecho
A irmã da diarista Nilzete Tavares, Tábata, tinha 18 anos e acabava de ter dado à luz quando teve o primeiro contato com drogas. Nilzete conta que a mudança de comportamento da irmã foi brusca e aconteceu em poucos dias. “Foi uma surpresa para mim, pois ela tinha acabado de ter filho. Eu mesma não tinha entendido o que estava acontecendo, um rapaz da rua me avisou que minha irmã estava usando e vendendo drogas”, contou. Não demorou muito para a garota ter uma segunda gestação, e o uso do crack a acompanhou durante os nove meses. Nessa fase, ela era moradora de rua e usuária de cigarro, álcool e crack. “Ela chegava em casa, comia, roubava alguma coisa e ia embora”, desabafou Nilzete. Tábata fez parte dos 73% dos dependentes químicos no Brasil que são poli usuários de maconha, álcool, crack ou cocaína, segundo o LENAD Família. No Centro-Oeste, o crack corresponde a 47% das drogas ilícitas consumidas.
Depois de seis anos, a jovem decidiu fazer tratamento. Ela foi uma das mulheres recebidas pelo Centro Terapêutico Casa do Sol Azul, a única instituição que acolhe dependentes químicas entre 12 e 18 anos no Distrito Federal. Para Nilzete, o centro terapêutico foi a melhor opção. “Tábata completou todo o tratamento. Tem pouco mais de um ano que ela está totalmente limpa, sem usar nenhum tipo de droga”, orgulhou-se.
Redução de danos
O psicólogo Leonardo Cavalcante, que realiza trabalhos com dependentes químicos, criticou o senso comum da sociedade sobre a doença. “A dependência hoje é trabalhada dentro do paradigma da redução de danos, que trata por outros fatores que não estão relacionados ao biológico”, disse. Para ele, essa perspectiva não contempla todas as características que devem ser levadas em conta no vício em drogas. “A principal discussão que se faz a respeito da dependência é uma discussão de se pensar fortemente a relação entre aspectos psicológicos e aspectos contextuais como potencializadores de um aspecto bioquímico”, explicou.
Segundo ele, a complexidade e quantidade de aspectos a serem abordados se faz ainda maior quando se trata de adolescentes. Mas o psicólogo esclareceu que esta fase da vida não está necessariamente predisposta à dependência. “Ser adolescente não é uma característica determinante ao uso de drogas. Não é o fato de ser adolescente, mas o fato de ser adolescente em determinados contextos existenciais”, disse.
Cavalcante explica que o tratamento para jovens em uso de drogas segue a mesma linha de pensamento. Cada caso é um caso, e devem ser consideradas diversas características socioeconômicas, familiares e emocionais. “A adolescência na verdade são várias adolescências: o adolescente do plano piloto vai ter uma série de características diferentes nesse processo do que um da Ceilândia. Isso por si só já caracteriza um modo diferente de olhar para a dependência do jovem”, concluiu.
Segundo o LENAD, 62% das internações são em comunidades terapêuticas, contra 33% em clínicas ou hospitais dia. A diferença, como explicou o assessor de comunicação da Casa do Sol Azul, João Freire, reside no foco do tratamento. Na comunidade terapêutica, o objetivo é a ressocialização. “Elas vivem numa casa como se fossem uma família. Numa família, todo mundo tem obrigações. Lá na comunidade isso é reproduzido. Quem cuida da arrumação da casa, da cozinha e do galinheiro são elas. E isso tem uma função terapêutica”, esclareceu.
João Freire faz parte da equipe de voluntários no Centro Terapêutico Casa do Sol Azul, onde o atendimento já ocorre há nove anos. Desde então, 330 mulheres já passaram pela casa, das quais 52 eram menores de idade. A quantidade das que concluíram o tratamento, no entanto, mostra uma realidade menos esperançosa: apenas três. “A gente tem conseguido, na Casa do Sol Azul, 22% de pessoas que conseguem concluir a internação. Não necessariamente que não voltaram a usar, mas que concluíram o tratamento”, disse.
A dependência química não escolhe escolaridade ou classe social. Foi o que José Vilmar e João Freire fizeram questão de reforçar. “Lá na Casa, a gente recebe desde pessoas que vivem na rua, algumas que inclusive nunca tiveram uma casa, até pessoas de famílias riquíssimas, com muito poder aquisitivo. A gente tem pessoas lá que são analfabetos e outras que têm mestrado”, explicou Freire.
Barreiras ao tratamento
Você sabe qual é o custo da internação em uma clínica de dependência química? Segundo João Freire, a média está em torno de R$ 800 por dia. José Vilmar relatou ter chegado a pagar R$ 5000 por mês para tratar o filho. De acordo com a Pesquisa Nacional sobre o uso de crack, da Fiocruz, a grande maioria dos entrevistados admitiu ter vontade de realizar tratamento. Nada menos que 77% relataram esse desejo. No entanto, apenas 10% utilizaram algum serviço de internação nos 30 dias anteriores à entrevista. A pesquisa apontou ainda que “há uma série de barreiras ao acesso aos serviços de saúde, especialmente no que diz respeito a populações socialmente desfavorecidas”.
Quase a totalidade dos usuários apontou que seria importante que os serviços de assistência para pessoas que usam drogas fornecessem um suporte básico de modo a garantir sua sobrevivência e dignidade. Em números próximos a 100%, os usuários apontaram a importância de cuidados básicos de saúde e higiene, alimentação, ajuda para conseguir emprego e escola ou curso, bem como que estes serviços fossem gratuitos.
A alternativa para usuários em unidades públicos de saúde (portanto gratuitas) é o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD). Em Brasília, existem dois espaços cujo atendimento é voltado para crianças e adolescentes: os CAPS ADi de Taguatinga e da Asa Norte. No Centro-Oeste, segundo o LENAD, cerca de 52% dos usuários adultos conhecem o CAPS e 51% já procuraram. No entanto, em âmbito nacional, 31% não gostaram do atendimento e apenas 24% o classificaram como rápido e eficiente. A Diretoria de Saúde Mental (DISAM), responsável pelo CAPS, foi procurada para entrevista e autorizar acesso às unidades, mas não se pronunciou sobre o pedido até o fechamento da reportagem.
Por Bruna Maury