Tráfico de animais: morte lenta da fauna brasileira

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Pássaros mutilados e sem pluma, iguanas que tiveram o olho perfurado, mico-leão-dourado com problemas ósseos e até uma jiboia com a mandíbula quebrada. As marcas físicas e psicológicas são uma realidade comum a 38 milhões de espécies silvestres, que anualmente são retiradas do habitat natural e submetidas a condições cruéis para serem vendidas como mercadoria. A estimativa é da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais (Renctas), entidade não governamental que luta pela preservação da biodiversidade brasileira. 38 milhões de espécies silvestres são tiradas de seus habitats naturais e submetidas a condições cruéis para serem vendidas como mercadoria.

O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) calcula que para cada animal silvestre que chega a um dono pelo mercado ilegal, nove são mortos. As causas variam de ferimentos e sufocação até falta de comida e água. Outros padecem pelo caminho, na captura ou durante o transporte. Segundo o órgão, aqueles que sobrevivem e apresentam comportamento amigável são os preferidos no momento da compra. Micos, papagaios, araras, tucanos e peixes ornamentais são os mais vendidos. Os valores variam de R$ 50 a R$ 100 mil. Quanto mais raro, maior o preço de venda no mercado.

De acordo com agentes do IBAMA, os principais centros consumidores são os estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Foto: Tácido Pries
De acordo com agentes do IBAMA, os principais centros consumidores são os estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Foto: Tácido Pries

Indefesos

O periquito-maracanã, conhecido popularmente como maritaca, sobreviveu, na contramão das estatísticas. A ave, que até o ano passado era uma das mais de 1.200 espécies em risco de extinção, chegou com distrofia óssea ao Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) do Distrito Federal. O local, a 38 quilômetros do centro de Brasília, acolhe animais apreendidos em fiscalizações de tráfico e outros vindos de resgates ou de entrega voluntária de particulares.

Patas e pés tortos impedem que eles consigam se empoleirar. É o que costuma acontecer com animais dessa espécie, quando tirados do habitat natural e condenados à estimação. Resultado da falta de cálcio na alimentação. “Na natureza, esses animais têm uma alimentação a base de frutos, folhas e outros itens, que têm vitaminas específicas”, explica o médico-veterinário do centro, Carlos Eduardo Júnior. Ele esclarece ainda que “as aves não escolhem o que comer e recebem alimentação humana, fraca nos nutrientes exigidos, principalmente se estão em fase de crescimento”.

A analista ambiental Natália Costa se lembra de um mico-leão-dourado que chegou com deformações na coluna. “Estava curvado para a direita, provavelmente devido a movimentos giratórios repetidos, por conta do confinamento em uma gaiola pequena”. Recorda-se também da história de Sansão, uma onça-parda criada em jaula, cuja alimentação baseada em peixes a deixou com as pernas mais curtas que o convencional. Hoje, Sansão vive no zoológico do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS) do Exército, em Manaus.

Perversidade

Para o coordenador geral da Renctas, Dener Giovanini, vários fatores interferem para que a taxa de mortalidade da fauna silvestre cresça a cada ano. A crueldade por parte dos traficantes, segundo ele, é um dos mais expressivos. “Em maio do ano passado, na Indonésia, a polícia local apreendeu em um navio um carregamento de cacatuas-de-crista-amarela colocadas dentro de garrafas de água mineral. Logicamente, a maioria estava morta por asfixia”.

Giovanini cita ainda o exemplo de macacos colocados dentro de garrafas térmicas em 2014, cujos revestimentos de vidro foram retirados, para acomodar o tamanho dos bichos. “Esses animais passam até três ou quatro dias, do Norte ou Nordeste para o Sudeste, sem água ou alimentação”. Para ele, a falha está na legislação brasileira, que é branda quando se trata de tráfico de animais. Embora a sociedade esteja mais alerta, a estrutura para fiscalização continua deficiente.

O ambientalista propõe a criação e implementação de um Código Nacional de Fauna Silvestre e Exótica “nos moldes dos demais códigos federais, como o da Criança e Adolescente, do Idoso e do Consumidor”. A ideia é fortalecer as políticas públicas e atrair investimentos no setor, uma vez que o código eliminaria a insegurança jurídica e harmonizaria as competências administrativas. O 1° Relatório Nacional sobre Gestão e Uso Sustentável da Fauna Silvestre foi divulgado em abril desse ano e Giovanini ressalta que a publicação deve ser interpretada como um ponto de partida para debater as políticas públicas na área ambiental.

Giovanini sugere a diminuição de tributos e a disponibilização de linhas de crédito como forma de estimular as iniciativas no setor. Foto: Zeca Ribeiro
Giovanini sugere a diminuição de tributos e a disponibilização de linhas de crédito como forma de estimular as iniciativas no setor. Foto: Zeca Ribeiro

Divergências

Um dos aspectos mais polêmicos gira em torno da criação de animais em cativeiro como mecanismo de preservação. O coordenador de operações do Ibama, Roberto Cabral, argumenta que, após a realização de operações de fiscalização no ano passado, o órgão constatou irregularidades nas informações fornecidas pelos criadores. Alguns deles, segundo Cabral, têm envolvimento com o comércio ilegal e apontou como exemplo o que acontece entre criadores de aves canoras, que “lavam” animais obtidos na natureza fraudando origens legais com o uso de anilhas – dispositivos padronizados de metal que identificam os animais – para agregar valor ao animal.

O deputado federal Ricardo Tripoli (PSDB-SP), que foi relator da CPI dos Maus-Tratos a Animais e é membro da Frente Parlamentar Ambientalista, reforça o discurso. Segundo ele, a questão dos animais silvestres tem que ser tratada junto com o Código Florestal e acredita ser mais importante discutir a preservação das florestas antes da preservação da fauna. “O relatório da Renctas vai na contramão do que está acontecendo no Brasil. Na minha opinião, animais exóticos têm que ir para santuários e os silvestres têm que ser tratados no Código Florestal, com mais fiscalização”.

Em contrapartida, o coordenador técnico da Rede Brasileira para a Gestão e o Uso Sustentável da Fauna Silvestre e Exótica (Rebras), Luiz Paulo Amaral, defende que é preciso conhecer os amparos legais para debater o tema. “Alguns órgãos, como o Ibama, sustentam que animais silvestres devem ficar na natureza. Que natureza? A que estamos destruindo todos os dias? O fato é que a gestão pública hoje é deficiente e danosa ao setor de conservação”.

O diretor jurídico da Associação Brasileira de Criadores e Comerciantes de Animais Silvestres e Exóticos (Abrase), Bruno Ville, aponta normas do Ibama como o principal empecilho para o desenvolvimento do setor. “Apesar de todas as dificuldades, há dados que apontam para mais de um milhão de animais silvestres nascidos em criadouros e comercializados sustentavelmente em 2012, o que pode significar que 10 milhões de vidas foram poupadas pelo tráfico”.

Ville cita como “exemplo de sucesso” a recuperação da população do jacaré-do-pantanal, que nos anos 80 corria risco de extinção. Atualmente o réptil se encontra “absolutamente fora de perigo” após série de medidas de incentivo à criação em cativeiro. “Possivelmente, muitos dos pantaneiros que naquela época contavam com a caça ilegal para o sustento de suas famílias hoje trabalham em locais (de manejo) como esses”, completou.

A arara-vermelha é uma das espécies mais visadas pelos traficantes. O preço no mercado negro varia de RS 500 a 800. Foto: Tácido Pries
A arara-vermelha é uma das espécies mais visadas pelos traficantes. O preço no mercado negro varia de RS 500 a 800. Foto: Tácido Pries

Cativeiro

No Brasil, segundo dados da Abrase, existem 5.460 criadouros de animais, com 1,7 milhão de espécimes de animais silvestres e exóticos em cativeiro. A entidade garante ainda que os criadores comerciais ajudam na conservação da fauna e são responsáveis por 77.800 empregos diretos e 126 mil indiretos. Em 2011, segundo a associação, o setor faturou R$ 237,5 milhões com a venda de 186 mil animais silvestres, mas os números poderiam ser muito maiores.

O ambientalista Denner Giovanni endossa o discurso e defende a criação comercial como maneira de combater o tráfico de animais. “A criação comercial é fundamental para fortalecer as atividades de combate ao tráfico de animais silvestres, principalmente por oferecer uma alternativa legal. A lei prevê que você pode comprar animais silvestres legalmente sem retirá-los diretamente da natureza. Por isso é importante estimular mais pessoas, mais criadores legais, produzindo e reproduzindo animais”.

O deputado Sarney Filho (PV-MA), que hoje ocupa o cargo de ministro do Meio Ambiente, resumiu o problema. “Existem duas preocupações no que diz respeito aos criadouros. Primeiro os maus-tratos de animais e, segundo, a possibilidade desses criadouros servirem como ponto de tráfico de animais silvestres. É uma questão complexa, que exige uma melhor definição sobre o papel dos criadouros. Hoje já temos exemplos bem sucedidos de criadouros de animais silvestres que decorreram na manutenção de espécies”, defendeu.

Rota

O Instituto Brasília Ambiental (Ibram) indica que, apesar de ser um grande centro urbano, Brasília funciona como rota de venda de animais silvestres provenientes de captura e comércio ilegais. A localização geográfica favorece esse tipo de crime pelo fato de a cidade ser cortada por várias rodovias federais. Confira o mapa abaixo (aqui entra um mapa da rota do tráfico de animais silvestres no Brasil).

De janeiro até a primeira quinzena de abril, a autarquia distrital apreendeu 182 animais silvestres vítimas de tráfico, sendo 179 aves e três répteis. No ano passado, o número de apreensões chegou a 588. O gerente de Fiscalização e Fauna do Ibram, Marcos Ozeki, garante que aves exóticas e aquelas consideradas de competição (por causa do canto) são mais procuradas pelos traficantes. “Algumas espécies podem valer até R$ 100 mil no mercado negro. Quanto aos répteis, os preferidos são as iguanas, que chegam a custar R$ 5 mil”.

Mapa mostra principais rotas do tráfico de animais silvestres no país. Nordeste é campeão de apreensões, aponta o Ibama . Foto: divulgação - Ibama
Mapa mostra principais rotas do tráfico de animais silvestres no país. Nordeste é campeão de apreensões, aponta o Ibama . Foto: divulgação – Ibama

 

 

Nos últimos dois anos, 17 resoluções, instruções normativas e portarias do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e Ibama foram publicadas, fator que comprova a instabilidade e ineficácia da legislação. As portarias 117 e 118/Ibama, de outubro de 1997, regulamentam o comércio e a criação em cativeiro de animais silvestres nacionais e exóticos, revogando a portaria 132, de 1988. A lei 5.197/1967, conhecida como Código de Caça, assegura
que “os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase de desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais, são propriedade do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça       ou apanha”. A lei elimina ainda a caça profissional e o comércio deliberado de espécies da fauna brasileira. Por outro lado, faculta a prática da caça amadorista, considerada como uma estratégia de manejo e, sobretudo, estimula a construção de criadouros destinados à criação de animais silvestres para fins econômicos e industriais.

Destino

Nos últimos cinco anos, segundo o Ibama, foram atendidos 275.866 animais nos Centros de Triagem de Animais Silvestres de todo o país. Desse total, 217.636 receberam algum destino ou foram devolvidos à natureza. Mas o processo não é simples. Da identificação até a destinação correta dos animais silvestres, são necessários pelo menos 20 dias. Aqueles que precisam de cuidados médicos no DF, por exemplo, são encaminhados para o Hospital Veterinário da Universidade de Brasília.

Atualmente, cerca de 350 animais, entre pássaros, primatas, roedores e répteis, estão abrigados no centro. De acordo com o coordenador do local, Roberval Pontes, 60% são devolvidos à natureza. Quando não é possível soltá-los, por estarem completamente adaptados ao cativeiro, mutilados ou precisando de cuidados permanentes, há alternativas viáveis. É possível encaminhar para algum zoológico ou mantenedor devidamente cadastrado no Ibama. Parceiro do Centro de Triagem, o Batalhão de Polícia Militar Ambiental recupera espécies aprisionadas encontradas em cativeiro. No ano passado, 643 foram retiradas desses locais. Em 2016, até a primeira quinzena de abril, o total já soma 246.

Familiar

A recepcionista Suellen Vasconcelos, 31 anos, se diz “amante dos animais”. Na chácara em que vive, na região administrativa Vicente Pires, possui mais de 30 animais, entre cachorros, gatos, galinhas e gansos. Mas uma espécie em particular chama a atenção: o cágado. O bicho, que é da mesma família da tartaruga e se difere por ser de água doce e não terrestre, é considerado um animal silvestre por conta dos hábitos noturnos. “Sei que se o Ibama bater na minha porta, estou lascada. Os cágados somem por um tempo, mas se reproduzem muito rápido. Hoje tenho quatro, então a multa seria salgada”, disse.

Pássaro engaiolado não canta, lamenta. Pelo menos é o que pensa o estudante Paulo Henrique dos Santos, de 14 anos. O jovem, que vive na Samambaia com os pais e o irmão mais velho, não teve dúvidas e soltou um filhote de curió que ficava preso no quintal do vizinho. A espécie é visada por traficantes devido ao canto característico e à plumagem negra. Chega a custar R$ 2 mil no mercado ilegal. A mãe de Paulo conta que o vizinho ficou furioso quando descobriu, mas ainda assim ela se diz orgulhosa do filho. “Até eu achava o passarinho bonito, cantava que só. Dei uma bronca nele para aprender a não mexer nas coisas dos outros, mas fiquei feliz quando ele me disse que soltou porque aprendeu na escola que lugar de passarinho é voando por aí”, lembrou.

Por Tácido Pries

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