Os dias que antecedem a competição são sinônimo de inquietação para atletas de luta. Grande parte dos profissionais de diversas categorias da modalidade se sujeitam a práticas sofridas para conseguir controlar o peso. A popular tática, conhecida no esporte como “secagem” faz parte da arriscada rotina destes esportistas. Antes da disputa no tatame, precisam vencer, primeiramente, a balança e bater o peso da sua categoria. Para isso, valem, inclusive, alguns métodos polêmicos que eram considerados práticas exclusivas de pessoas com transtornos alimentares, como ingestão de diuréticos e laxantes. Assim, vários atletas chegam a perder mais de dez quilos em um único dia.
Em 2013, o brasileiro Leandro Feijão morreu no dia da pesagem do Shooto 43, evento de MMA (artes marciais mistas, em inglês) em que lutaria, no Rio de Janeiro. Ele tinha 28 anos e dez lutas disputadas na modalidade, com cinco vitórias, e foi vítima de um acidente vascular cerebral (AVC), como apontou o atestado de óbito. Segundo a fisiologia cardíaca, a desidratação, geralmente feita para a perda de peso dos lutadores, pode ser uma das causas de AVC, pois altera a pressão arterial e pode causar um aneurisma.
Yang Jian Bing, peso-mosca chinês de 21 anos, era lutador do ONE FC, evento asiático de MMA. O jovem foi vítima de falência cardiopulmonar e morreu no final do ano passado. Ele passou mal após ter problemas com o corte de peso para o “ONE Championship”, que disputaria naquela semana. Chegou a ser internado, mas sofreu um colapso logo antes da competição. O contexto específico da morte não foi anunciado.
As perdas bruscas de peso não são recomendadas por profissionais da saúde, segundo o nutricionista esportivo e triatleta, Victor Hugo Machado. Ele explica que esses métodos utilizados pelos lutadores não ocasionam na perda de massa, mas na de líquido no organismo. “O máximo que vi próximo a mim foi um atleta que perdeu 14 quilos no mesmo dia. Ele acordou de manhã e treinou empacotado com saco plástico para suar mais.”

Preparação
Daniel Dionísio, 35 anos, é lutador de Boxe Chinês. Vencedor de três mundiais, cinco sulamericanos, quatro brasileiros e às vésperas da última competição, o atleta se prepara para a Copa Americana, em agosto deste ano. Prestes a se aposentar, a preparação começou em maio. “A preparação para uma luta é de aproximadamente três meses antes da competição. A minha é em agosto e, até lá, preciso perder 10 quilos”.
Nesses três meses, a alimentação do atleta passa a ser mais regrada. Evitar carboidratos, comer muita salada e frango é comum na rotina. “Não mantenho a dieta sempre. O meu foco é quando já tem uma luta marcada. Volto para a dieta para chegar no peso exigido na categoria que vou lutar”.
A última semana é ainda mais crítica. Para evitar retenção de líquido, o atleta corta o sal da alimentação. “Quando chego mais próximo da luta, é difícil perder muito mais peso do que já perdemos”, afirma. “Como um dia antes da luta preciso perder peso desidratando, não posso ter sódio no corpo para evitar a retenção”. Daniel conta que entre às 17h e às 21h consegue reduzir até sete quilos na balança. “Quando chega um dia antes da luta e ainda não consegui bater o peso, começo a perder o que falta em água. Tenho colegas que conseguem perder até 15 quilos apenas desidratando para a pesagem”.
Um dia antes da competição, Daniel usa blusa e calça térmica de plástico – encontradas facilmente em lojas de esportes – para treinar. Durante uma hora, alterna três minutos de exercícios intensos e três minutos de descanso com a roupa e um edredom para manter o calor do corpo. “Logo no começo já começo a sentir o suor escorrendo. É muito fácil perder água assim”.
Após os exercícios, descansa durante uma hora e depois repete o procedimento mais uma vez. “Tem horas que vejo estrela de tão fraco. Não posso comer e nem beber água até a pesagem. Às vezes, até chupo gelo para enganar o corpo e não desmaiar”.
Daniel relata que nem sempre é possível cravar o peso certo na balança. Caso isso aconteça na pesagem oficial, o atleta tem até uma hora para perder o peso necessário para ser enquadrado na categoria. “Neste momento também é fácil. Normalmente, falta menos de 500 gramas. Então posso fazer alguns exercícios com a roupa térmica ou até mesmo marcar chiclete para produzir saliva e cuspir. Normalmente, em 15 minutos dá pra perder o que falta”, relata.
Após a pesagem, a reidratação deve ser feita com a supervisão de algum profissional. Primeiro, o atleta ingere o soro fisiológico via oral ou na veia. “Nessas competições, normalmente há uma enfermeira que faz esse tipo de coisa. Ela coloca o soro na nossa veia para reidratar”, relata. Depois do soro comum, o atleta toma outro, o pedialyte – utilizado na reidratação de crianças. “Depois disso, me sinto muito melhor na hora. Reidrato e corro para conseguir ganhar o peso novamente (antes da luta).”
Mesmo com todo o estresse sofrido pelo corpo, Daniel diz que vale a pena. “Ganhar uma competição é algo muito gratificante. Esse é o preço que pagamos por levar o esporte a sério”.

Sacrifício
Ricardo Saldanha, 25 anos, começou a participar de competições há sete. Quatro anos atrás, foi convocado para a Seleção Brasileira de Boxe Chinês. Entre os títulos conquistados nesse tempo, estão os de campeonatos brasileiro, sulamericano e quatro títulos do brasiliense. Agora, está em busca da conquista do panamericano.
Aproximadamente dois meses antes de uma competição, ele realiza a preparação para se enquadrar no peso da categoria que quer lutar. “O meu peso normal é de, pelo menos, 90 quilos. Mesmo assim, tento lutar na categoria de até 84 quilos, então tenho que me esforçar para chegar no peso”.
A dieta de Ricardo começa com o corte de carboidratos. Ele afirma comer muitas verduras e legumes e beber bastante água. Apenas com essas mudanças, ele explica que já consegue perder cerca de quatro quilos. “Isso é para o Boxe Chinês, que tem pesagem antes de toda luta. Em um mês já consigo bater o peso”.
Dedicado também ao MMA, competição cuja redução de peso é diferente, Ricardo chega a perder 14 quilos, ao invés dos quatro quilos do Boxe Chinês. “Eu nunca senti o baque da desidratação porque eu tenho medo de perder muita água”, confessa. Ricardo diz que a dieta é ruim no começo, porque causa mal humor, mas que o corpo logo se acostuma. Já com a sede, é “quase insuportável” lidar.
Com 24 horas para ganhar peso antes da luta, as práticas são completamente diferentes da dieta: muita água e muita comida. No dia da luta é consumido muito carboidrato simples, de rápida absorção, como macarrão, arroz branco ou batata. “Depois da desidratação, após uma duas horas já está tranquilo para comer à vontade. Eu recupero até seis quilos, mas já vi gente recuperando 10.”
O atleta explica que sente fraqueza depois da desidratação. Por isso, os treinadores pedem para ele entrar em contato quando sentir vontade de comer. “Às vezes dá vontade de largar tudo e comer. Eu penso: ‘para quê eu vou fazer isso se fico morrendo de fome, quase desmaiando?’”. Ricardo sofre com a ansiedade pela cobrança antes das competições. “Quando eu tenho algum problema, desconto na comida. Já pensei em fazer acompanhamento psicológico.”
Risco
Para Márcio Oliveira, fisioterapeuta especialista na área esportiva, a desidratação brusca é um processo drástico e perigoso. “De forma alguma é um procedimento recomendável, a não ser que por um profissional irresponsável.” Para ser segura, a desidratação tem um limite muito estreito de 2% ou 3% do peso corporal, segundo ele. Ao contrário do que é recomendado pelo profissional, os atletas perdem muito mais que isso.
Quando o lutador chega na semana da competição e começa a desidratar, algumas sequelas aparecem, como as diminuições de função motora, dos reflexos, da força e da potência. “Por isso, muito atletas se lesionam nos dias que antecedem a competição, mesmo sem fazer treinos pesados”, explica Márcio. Como eles estão debilitados do ponto de vista motor, em decorrência das perdas da desidratação, ficam mais suscetíveis a lesões. “O processo é todo muito maléfico.”
Márcio explica que a falta de água compromete muito mais do que só o peso. “No corpo existe uma hemodinâmica (regulação da circulação sanguínea) e quando se perde muito líquido, o volume de sangue que chega ao coração para ser bombeado fica comprometido, como explica a fisiologia cardíaca.” Esta é uma das razões que podem levar o atleta ao óbito, pois o risco é de faltar irrigação sanguínea ao cérebro.

Cultura enraizada
O médico ortopedista traumatologista e especialista em medicina do esporte, Marcus Barros Melo, aponta que essa perda de líquido pode afetar drasticamente os rins, o fígado e até a questão do desempenho dos atletas na luta. “Os eletrólitos são micronutrientes essenciais para a contratura muscular e cognição, perdidos no processo de desidratação”, segundo ele. Assim, os lutadores podem chegar à insuficiência renal aguda, podendo ocasionar a morte. “É muito difícil tirar essa cultura dos atletas. Isso é algo enraizado há muitas décadas pelo pessoal do boxe e acabou sendo inserido no mundo do MMA, quando as diversas artes marciais migraram para a nova modalidade”, critica Marcus, em relação à desidratação severa.
Após a pesagem, os atletas querem ganhar peso a qualquer custo para ficarem fortes para a luta. “O que eles não sabem é que não ficam mais fortes. Na verdade, ficam mais fracos, porque de forma brusca não é possível repor tudo o que foi perdido, como eles imaginam.” Deste modo, o corpo fica muito comprometido. Para ele, no fim das contas, a prática da perda de peso não faz diferença na estratégia. Todos perdem peso para lutar em categoria inferior e depois ganham para a luta. Na competição, acabam lutando com oponentes de mesma categoria, não importando a perda. “Todos estragam o organismo para lutar deteriorado com um oponente do mesmo peso. Seria melhor simplesmente continuar na mesma.”
Opções
Mascar chiclete, usar roupas especiais para aumentar a temperatura corporal e sauna são exemplos de métodos extremos. Existe ainda uma tática mais ousada, como o banho de banheira de água quente com sal para desidratar ao máximo. As opções de práticas são diversas, mas tem algo em comum, são nocivas à saúde se feitas sem limites.
O que poucos sabem é que existem formas de fazer uma perda controlada. Segundo o nutricionista Victor Hugo Machado, o método “pirâmide” pode ser eficaz, se feito com acompanhamento de uma equipe multidisciplinar. A perda brusca não é bem reconhecida pelo organismo, mas, se feita aos poucos, pode ser segura.
Por esta razão, o método pirâmide não é feito a longo prazo e com consumo gradual. Dias antes da competição, são consumidos água e alimentos que aumentam gradualmente até um pico determinado pelo profissional que acompanha o atleta. Ao chegar nesse nível máximo, inicia-se uma redução graduada, para que o organismo lide melhor com a perda. Para o nutricionista, esta seria uma “desidratação controlada”.
Por Ana Luiza Campos e Isabella Alvim