Uma cidade como tela: conheça histórias de intervenções urbanas que preenchem a capital

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Exaltada pela arquitetura moderna e planejamento urbano único, Brasília vai muito além de concreto ef linhas retas. As cores, as formas e as expressões artísticas presentes nas entranhas do Distrito Federal simbolizam a essência da  brasilidade e proporcionam um escape do cotidiano maçante. 

Ao percorrer as asas do avião de Lúcio Costa, os traçados artísticos se sobressaem em meio às quadras e entrequadras matematicamente divididas em pares e ímpares, edifícios retangulares de seis andares, tesourinhas e avenidas. 

Um dos maiores destaques de intervenções é a pintura no viaduto entre a Galeria dos Estados e o Setor Comercial Sul: o maior arco-íris do país. Com 230 metros de extensão, nas cores da bandeira do movimento LGBT, ele passou a preencher a região central e monocromática da capital em 2022.

No Eixo Rodoviário, principal artéria de Brasília, as passagens para pedestres são preenchidas por poesias, declarações, pinturas e recados. No entanto, o verdadeiro coração das intervenções urbanas pulsa na W3 Sul, onde as fachadas de comércios, pontos de ônibus e até árvores são adornados com arte que insuflam vida no DF.

Pesquisadora e professora da Universidade de Brasília (UnB), Renata Almendra nasceu e cresceu na capital e dedica-se a estudar expressões culturais urbanas e acredita que todas as cidades têm especificidades para arte, como o grafite. “O grafite tem um contexto global, mas ele ganha contornos específicos na cidade em que ele é colocado. Ele dialoga com o território e com a questão social”, afirma.

A especialista defende que grafite é toda intervenção urbana, visual e de caráter comunicativo que não seja publicitário, no espaço público. Dessa forma, as expressões podem ser desenhadas, riscadas, coladas e até mesmo arranhadas.

“A arte urbana traz uma discussão mais ampla com a cidade, com essa relação do público e do privado. O muro conta muito mais histórias do que a gente consegue ver”, ressalta.

Os ilustradores da capital

No grafite, uma forma de expressão predominante é a caligrafia. O alfabeto do movimento consiste na combinação de letras cursivas e elementos gráficos, no qual os artistas exploram diferentes tipos de canetas, sprays, tintas e pincéis para criar escritas fluidas e expressivas.

Em Ceilândia, Bruno Byako, ex-líder de uma gangue brasiliense, conheceu o grafite por meio da vivência na rua. Adepto ao estilo 3D na caligrafia, o grafiteiro utiliza cores vibrantes e fluorescentes a traços pretos e cinzentos para preencher as fachadas da região. 

A caligrafia de cores vibrantes do artista Bruno Byako preenche as fachadas de Ceilândia. Foto: Arquivo pessoal 

Bruno dá forma aos seus pensamentos fluídos por meio da arte. Os traços de tons contrastantes e linhas dinâmicas, resultantes da influência dos estudos de arte que faz, criam a impressão de movimento e profundidade em suas obras. “A arte tem o poder de impactar vidas e transmitir sentimentos, o que para você não pode ter sentido nenhum para o outro pode fazer total diferença”, analisa.

Desde pequena, lápis de cor, tinta e tela são os fiéis companheiros da designer Eime. Na adolescência, a artista passou a construir uma relação com o spray. E hoje, a grafiteira traz cor aos ambientes internos e externos da capital.

Para ilustrar, Eime tem o seu próprio processo criativo: fazer um rascunho e buscar referências. A escrita é o destaque das obras da artista e representa a sua maior paixão. “Observar a cidade é o meu processo criativo diário porque todo dia eu vejo uma coisa diferente que me dá vontade de criar”, afirma.

Eime intervém o ambiente urbano no Cave do Guará 2. Arquivo pessoal

“Tudo pode ser arte quando a gente entende que pode dar um sentido para algo. Seja um vídeo, uma gravura, uma questão manual, um questionamento ou uma ideia”, opina Eime.

Antes de produzir, ela realiza uma reprodução digital, estuda as cores e observa as latas para escolher a combinação perfeita nas possibilidades que possui no momento.

Curvas entre as retas

A principal inspiração das obras do artista Gu da Cei está na primeira região administrativa da capital federal, Ceilândia.

O artista, filho de maranhenses que vieram tentar a vida no DF, molda a cidade em poesia e protesto, com as mãos calejadas e olhos atentos.

“Na maioria dos casos, parte de vivências próprias, que se conectam com vivências coletivas”, conta ele sobre o seu processo criativo. 

A história do local, a mobilidade urbana, a vigilância e as ruas são as principais musas das esculturas, fotografias, instalações, poesias, performances e manifestações em espaços públicos de Gu. No livro “O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação” é possível conferir fragmentos de sua alma, impressos em páginas amareladas.

O mestre em Artes Visuais na UnB teve seu primeiro contato com esse meio na escola: “Guardo com carinho memórias de diferentes professoras destacando meus trabalhos na infância”. Além de possuir um dom com as artes, Gu é curador da galeria Rosifloras e integrante da coordenação do Festival Foto de Quebrada. 

“Elementos e cores que remetem à realidade de quem depende do transporte público e luta por mais dignidade, mobilidade, qualidade de vida, direito à moradia e à cidade no Brasil”, descreve ele o seu estilo de trabalho. As obras de Gu visam um engajamento coletivo em prol de mudanças transformadoras: “A mensagem que fica é a da ação. Podemos ser mais criativos!”

Galeria a céu aberto

Em 2019, o então recém-formado da UnB em filosofia, Esperanza, recebeu um chamado das artes.

No começo, arriscava-se com desenhos simples e pintava objetos que encontrava enquanto andava pelas ruas. Mas após conhecer outros artistas, mergulhou de cabeça na perspectiva de dar vida à cidade.

Em meio a pinturas de grafite, trechos de obras literárias e cartazes, o artista se comunica com o espaço urbano e com todos que se permitirem sentir as cores e as palavras expostas. 

Esperanza rodeou o Cine Brasília com uma obra este ano, ao montar um ambiente lúdico para qualquer pessoa poder parar e absorver seu trabalho. O objetivo? Criar uma memória coletiva no espaço e democratizar a arte. “Muito se fala da obra que foi parar em museus, mas pouco daquela feita na rua”, ressalta.

Telas coloridas espalhadas pela grama e nos troncos de árvores, um varal com papelões de pinturas criadas a partir da mescla de cores e técnicas que conferem um caráter único a cada peça, pendurados como roupas para secar no sol; em chapas de madeira montadas com dobradiças antigas, citações do livro “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus. As palavras manifestam a dor e o sentimento invisíveis no meio de tanta correria e configuram a mostra de Esperanza. 

Assim como na obra da autora, a reflexão sobre as desigualdades sociais e humanas é a alma do projeto. Esperanza utiliza, além das palavras, expressões artísticas de estilos variados, de inspirações predominantemente abstratas, que podem ser observadas ao se sentar em um banco de madeira colocado ali especificamente para analisar até os mínimos detalhes da integração da arte e da natureza. 

O cenário urbano amplifica a presença das instalações e pinturas, de forma que se tornam não apenas arte, mas parte do ambiente. A conjunção da obra dialoga com quem passa por ali e se transforma em um portal para a imaginação no meio do dia a dia.

A arte urbana em espaços internos

O Museu Nacional da República tem uma vocação ligada às artes visuais e à arte contemporânea. Embora não seja exclusivamente dedicado a essas formas de expressão, é um espaço dinâmico, no qual a principal premissa é fomentar a liberdade de expressão, proporcionar um ambiente para a experimentação das linguagens artísticas e contribuir para a diversidade cultural e pesquisa. Assim, torna-se um ponto de encontro para diferentes manifestações criativas.

A curadora e diretora do Museu Nacional da República, Sara Seilert, expõe que os museus têm a missão de promover a sensibilização do olhar e a desconstrução do preconceito: “Costumo dizer que desde os primórdios o ser humano pintava as paredes. E a arte urbana é a arte do espaço coletivo. Brasília é um museu a céu aberto. Então, a arte de rua pode ser a escultura que está lá na Praça dos Três Poderes, e também pode ser o grafite que está na Galeria dos Estados”.

Por Amanda Canellas, Catharina Braga e Maria Clara Abreu

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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