A escravidão nos tempos modernos

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Em busca de melhores condições de vida, há exatos 12 anos, Fabiana Mendes,42, saiu de Goiás rumo à Espanha para trabalhar como garçonete. Ao chegar viu-se obrigada a se prostituir para pagar uma dívida de 30 mil euros. Esta é a realidade de milhares de pessoas que são vítimas do tráfico de pessoas. É um crime que, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), gera mais de 2,5 milhões de vítimas por ano no mundo e ainda chega a movimentar 32 bilhões de dólares/ano, segundo dados da cartilha do Plano Nacional em Combate ao tráfico de pessoas do Governo Federal. Para fins específicos de exploração sexual, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), estimou cerca de 1 milhão de pessoas, sendo 98% mulheres, traficadas anualmente.

Vítima de tráfico para prostituição, Fabiana conta que recebeu o convite de uma pessoa da sua própria família. “Ela era prima do meu ex-marido e estava na Espanha há cinco anos. Disse que eu iria trabalhar na lanchonete com ela e até mandou fotos do suposto emprego”. Com tudo pago pela quadrilha, a goiana partiu sem desconfiar de nada para León, uma cidade no noroeste da Espanha. Fabiana lembra que o momento da descoberta foi um choque. “Me falaram calmamente: Não te contaram mais o trabalho aqui é prostituição, o seu passaporte esta retido e você tem que ficar no mínimo com dez homens por noite para pagar a sua dívida que é de 30 mil euros. O meu mundo simplesmente desabou”, recorda.
Fabiana, na época, tinha 30 anos, era mãe solteira de dois filhos e estava a procura de um emprego melhor. Este é normalmente o perfil que os aliciadores procuram. O psicólogo e professor da UnB, Mário Ângelo da Silva, que visitou à trabalho os principais destinos do tráfico na Europa, explica que as vítimas, na maioria das vezes, são mulheres, na faixa etária entre 18 e 30 anos, com baixa escolaridade, baixa renda, pouca ou nenhuma inserção no mercado de trabalho, provenientes de famílias numerosas, mães solteiras e preferencialmente mulatas. No Brasil, o estado de Goiás é o maior polo de aliciamento do país, mas especificamente Goiânia e Anápolis. “A região norte, Fortaleza e o Rio de Janeiro, também são bem citados”, afirma o pesquisador, Mário Ângelo. Já os principais destinos das vítimas são normalmente a Espanha, Portugal, França, Itália e Alemanha.
Vida de traficada
Imagine: viver em um país onde não se fala a sua língua, em cárcere privado, sem contato social ou com a família, sendo tratada de forma violenta, se alimentando mal, tendo uma jornada de trabalho de 14 horas por dia sem descanso, tendo muitas vezes que usar o álcool e as drogas para aguentar o trabalho degradante, tendo a família e a sua própria vida ameaçada de morte diariamente. Essa é a vida de milhares de pessoas que saem de seus países de origem em busca de um sonho e que caem nas redes do tráfico humano. “Eu me sentia sufocada”, conta Fabiana que presenciou vários suicídios, abortos, surtos de dependentes químicos e brigas violentas. “Além disso, presenciei todos os tipos de tráfico, de criança para prostituição, de bebês, de drogas…”, acrescenta. A goiana lembra que a solução dela foi o álcool. ” Eu tive que aprender a beber para poder enfrentar aquele mundo”, lamenta.
Diariamente, a dívida de Fabiana só aumentava. Além dos 30 mil euros, ela tinha que pagar,por dia, 100 euros da estadia e ainda 50 euros da alimentação. Outro fator que contribuía para o aumento da dívida era a cota mínima de clientes por noite. A goiana não conseguia chegar nem ao menos na metade. A vítima conta que a sua calma e racionalidade que a mantiveram viva. “As revoltadas sempre apanhavam muito, tentavam fugir e acabavam mortas”. Ela conta que até cogitou a fuga, mas que era realmente muito complicado. “Primeiro que o clube ficava em uma beira de estrada, não tinha pra onde ir. Segundo que a polícia e o pessoal da imigração também faziam parte do esquema, o que dificultava muito, e ainda tem pessoas vigiando nossa família no Brasil. Se fizermos algo de errado eles matam todo mundo”, explica Fabiana. Além disso, as traficadas se tornam pessoas sem identidade. “Ninguém nunca vai saber quem realmente você é, por que o passaporte é tomado e a gente recebe um novo nome, o nome de guerra com eles chamam”, lembra a goiana.

Para sobreviver ao tráfico, Fabiana teve que planejar o que ia fazer todos os dias.”Eu tive que criar uma rotina, isso que me ajudou a não enlouquecer. Se você não se adaptar você se mata”, explica. A goiana fez muitas amizades, inclusive com os clientes. Foi isso que a libertou. “A maioria dos clientes tinham muito dinheiro. Alguns pagavam muito pelo programa fora, cerca de 10 vezes mais, principalmente os árabes”. Os clientes sabem do tráfico, mas a única forma que podem ajudar é pagando a mais. Fabiana conseguiu juntar 28 mil euros em um ano. Os dois mil euros restantes ela pagou com as jóias que havia ganhado de presente, e por fim conseguiu ser libertada.
Condições degradantes
As condições em que as vítimas são obrigadas a viver causam vários comprometimentos na saúde física e mental delas.O pesquisador Mário Ângelo, que presenciou essas situações, explica que o ambiente é quase sempre insalubre e sem higiene. Foi constatado em sua pesquisa – Saúde, migração, tráfico e violência contra as mulheres – feita em parceria com o Ministério da saúde, que é muito grande a ocorrência de casos de Doenças Sexualmente Transmissíveis – DST’s – ,como a HIV, de mulheres grávidas – que são obrigadas a abortarem seus filhos em condições precárias de higiene deixando muitas sequelas físicas – , de dependência química de álcool e drogas, de depressão,de casos de suicídios e de doenças hormonais em função do abuso de anticoncepcionais.
“Na prostituição não se sabe o que é prevenção. Eu morria de medo de pegar AIDS”, conta Fabiana. Além disso, ela relata que existem cidades que são mais rígidas que outras. As traficadas são obrigadas a realizarem um rodísio e foi assim que a goiana conheceu o esquema do tráfico da cidade de Logroño e Santiago de Compostela, ambas na Espanha. “Nessas cidades os quartos tinham grades nas janelas e não tinham nenhum acesso à limpeza. E ainda, as novatas tinham que ficar uma semana tomando heroína na veia, era bem mais rígido”. O pesquisador Mário Ângelo, ressalta que a maioria das vítimas não eram usuárias de drogas antes de saírem de seus países. “Lá elas acabam tendo que usar, vezes obrigadas, vezes por que precisam”, afirma. Muitas além de virarem dependendes acabam tendo que se tornar traficantes também.  “Há uma associação muito grande entre o tráfico de pessoas e o de drogas. Elas acabam virando “aviões” para vender pequenas porções de drogas para outros países”, destaca.
Mesmo vivendo como prisioneiras e em péssimas condições de trabalho, muitas não querem ou as vezes não conseguem mais sair dessa vida. Em alguns casos, a vítima vivia em um lugar tão precário que considera aquela situação um luxo. “Algumas meninas não conseguiam mais sair em função da dependência química ou por se acostumarem tanto com aquilo a ponto de não conseguirem mais viver longe. Aquele se torna o mundo delas”, explica Fabiana. Ainda  existem casos em que a família não aceita a vítima de volta em função do trabalho de prostituta. Com isso, permanecer no tráfico se torna a única opção para essas mulheres.
Uma rede sem limites
São inúmeras pessoas envolvidas em uma rede de tráfico humano. Cada pessoa tem a sua função, tudo muito bem articulado. O que não se imagina é ter políticos, policiais, delegados, pessoas que trabalham na imigração e na embaixada dentro dessa rede de criminosos. O pesquisador Mário Ângelo afirma que o tráfico só acontece justamente por que existem pessoas na própria estrutura do governo, e principalmente nas polícias, que são coniventes e que ganham com esse esquema. “Os agentes do tráfico de pessoas, que vão desde os aliciadores até os agenciadores mais ocultos do sistema, fazem parte de uma rede bastante complexa e bem articulada, que envolve inúmeras pessoas e instituições que deveriam estar a  serviço da vida e dos direitos das pessoas, mas se articulam e agem contrariamente”, explica a irmã Eurides de Oliveira, Coordenadora da Rede “um grito pela vida” – grupo de religiosas que atuam em todo o país trabalhando na  prevenção e assistência das vítimas do tráfico.
Fabiana confirma essa questão. Ela afirma que os policiais recebiam denúncias do clube de prostituição e sabiam sobre o tráfico, mas que não faziam nada. “A gente ficava três dias presas e depois devolviam a gente para o clube”, lembra. Além disso, a vítima conta que se você for na embaixada brasileira, contar sobre o tráfico e pedir para ser deportada, eles ignoram o seu problema. Para ser deportada, segundo ela, é preciso ser parada aleatoriamente por um policial na rua com o passaporte vencido.
Além do número extenso de pessoas que fazem parte dessa rede, há outras questões que dificultam as ações contra os criminosos, como por exemplo o alto grau de poder financeiro e discrição com que eles trabalham. Segundo o Ministério da Justiça, no período entre 2005 e 2011, a Polícia Federal indiciou 381 suspeitos por tráfico internacional de pessoas para exploração sexual. Desse total, 158 foram presos. Ou seja, menos da metade dos crimes levou à punição dos criminosos. A Delegada da Polícia Federal, Paula Dora, explica como funciona o processo da denúncia até uma investigação de fato. “Nós recebemos muitas denúncias anônimas, denúncias de parentes de vítimas e tem também uma grande parcela ligada à questão  da cooperação internacional. Então algumas embaixadas mandam informações noticiando que quadrilhas foram desbaratadas fora do país. Esse é o primeiro ponto, como chega a informação. Depois que a informação chega na Polícia Federal são feitos levantamentos de inteligência para depois verificar minimamente a viabilidade de gerar uma investigação”, esclarece a Delegada.

Em busca de um recomeço, após terremoto que assolou o Haiti, Kesson Ervilos, 26 anos, deixou seu país em busca de dar inicio a uma nova jornada. Deixando para trás seu pai e seis irmãos. Hoje ele vive em Brasília há pouco mais de dois anos. Estudante de Sistema de informação e trabalhando em uma gráfica, Kesson disse que escolheu o Brasil por ter uma simpatia ao futebol e por apresentar boa economia. Ele veio sozinho em busca de uma oportunidade. Segundo ele, a entrada no país se deu de forma “legal”. Apresentou-se à Polícia Federal e fez a solicitação de “moradia permanente”. Ele relata que não houve problema em conseguir sua carteira de trabalho, que em 25 dias já estava em mãos, mas conta das dificuldades para adquirir os outros documentos. “Muita burocracia. Principalmente para a legalização com os meus documentos pra entrar na faculdade. Eu gastei muito dinheiro”. Segundo ele, teve que enviar os documentos para legalizar na embaixada do Brasil. “Gastei muito com a questão de envio de documentação. Eu perdi muito tempo também, passei 06 meses só pra conseguir fazer a legalização”.

Kesson afirma que muitos dos seus colegas que vieram para o Brasil, que entraram de forma ilegal pela fronteira terrestre, só optaram por esta forma devido às dificuldades encontradas que facilitassem esta vinda dos haitianos, de tal forma que não trouxesse gastos elevados ou longos períodos de espera. Com o país devastado, não havia estrutura para que conseguissem sair do Haiti já com a autorização de “moradia permanente”. “Muita gente perdeu tudo o que tinha, e que sair, quer procurar alguma coisa pra depois voltar e reconstruís suas vidas. Por isso que os haitianos compram o visto da República Dominicana, com esse visto, eles têm facilidade de entrar ou pelo Peru ou pelo Equador”. Ele conta da facilidade de entrar sem tanta burocracia, que ao hatiano chegar no Brasil, se apresenta à Polícia Federal, conseguindo CPF, carteira de trabalho e o “Visto provisório” por pedido de refugio. “Mas, é por isso que muitos estão entrando no Brasil. É a falta de um sistema que não está funcionando muito bem no Haiti, muitos preferem gastar dinheiro. Mas se tiver um sistema que funciona, de forma acessível a todos, eu tenho um requisito pra cumprir, dar certo, mas como não está funcionando bem, aí eles preferem passar na fronteira.Questionado se sofreu algum tipo de racismo, ele conta que aqui, apesar de existir racismo, nunca sofreu nenhuma situação constrangedora em relação à sua cor ou a ser de outro país, mas reforça que falta uma política de inserção destes no mercado de trabalho brasileiro.

Perguntado pela “saudade”, palavra abrasileirada e sem tradução para outro idioma, ele fala do sonho de voltar para o Haiti e ajudar seu pai, seus irmãos e de alguma forma, seu país. “Saudade não tem tradução. Então pra mim, saudade hoje é uma coisa que me deixa muito triste. Às vezes a pessoa não consegue se controlar. Porque sente a falta de alguma coisa. Então, a saudade hoje pra mim é muito grande.”

Não se sabe ao certo quando essa migração se deu início, mas não há duvida de que o fluxo que marca sua presença no Brasil iniciou ainda em 2010, após o terremoto que matou 250 mil pessoas, deixando cerca de 1,3 milhão de desabrigados.

Para a Diretora do Instituto Migrações e Direitos Humanos, Ir Rosita Milesi, criado com o objetivo de auxiliar esses haitianos que chegam ao Brasil sem terem para onde ir ou conseguir sua documentação, esses migrantes optam pelo Brasil, por possuir uma boa imagem no exterior. Eles procuram Brasília, por ser a Capital, e por achar que aqui terá mais oportunidades que as demais cidades. “Eles pensam que no Brasil tem muita proposta de emprego e que falta mão de obra. Principalmente por causa dos grandes eventos, como os jogos Olímpicos e a Copa do Mundo. Eles dizem que o Brasil é um país de paz. Não existe guerra nem conflito.”

De acordo com Rosita, os haitianos que optaram por entrar no país de forma ilegal, o processo de chegada, na maioria das vezes, se dava pela fronteira Norte, especificamente pelas cidade de Tabatinga, no Amazonas, Brasiléia e Assis Brasil, no Acre. O trajeto até a fronteira se fazia pelo Equador, Peru e Bolívia, quase sempre em vias terrestres ou de barco e em situações desumanas de vulnerabilidade extrema e desrespeito dos direitos humanos.

Direitos 

Com o intuito de evitar com que os haitianos continuassem a chegar ao Brasil sem Visto, trilhando caminhos perigosos, explorados por redes de tráficos de migrantes, o Conselho Nacional de Imigrantes (CNIg), criou a Resolução Normativa n° 97/2010, que permitia ao haitiano obterem Visto Permanente no Consulado brasileiro em Porto Príncipe, assim migrando de forma legal para o Brasil.

Com o número de migração em crescimento desordenado, o Conselho cria então o GT Haitianos Brasil, que teria como tarefa acompanhar a evolução deste processo migratório, analisando as demandas que chegariam ao conselho e contribuindo para a decisões que seriam tomadas pelo Órgão. A ideia, que era dar solução à situação que até então estava controlável, tronou-se insuportável, a ponto de instalar na fronteira Norte do país uma situação de quase calamidade humanitária. Então o Governo, por decisão da Presidência da República, com o intuito de amenizar a situação de calamidade que se formou, aprovou a Resolução Normativa 97/2012, que permitia a concessão de um Visto, com a duração de cinco anos, por razões humanitárias definidas na resolução como “aqueles resultantes do agravamento das condições de vida da população haitiana em decorrência do terremoto ocorrido naquele país em 12 de janeiro de 2010”, de acordo com o Conselho 2012.

Após esta resolução, a migração pelas fronteiras terrestres teve significativa diminuição, porém, por pouco tempo. As autoridades brasileiras exigiam certa documentação, o que em situação de catástrofe que o Haiti se encontrava após o terremoto, era inviável. Com esta dificuldade, a maioria optava por vir de forma ilegal e conseguiam o Visto pela fronteira Norte.

Além de “Vistos Permanentes” concedidos previamente à entrada no Brasil, segundo estatísticas do Conselho Nacional de Imigração, cerca de 7.647 pessoas receberam “Residência Permanente” no perídio de 2010 a 2013. Em pesquisa realizada pela Coordenação Geral de Migração do Ministério Trabalho e Emprego, os registros em várias fontes – entrada pelas fronteiras do Acre e do Amazonas, e Vistos concedidos nos Consulados brasileiros –  permitem estimar que em torno de 30 mil haitianos possam ter entrado no país, sendo a maioria homem, de idade de 21 a 30 anos. Dados de 2013 divulgados pelo Ministério do Trabalho e Emprego cita que em torno de 52,% desses haitianos, estão em ocupação técnica de Construção Civil.

 

Por Gabriela Soares

 

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