Letícia Cardoso tinha a vida em ordem. Morava com o marido e um coelho de estimação na zona norte de Porto Alegre, em uma casa alta de esquina, com vista para duas ruas.
Estudava gestão em saúde na universidade, trabalhava de casa, fazia mercado, cuidava do cotidiano.
A região já tinha visto alagamentos antes, mas nada que passasse da calçada ou durasse mais que uma noite. A água vinha, dava trabalho, mas ia embora.
Nascida em Salto do Jacuí, no interior do Rio Grande do Sul, e se mudou para Porto Alegre aos dez anos.
Desde então, conheceu muitos endereços pela cidade: viveu na zona norte, na zona sul, passou por São Paulo e Rio de Janeiro antes de retornar ao sul, com o marido, por volta de 2008.
Quando finalmente compraram a casa própria, escolheram uma residência no segundo andar, em um bairro com histórico de alagamentos, mas com promessas de melhorias — bombas, bacias de contenção, obras.
Era uma rua elevada e parecia segura o bastante.
O filho, longe dali, estudava em Rio Grande, também atingido pelas águas, mas sem danos à sua moradia.
Trabalhavam, estudavam, faziam mercado, cuidavam da rotina.
À noite, Letícia ia para a Universidade, no centro da cidade. A casa era alta, o terreno também. .
Os alagamentos que conheciam duravam pouco — chuva intensa, bueiros entupidos, água até o portão, mas nunca dentro.
Até então, a enchente era algo distante, resolvível.
Mas aquela semana de abril foi diferente. A chuva veio forte, parou, mas voltou. O que chamou atenção não foi o volume, mas a velocidade: o bueiro estourou, a tampa pesada foi arrancada e a água subiu em cascata.
Letícia e o marido acreditavam que, como nas outras vezes, a água recuaria. Nem pensaram em tirar o carro da garagem.
Foram dormir com essa certeza. Mas acordaram com a realidade batendo à porta. A água já tomava conta do térreo e cobria metade da roda do carro.
O terreno, que era alto, agora tinha um metro e vinte de alagamento a partir da rua. A água chegou ao terceiro degrau da casa.
Eles ainda resistiram. Havia comida, água potável, luz. Letícia aproveitou enquanto tudo ainda funcionava para ajudar como podia. Entrou em um grupo de cadastros de desastres, colaborando na localização de pedidos de socorro.
Trabalhava com mapas, indicando onde estavam os cadeirantes, os ilhados, onde ainda não haviam chegado os resgates. Passou um dia e meio fazendo isso, até a luz cair.
O contato com os vizinhos era mais virtual do que presencial. O bairro, misto de residências e comércios, era silencioso, mas o grupo do WhatsApp manteve todos conectados.
Por ali, sabiam quem precisava de ajuda, quais ruas estavam alagadas, quem ainda estava preso.
A solidariedade se formava em rede. Mas nem isso bastava para afastar o medo: houve roubos, empresas invadidas, até escolas arrombadas durante a enchente.
Por isso, quem podia, ficou. Letícia e o marido estavam entre eles — cuidando da casa, do bairro, esperando que a maré baixasse.
Mesmo com relatos e vídeos circulando, faltou um alerta que dissesse claramente: “saiam”. Letícia lembra que, se tivessem recebido esse tipo de aviso, muitos teriam conseguido proteger seus pertences e sair com calma.
Mas o que veio foi uma mistura de negacionismo e esperança.
“Vai parar de subir”, ela pensava. “As bombas vão funcionar.” Até que da sacada, viu barcos passando, pessoas sendo resgatadas.
Foi quando um grupo de voluntários parou em frente à casa. Eram dois rapazes e uma moça. Insistiram para que saíssem.
Letícia hesitou. Tinha comida, água, estava no segundo andar, achava que bastava esperar.
Mas o que ouviu daqueles voluntários ficou ecoando: “Trabalhamos em resgates, vocês não têm noção do que vimos. Não é seguro. A gente teve que voltar de madrugada para tirar pessoas.”
Naquele momento, Letícia entendeu que não era mais uma questão pessoal. “Era um tapa na cara”, lembra.
A tragédia não era só dela e do marido — era coletiva. A permanência deles poderia significar risco até para quem vinha ajudar.
Foi quando tomaram a decisão. O marido insistiu que ela fosse, e ele ficaria um pouco mais, cuidando da casa.
Ela vestiu uma roupa velha — já sabia que se molharia — e sentou no muro, esperando o barco. Levou quase nada.
Pegou algumas roupas, “meia dúzia de coisas”, acreditando que logo voltaria. A água era escura, espessa, suja. O trajeto até a casa da mãe, que ficava em uma área alta e segura, foi silencioso.
Hoje, Letícia fala com lucidez sobre tudo que viveu. O bairro onde se sentia segura já não inspira a mesma confiança. O número de casas à venda aumentou quando voltou.
Os que puderam, saíram. Os que ficaram, convivem com o medo e a desvalorização dos imóveis.
As bocas de lobo ainda estão entupidas, o barro continua nas ruas. Nenhuma limpeza efetiva foi feita.
A enchente passou, mas deixou rastros visíveis — nas paredes, no chão e principalmente na forma como Letícia olha para sua cidade. A água baixou, mas nada voltou exatamente ao lugar. Em 2025, a chuva voltou a cair
Por Pedro José Borges
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira