
Na casa de Patrícia e Kátia Liberato, filhas de Miriam Liberato Silva, desaparecida há 23 anos, a angústia é uma rotina. Nos olhares, a dor de não ter notícias da mãe e a esperança de um dia encontrar respostas para a pergunta mais dolorosa: o que aconteceu com Miriam? Ela está entre as pessoas desaparecidas no Distrito Federal.
Confira aqui especial sobre pessoas desaparecidas no DF na íntegra
O desaparecimento é uma lacuna que eu não desejo a ninguém. Eu já enterrei pessoas queridas e sei onde elas estão. Como perdemos pessoas de várias formas, são vários amores que a gente perde na vida. Cada um tem a sua importância. Mas minha mãe é um amor que não vai ser preenchido por nenhum outro, tive filhos e é um amor totalmente diferente. Então, a minha esperança é saber o que aconteceu ou ter nem que seja os restinhos dela.
– Kátia Liberato, filha mais velha de Miriam Liberato Silva


Em 10 de junho de 1999, Miriam fugiu de casa depois de uma briga com o marido e nunca mais voltou. Kátia, a mais velha dos quatro irmãos, lembra que as discussões eram recorrentes entre os pais e Miriam sempre arrumava as malas e ia embora.
“Desde esse dia, ninguém mais soube do paradeiro dela. Procuramos pessoas que poderiam saber, fomos aos lugares prováveis que poderíamos ter notícia, mas não tivemos sucesso”.
Os filhos de Miriam eram todos menores de idade quando a mãe sumiu. Por causa desta situação, eles não eram levados à sério pelas autoridades. O boletim de ocorrência, por exemplo, só pôde ser registrado apenas 4 anos depois, em 2003, quando Kátia tinha 18 anos.
“Quando procuramos os órgãos para pedir ajuda, nos falaram que não tínhamos um documento dela. Além disso, diziam que não poderiam intervir na situação, porque ela não gostaria de ser encontrada. Só que eu sou filha, posso querer saber da minha mãe. Eu achava que era um direito nosso”, relata Kátia.
A primogênita da família recorda que nem o pai ou outros parentes se interessaram em realizar o registro do desaparecimento ou buscar a mãe. Na época, o marido de Miriam era alcoólatra e praticava violência doméstica contra ela diariamente.
Em alguns dos episódios, Kátia chegou a chamar a polícia, contudo, por ser apenas uma adolescente, os militares disseram que ela era desobediente e que um adulto deveria resolver a situação. Apesar de conseguir registrar o boletim de ocorrência, os filhos de Miriam não veem nenhuma movimentação da polícia para investigar o caso.
As poucas informações que se têm em relação ao paradeiro da mãe foram encontradas a partir das buscas independentes realizadas por Patrícia e Kátia. “A minha frustração é saber que você procura uma pessoa e isso não tem importância nenhuma ou alguém para te ajudar. Toda vez que eu tento buscar informações, não as encontro”.
Em uma das ocasiões, Patrícia foi até a delegacia onde o boletim de ocorrência foi registrado e não recebeu a atenção devida.
“Entrei em contato com a Polícia Civil do Ceará, pois é o Estado em que minha mãe nasceu, e eles disseram que não era possível procurar porque não tinham acesso ao sistema de Brasília, porque os programas não se comunicam. Portanto, fui à delegacia onde registramos o boletim de ocorrência para ver o que foi feito em relação às investigações e fui muito mal atendida, a delegada foi muito insensível. Eu cheguei a passar mal ao conversar com ela”, conta.


Somente no Distrito Federal, foram registrados 2.078 boletins de ocorrência de desaparecimento. Deste total, 1.774 desaparecidos foram localizados na capital, mas 304 pessoas permanecem nunca foram encontradas. Este número representa um percentual de 85% de casos solucionados. Entretanto, a realidade do DF não é um espelho do restante do país.
Durante o ano de 2021, a cada hora, sete pessoas desapareceram no Brasil. Deste total, menos da metade foi encontrada (48%), aponta o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022. Ao todo, 65.225 pessoas sumiram em todo o país em 2021 e apenas 31.773 tiveram o paradeiro localizado.
Mais de 369 mil pessoas desaparecidas em 5 anos
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública monitora, desde 2017, as estatísticas de desaparecimentos no Brasil com base nas informações fornecidas pelos Boletins de Ocorrência das Polícias Civis dos Estados.
Nos últimos cinco anos, pelos 369.737 pessoas foram registradas como desaparecidas no Brasil, ou seja, uma média de 203 casos diários.
Entretanto, esses números são subnotificados. Há muitas situações que não chegam a ser comunicadas, há outras com mais de um registro, feito por diferentes familiares, e existem boletim de ocorrência com o registro de mais de uma pessoa desaparecida.
Estimar o número de pessoas que desaparecem anualmente segue sendo um desafio no Brasil, dado que o Estado não publica estatísticas periódicas sobre o tema. Embora a lei que cria o cadastro nacional de pessoas desaparecidas já tenha mais de três anos, até hoje o site do Ministério da Justiça informa que o sistema “está em construção”
– Samira Bueno, uma das autoras do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022
Esperança
Um dos únicos momentos de esperança para as irmãs Liberato foi quando fizeram a progressão de idade de Miriam. Esta técnica é desenvolvida pela Polícia Civil no Laboratório de Representação Facial Humana do Instituto de Identificação.
Este processo tem como objetivo demonstrar como seria a aparência atual de uma pessoa depois de um grande período desaparecida a partir do crescimento e envelhecimento facial aplicado em imagens de desaparecidos há pelo menos três anos, no caso de crianças ou há cada cinco anos para adolescentes e adultos. A elaboração de uma representação facial, chamada de arte forense, pode durar, em média, quatro semanas.
A chefe do Laboratório de Representação Facial Humana, Maria Doraci da Silva, explica que a progressão de idade pode ser realizada apenas com uma solicitação da autoridade policial responsável pelo caso. O próximo passo é entrar em contato com os familiares para reunir fotos recentes do desaparecido e várias fotografias de membros da família.
“Precisamos de registros de familiares. Em especial, na idade que queremos que a progressão represente. Assim, podemos fazer um estudo do padrão fisionômico da pessoa desaparecida e verificar com quem esse desaparecido se parece. E ainda, fazer uma análise do padrão de envelhecimento daquele grupo familiar”.
Além das fotografias, as famílias comparecem ao instituto para serem entrevistadas a respeito dos hábitos e características do desaparecido.
“O estilo de vida pode alterar a representação facial feita por meio da progressão de idade. Por exemplo, se a pessoa gostava de tomar sol, a pele dela deve ser bronzeada. Outras particularidades são questionadas também, como a textura e a cor do cabelo, o tom da cútis, deficiências, cicatrizes, tatuagens que podem sofrer alteração em razão da luminosidade e da qualidade da fotografia ou não serem mostradas no registro. Ainda perguntamos sobre a rotina do desaparecido, sobre o que ele gostava de fazer. Quando divulgamos uma progressão de idade, são publicadas outras informações que podem ajudar a identificar a pessoa”, detalha a especialista.
A outra etapa é consultar a literatura científica para verificar como ocorrem as mudanças faciais em cada faixa etária. Quando não há muitas fotografias disponíveis do desaparecido ou dos familiares, os papiloscopistas utilizam imagens de pessoas de um banco da própria Polícia Civil para desenvolver a progressão. O processo pode ser feito em diversos editores de imagem, entre eles, o Adobe Photoshop e o CorelDRAW. Depois de prontas, as imagens são analisadas por outros papiloscopistas para verificar o que pode ser melhorado.
A chefe do Laboratório monitora os casos de desaparecimento por meio do sistema da PCDF para saber qual representações faciais devem ser atualizadas. “Há vezes que a pessoa já foi encontrada ou foi dada como morta, mas não sabemos porque os familiares não informam à polícia, mas independente disso, eu faço as alterações necessárias porque faz parte do meu trabalho. Enquanto uma pessoa constar como desaparecida, fazemos as novas progressões”, conta.
Outro problema enfrentado pelos papiloscopistas são os cadastros desatualizados. “Em muitos casos de desaparecimentos antigos, o contato e o endereço do ente querido mudou e não conseguimos localizar os familiares para reunirmos mais informações”, relata a papiloscopista.







Ranara Lorrane Alves Melo
Ranara Lorrane Alves de Melo desapareceu quando tinha 11 anos. Ela foi vista pela última vez a caminho de uma parada de ônibus no Recanto das Emas. Vinte e um anos depois, a família de Ranara ainda tem esperanças de que um dia ela volte para casa ou faça uma ligação.
“Todo mundo tem aquela expectativa de que ela esteja viva e uma hora ela vai aparecer. Ela era muito esperta. Meu tio nunca trocou o telefone da loja, era o único número que ela sabia de cór. Isto é algo que não ninguém mexe, justamente, porque ele tem esperança que um dia ela vai ligar”, conta Marielly Pinheiro, prima adotiva de Ranara e gerente comercial de um agência de tecnologia em audiovisual.


O desaparecimento transformou a vida dos familiares da jovem. O pai adotivo de Ranara, por exemplo, entrou em depressão profunda e não consegue falar sobre o assunto. Ele a adotou quando ela tinha 6 meses de vida. A mãe de Ranara não tinha uma boa condição financeira e já criava vários filhos, como uma forma de ajudar, ele decidiu acolhe-la.
Entretanto, ele fazia questão que Ranara mantivesse contato com a família biológica, que vivia no Recanto das Emas. Assim, todas as sextas-feiras, a mãe de Ranara a buscava na casa do comerciante, em Taguatinga, e a trazia de volta no fim da tarde de domingo.
Contudo, naquele domingo, 25 de maio de 2001, foi quando tudo mudou. A mãe de Ranara não a acompanhou no caminho para a casa e desde então, ela nunca mais foi vista.
“A última informação, na verdade, foi que ela passou em uma vendinha, onde comprou uns doces e depois disso ninguém sabe. Não sabemos se ela chegou a pegar o ônibus ou se sumiu realmente lá no Recanto. Nunca tivemos notícia delas, apenas informações falsas de trotes. Já chegamos a ir ao Rio de Janeiro por causa dessas ligações”, relata Marielly.
Por causa de uma orientação equivocada de esperar 24 horas para comunicar o desaparecimento à polícia, o boletim de ocorrência do sumiço de Ranara foi registrado apenas um dia depois. A polícia deu início às buscas, mas o paradeiro de Ranara segue desconhecido.
“Meu tio deixou realmente nas mãos da polícia, sabe? Eu que não sosseguei. Eu sempre estou procurando, entrando em sites, redes sociais… Com a minha procura algumas pessoas entraram em contato, mas nunca tive realmente uma notícia mais contundente sobre a Ranara”, desabafa.


Vivos ou mortos
Na análise de Eliana Faleiros Vendramini Carneiro, Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, ora assessorando a Procuradoria-Geral de Justiça na coordenação do PLID – Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos, a Lei nº 13.812, de 16 de março de 2019, que instituiu a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas, não é efetivamente aplicada e o principal problema para a resolução do desaparecimento são as investigações.
“A Polícia Civil não atende esses mandados constitucionais. A obrigação da corporação vai muito além da análise de crimes, mas tange o risco concreto à vida, à integridade física e à liberdade do desaparecido. É preciso que seja acrescentado ao Código de Processo Penal (CPP) as buscas investigativas. Assim, estamos lutando por uma Lei que estabeleça um procedimento de busca investigativa. Pois na ausência de uma legislação não há como cobrar, precisa haver uma espécie de roteiro para a Polícia Civil seguir”, explica.
Além da falta de uma legislação no CPP, para Vendramini, os casos de desaparecimentos seriam levados mais à sério se houvesse uma mudança cultural na polícia em relação à questão dos desaparecidos.
“A delegacia tem que se procurar vivo ou morto, mas não procuram. Outra forma de mudar este cenário é a realização de programas de prevenção de preconceito nas delegacias. Eles fazem de tudo para concluir que o desaparecimento foi voluntário e não buscar, mas mesmo neste tipo de situação, os parentes têm o direito de saber se o ente querido está bem”, opina.
O desaparecimento começou a ser discutido no Brasil somente no Código Civil de 1916. Entretanto, a preocupação da legislação era relacionada à vida dos desaparecidos, mas em seus bens. A principal preocupação relacionada ao tema eram os bens do desaparecido.
O texto determina as condições de sucessão provisória e definitiva, referente aos ausentes e, relacionado, exclusivamente, à proteção do patrimônio do desaparecido. “Se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma ocasião, não se podendo averiguar se alguém dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultaneamente mortos”, define a Lei n 3.071/1916.
Somente em 2002 com um novo Código Civil que foi acrescentado à legislação: “A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento”. Contudo, ainda não se falava de uma política nacional unificada de busca de desaparecidos.
Antes, se preocupavam com o bem material do desaparecido, mas nunca em procurá-lo. A ação de morte prevenida faz com que os familiares se sintam matando o ente querido. O que vem depois? nada? Fomos nos preocupar com as pessoas em 2019. Agora, temos que detalhar. Sumiu um carro, tem investigação, sumiu uma pessoa, não. Ou seja, uma pessoa vale menos que o status da coisa.
– Eliana Faleiros Vendramini Carneiro, Promotora de Justiça
Auxílio às autoridades

O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) atua no contexto brasileiro com o objetivo de reduzir as consequências humanitárias da violência armada na população das cidades, restabelecer o contato entre familiares de migrantes, e apoiar respostas ao sofrimento dos familiares de pessoas desaparecidas.
No âmbito do desaparecimento, o CICV é uma das fundações mundiais mais antigas que trata sobre o assunto. Portanto, no Brasil, o Comitê busca auxiliar as autoridades na prevenção e investigação de casos de desaparecimento a partir da promoção de boas práticas, seja no campo forense de gestão de pessoas falecidas ou nas buscas.
“Procuramos dar uma resposta mais eficaz e mais efetiva por meio do fortalecimento de mecanismos de busca e da construção de centros de atenção aos familiares de pessoas desaparecidas. É uma estrutura coordenada com diversos atores envolvidos na política e que tem diretamente o contato com os entes queridos de pessoas desaparecidas. São eles que vão conhecer as circunstâncias essenciais do desaparecimento, porque são eles que realmente sofrem as consequências, que convivem com a ausência. Assim, eles esclareceram de uma forma melhor suas necessidades para aperfeiçoar o sistema e as políticas locais, nacionais voltadas ao desaparecimento ”, detalha Diego Portela de Castro, assessor do Programa de Pessoas Desaparecidas e suas Família do Comitê Internacional da Cruz Vermelha.
Na avaliação do CICV, o desaparecimento acontece quando o paradeiro de uma pessoa é desconhecido por seus familiares ou quando ela é dada como desaparecida, segundo fontes fidedignas, devido a um conflito armado, violência interna, desastre natural ou outras crises humanitárias.
Ainda, de acordo com o Comitê, o desaparecimento é uma realidade brasileira, que se prolonga há décadas e está ligada a fatores diferentes, entre os quais, a violência. Podem ser várias as circunstâncias que envolvem o desaparecimento, contudo, a ausência de esclarecimento sobre a situação dificulta uma compreensão mais completa e fidedigna do fenômeno.
“Independentemente disso, quando a atenção se volta para as famílias que procuram por um ente querido, os efeitos – concretos e devastadores do desaparecimento – se mostram inquestionáveis: quanto menor a resposta da comunidade e dos serviços públicos, mais graves tornam-se as necessidades dos familiares de pessoas desaparecidas”, aponta o relatório Relatório: “Ainda? Essa é a palavra que mais dói”, publicado pelo CICV em 2021.
Durante o tempo de atuação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha no Brasil, a organização percebeu a falta de um sistema unificado de buscas de desaparecidos em todo país e, atualmente, o CICV trabalha ao lado das autoridades competentes para que ocorra esta integração entre os Estados e o Distrito Federal.
A família de Miriam sofreu muito com a falta de apoio dos responsáveis por tratar deste tipo de ocorrência. Em primeiro lugar, o desaparecimento foi registrado muitos anos depois por uma orientação errada da polícia. E ainda, as únicas informações sobre a Miriam foram descobertas a partir de investigações clandestinas.
“Um desaparecido deve ser buscado pelas autoridades competentes, ou seja, os agentes públicos. Entretanto, exceto em casos de desaparecimento forçado, desaparecer não é um crime, também não é um direito porque se a pessoa tem uma dívida ou comete um crime e ela se encontra desaparecida, ela deve ser encontrada. Contudo, o desaparecimento civil, apesar de não ser crime, certamente, vai deixar vítimas: os entes queridos, que precisam de uma atenção especializada e, ainda, a própria pessoa desaparecida pode ser uma potencial vítima de um crime como violação de direito ou de alguma violência”, explica Castro.
Quando uma pessoa precisa lidar com a ausência de um ente querido, ela pode vir a apresentar uma série de problemas de saúde físico e emocionais.
Como o pai adotivo de Ranara Lorrane. Ele se isolou completamente da família e entrou em depressão profunda. Atualmente, o comerciante não consegue nem falar sobre o desaparecimento da filha mais nova. Além disso, outras necessidades foram notadas pelo CICV, entre elas, assistência jurídica e econômica.
Ao verificar essas questões relacionadas aos familiares de desaparecidos, o Comitê Internacional da Cruz Vemelha identificou que quem fica, também são vítimas do desaparecimento e precisam de um auxílio integrado.
“Nós identificamos que o desaparecido está presente o tempo todo na mente das pessoas com quem ele se relacionava, ainda que ausente fisicamente. A família acorda pensando na pessoa desaparecida e dorme pensando nela, todos os dias”
Se você possui alguma informação sobre Miriam ou Ranara, entre em contato com a PCDF por meio do 197, pelo WhatsApp (61) 98626 1197 pelo e-mail: denuncia197@pcdf.df.gov.br ou pela 197 Denúncia On-line: www.pcdf.df.gov.br/servicos/197
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Por Ana Clara Avendaño