As mãos enrugadas segurando um terço. Os pés calçados em meias até as canelas em um calor de 32ºC. Uma roxa e outra rosa. As pernas finas vagam por um quarto com cheiro de incenso onde os olhos juram terem visto o título de eleitor pela última vez. O corpo cansado de Maria de Fátima Gonçalo, 74 anos, não é problema para ir votar. “Nada vai me impedir de votar de novo”.
Com a aposentadoria no bolso e saindo de casa apenas para ir ao culto, a idosa não comparece às urnas eletrônicas desde que completou 70 anos. A labuta na roça desde a infância e os anos como empregada doméstica e babá a fez acreditar que ela “não prestava para essas coisas”.
Distante do que ela chama de “politicagem”, as lideranças que Maria conheceu em 74 anos foram a soberania do pai e mais tarde a da patroa que pedia café na cama às sete horas. Os joelhos doendo a lembra do motivo de ter ido embora da cidade goiana para morar com a única filha em Águas Claras, na zona sul da capital federal.
Com ajuda da filha, Maria regularizou o título e diz que ainda levará o “eleitor de papel” para sua volta às urnas. Com o corpo cansado do trabalho de uma vida inteira, a idosa acredita que chegou a hora de ajudar o país, mesmo seu voto sendo facultativo.
Maria de Fátima faz parte dos mais de 360 mil brasilienses idosos com o título eleitoral regular na capital federal. O TSE mostra um aumento de quase 70 mil eleitores com 60 anos ou mais. Em 2018, eram 291.525 eleitores na faixa etária no DF. Os eleitores com 60 anos ou mais somam 30,2 milhões – ou 20,4% do eleitorado neste ano. É uma fatia maior do que nas eleições passadas, quando chegavam a 18,8%.
Há 20 anos, os idosos representavam apenas 13,2%.
A aposentada também faz parte de um novo perfil de eleitores no Brasil: mulheres. Elas representam 78,5 milhões das pessoas com título regular, o que corresponde a 52,9% do eleitorado.
No convívio de Maria, ela não se lembra de quantas das colegas de sua idade irão votar. Para a maioria, o dever da mulher se resume a lavar, passar e cozinhar, o voto feminino ainda é questionado. Não foram ensinadas a serem diferentes.
Na tapera em que Maria vivia com a família, no interior de Goiás, em Jataí, o único direito dela, da mãe e das irmãs era “no fogão”. Com a barriga quente e as mãos geladas da água da bica, Maria não pensava que um dia iria ter gosto por votar.
Nos derradeiros passos da terceira idade, Maria enxergou um jeito de melhorar a situação para as gerações futuras.
“Não alcança o pobre”
Há oito horas na Rodoviária do Plano Piloto, na capital federal, Josenete Pereira, 70 anos, finalmente junta as roupas que estão no chão para ir embora. A idosa embola tudo dentro de uma rede e pendura nas costas. Com passos lentos, despede-se das amigas e entra na fila do ônibus 400, com destino a Brazlândia, região administrativa a 40 km do centro de Brasília.
No dia seguinte a comerciante estará de volta para vender as blusas de crochê que faz. Josenete leva cerca de três dias para terminar uma peça de roupa que será vendida por até 60 reais, valor da sua peça mais cara exposta no chão para quem passa pelo local.
Com vida dura desde que se entende por gente, a velhice não seria diferente. Se dar ao luxo de parar de trabalhar não é uma opção. A baiana se orgulha dos mais de 20 anos de rodoviária em trabalho honesto. O crochê, que aprendeu a fazer com a mãe, é o único sustento da família. O marido de Josenete tem Mal de Alzheimer e não consegue mais trabalhar.
Josenete Pereira trabalha há mais de 20 anos na rodoviária. Crédito: Milena Carvalho
Para colocar comida na mesa, Josenete pretende trabalhar até o coração parar de bater. “Dizem que pobre e rico morre igual, mas não é não. Até no resto da ossada do pobre vai ter menos dente”. A mulher perdeu três dentes na caminhada da vida.
A idosa não recebe nenhum auxílio do governo e diz que não votaria nem se a pagassem. Com riso banguelo, a comerciante volta atrás e explica que se a pagassem bem, ela votaria. Do dinheiro, ela precisa.
Moradora da cidade de Brazlândia, a idosa explica que para ela, o candidato não faz diferença, porque a política “não alcança o pobre”. Mesmo isenta, Josenete diz sonhar com comida mais barata e preço justo do aluguel.
“Meu pai mandou“
A dona de casa Betânia Maria da Silva, 81 anos, não se lembra de qualquer episódio de sua vida em que se interessou por política. A baiana nasceu na cidade de Barreiras e mora no Guará, na capital federal há 40 anos. Nas eleições de 2022, a idosa decidiu que não irá votar.
Para ela, a política não traz boas lembranças. Betânia, a mãe, e mais quatro irmãs só votavam em quem Juvenilson da Silva, pai da menina, votasse. Mesmo crescidas, as mulheres tinham que continuar prestando contas ao provedor da família, assim perderam o gosto pelas eleições.
Apesar de admitir ser importante para o futuro do país, a idosa comparecia às urnas eletrônicas apenas para não ser punida, ela ainda acreditava que a decisão eleitoral não era um dever dela.
Agora, desobrigada do voto, Betânia jura que ficará o mais distante possível dos “alienados” e rezará para o futuro do país.
Por Milena Carvalho (texto e fotos)
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira