
Vencer a qualquer custo não faz parte da proposta da principal celebração esportiva de etnias nativas do país. Torneio distribui medalhas a todos os participantes, sem pódio ou qualquer destaque para os campeões. Próxima edição está marcada para 8 a 16 de novembro, em Cuiabá (MT)
Desde 1996, os Jogos dos Povos Indígenas reúnem etnias de todo o Brasil para celebrar suas tradições por meio do esporte. A proposta encarna uma das dimensões sociais definidas pelo professor Manoel Tubino, que classifica as atividades físicas entre destinadas à educação, à participação – vertente adotada no torneio com os primeiros habitantes do país – ou ao desempenho, quer dizer, à busca por vitórias, recordes e compensações financeiras.
As diferenças entre os Jogos Indígenas e o esporte-desempenho dos campeonatos profissionais começam na filosofia de disputa. “Para nós, o mais importante não é ganhar, não é levar vantagem”, diz Carlos Justino Terena, fundador e organizador da iniciativa. “Nossa prioridade é a celebração da família, o encontro, a alegria, a dança, o canto e também os jogos em si.”
Segundo o organizador, boa parte das modalidades sequer envolve etnias distintas, apenas indivíduos de um mesmo povo. São os jogos demonstrativos tradicionais, como lutas corporais e o futebol de cabeça (jikunahati).
Mas índios de origens diversas se enfrentam nos jogos nativos de integração – arco e flecha, arremesso de lanças, canoagem, cabo de força, corrida de tora, provas de velocidade e resistência e natação de travessia em águas abertas.
Além das modalidades demonstrativas e nativas de integração, os povos disputam partidas de futebol, classificadas como “jogos ocidentais”. Realizam-se torneios femininos e masculinos. “A duração é de meia hora, com dois tempos de 15 minutos, a opção de usar ou não chuteira e a presença de juiz, figura ausente das provas tradicionais, assim como o relógio”, explica Terena.
Outra característica marcante dos Jogos Indígenas é a inexistência de pódio ou destaque para os vencedores das competições. “Não estamos buscando campeões”, enfatiza o organizador. “Estamos buscando dignidade para o ser humano indígena. Todos os participantes ganham medalha.”
Para o estudante Eduardo Caetano, de 10 anos, os Jogos ajudam a recuperar a cultura dos povos indígenas e servem de lição ao homem branco. “Eles não são como nós, que, mesmo competindo com juiz, às vezes apelamos”, avaliou o garoto após palestra de Terena a alunos de ensino fundamental do Serviço Social do Comércio (Sesc), em meados de outubro, na Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, no Pavilhão de Exposições do Parque da Cidade.
Natureza
Todos os materiais utilizados nas provas demonstrativas e de integração têm fabricação indígena, a partir de substâncias encontradas na floresta. Cada povo leva, por exemplo, suas flechas e seus remos. Bolas são feitas de resina vegetal e até o fogo que acende a tocha em homenagem ao evento é obtido por técnicas milenares, como o atrito de pedras e a fricção de madeiras.
Na próxima edição, a 12ª da história, de 8 a 16 de novembro, em Cuiabá, Terena prevê que a organização reserve três ou quatro dias para as etnias fabricarem seus utensílios. “A gente quer observar essas práticas e entender como é a tecnologia de cada povo. Sabemos que um pessoal do Xingu usa um tipo de folha numa das fases da produção da bola, para que ela fique maior. Já outros povos utilizam uma resina que deixa o material mais pesado.”
O período de realização dos Jogos, sempre no segundo semestre, também segue preceitos tradicionais de sustentabilidade, uma vez que as arenas costumam ser montadas em matas próximas às cidades-sede. As competições acompanham o início da estação chuvosa, para facilitar o reflorestamento.
“Quando a gente começa a montar os Jogos, em qualquer lugar do Brasil, escolhe um lugar ermo, no meio do mato, digamos assim, e leva um pajé para olhar se realmente pode ser ali”, contou Terena. “Antes de desmatar, a gente pede licença à natureza para usar aquele lugar, que não é nosso, mas do passarinho, do tiú, da cobra, da minhoca, da formiga.” Ao final das disputas, cada etnia participante planta uma árvore de uma espécie nativa.
Por motivos culturais, as competições acontecem em dias e noites de lua crescente. “Os Jogos são bons para nós e para o branco, porque esse tipo de demonstração precisa entrar no coração da pessoa”, afirmou. “Por que realizamos na cidade e não na aldeia? Porque queremos mostrar ao branco quem somos nós. A partir do momento que você conhece, passa a respeitar.”
Organizados pelo Comitê Intertribal Memória e Ciência Indígena, os Jogos têm apoio do Ministério do Esporte. A 12ª edição ocorre em um jardim botânico de Cuiabá, com previsão de 1.600 índios de 48 etnias nacionais e 16 etnias estrangeiras. Segundo Terena, discute-se a criação de um evento mundial.
Por Rodrigo PdGuerra – Pós-graduação em Jornalismo Esportivo