Nem sempre a faixa protege

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Atropelamentos nos locais que deveriam ser de segurança evidenciam o desrespeito dos condutores de veículos.

Sob inspiração da música Cidade Ideal

Foto: Isabele Azenha

Os moradores de Brasília, a metrópole que faz propaganda de segurança na faixa de pedestre, ainda se espantam quando há um acidente em um local que deveria ser seguro. Nos últimos cinco anos, 26 pessoas morreram nesse espaço. Porém, no site do governo local há a seguinte divulgação: ”Não é novidade que o Distrito Federal é referência nacional quando se fala em respeito ao pedestre”.

O desrespeito alheio foi sentido no corpo pela estudante Mariana Scanoni, de 17 anos, que sobreviveu ao impacto do atropelamento em plena faixa de pedestre, de frente ao Colégio Militar de Brasília, local em que estuda. O motorista, ao invés de prestar assistência, fugiu do local. Mariana foi socorrida pela mãe e levada pelo Samu para o hospital. 

A campanha completou 27 anos. Porém, o acidente envolvendo a estudante Mariana prova que nem a capital, conhecida por essa atitude, escapa dos índices de acidentes no trânsito. O DF registrou, no ano passado, 248 mortes no trânsito, sendo quatro em faixas de pedestres.

Gráfico: Isabele Azenha

O desejo dos moradores do Distrito Federal não foge do sonho dos cachorros, como dita a canção de Chico Buarque em “Cidade Ideal”. A música traz a reflexão de que enquanto existirem carros transitando pelas vias, todos estarão suscetíveis a se envolverem em acidentes, até mesmo na capital reconhecida pelo respeito ao sinal de passagem dos pedestres.

Susto

Foto por: Isabele Azenha

Mariana é recém formada no ensino médio, que cursou todo no Colégio Militar de Brasília, o espaço que foi sua casa do sexto ano ao “terceirão” se transformou em um cenário assustador. No início da tarde do dia 13 agosto de 2024, terça -feira, a rotina de Mariana Scanoni foi interrompida. Para ela, foi um grande susto. Mariana foi imobilizada por um socorrista e levada ao hospital. 

Eu estava indo para a escola (Colégio Militar de Brasília) para encontrar minhas amigas e irmos juntas para o cursinho. Quando fui atravessar a faixa, um carro branco acelerou para pegar o sinal amarelo e me atropelou. Eu não o vi chegar, só senti o impacto. O motorista não parou para prestar socorro e fugiu.”

Um socorrista que estava no local e os amigos de Mariana a ajudaram até a ambulância chegar. A estudante saiu do hospital no mesmo dia sem ferimentos graves. Porém, foi instaurada uma ferida psicológica em sua vida:

“Na hora do acidente tive muito medo de algo acontecer com minhas pernas e eu não poder mais dançar, fiquei com muita raiva em pensar que esse acontecimento poderia me impedir de fazer uma das coisas que mais amo, eu ficaria muito mal”, adiciona Mariana, que faz aulas de dança desde os 3 anos de idade.

“Mari”, como é chamada pelos amigos, se diz uma menina muito cuidadosa. Ter acontecido em um momento tão corriqueiro, aproximou esse tipo de acidente não só da vida da adolescente, como aproximou da vida de dezenas de estudantes que a conhecem e passam pela mesma faixa de pedestres quase todos os dias. O recado está dado: poderia ter sido qualquer um.

“Depois do acidente, não houve muitas mudanças em minha vida, mas eu tenho tido medo de atravessar a rua novamente”, completa Mariana.

No meio fio

A artista e publicitária Carol Chavarri, 29, viveu algo semelhante em 2016. Ao atravessar uma rua, na 712 Norte, ela foi surpreendida por um carro que a acertou em cheio na faixa de pedestres. A jovem, coincidentemente, estava perto do cursinho e também é bailarina, assim como Mariana. Carol foi atropelada enquanto atravessava a faixa de pedestres em frente ao curso Pódion e foi deixada no meio fio pelo motorista que fugiu sem prestar socorro.

Carol recorda com precisão os detalhes daquele dia. “A faixa não tinha semáforo, mas era sinalizada. O local era um pouco escuro, e eu vi dois carros pararem nas primeiras faixas. Ao atravessar, um carro que eu não tinha visto surgiu rapidamente na terceira faixa. Só ouvi o barulho do freio e o impacto na minha coxa”, descreve. O impacto a arremessou no ar e, quando caiu, parte de seu corpo ficou na rua e as pernas no meio-fio.

O susto foi grande, mas Carol se manteve consciente e foi ajudada por uma mulher que estava por perto. “Ela foi muito essencial para me ajudar, me acalmou, falou com meus pais e me manteve alerta. Um grupo de ciclistas que passava também parou e um deles me disse para não me mexer, que era importante esperar a ambulância”, relembra Carol, que, na época, havia assistido à série Grey ‘s Anatomy e sabia que não deveria se mover.

No momento do acidente, o medo de não poder mais dançar dominou os pensamentos de Carol. “Minha maior preocupação era o quadril, que estava bem na divisão do meio-fio”, relembra, temendo que algo grave tivesse acontecido. Para ela, a ideia de perder a capacidade de dançar era assustadora, principalmente com o vestibular se aproximando em apenas quatro dias. “Eu fiquei muito preocupada, chorando e repetindo que não poderia mais dançar”, diz Carol. Mesmo em meio ao caos, os socorristas, incluindo o médico do Samu, a tranquilizaram, afirmando que tudo ficaria bem e que ela dançaria novamente, uma esperança que a ajudou a enfrentar o pânico daquele momento. 

O motorista que a atropelou, um homem de terno que aparentava estar saindo do trabalho, desceu do carro, mas não ofereceu ajuda. “Ele estava assustado, se agachou, mas não falou nada comigo, ficou a uns três passos de distância, e depois entrou no carro e foi embora. Não prestou socorro”, conta Carol.

No Hospital de Base, o atendimento inicial foi superficial, o que preocupou sua mãe. Elas decidiram procurar outro hospital, onde Carol foi diagnosticada com uma fratura no nariz, uma lesão que até hoje a incomoda. “A pontinha esquerda do meu nariz dói muito, não posso nem coçar quando estou resfriada”, comenta. Mesmo sem lesões graves, o trauma psicológico foi profundo. “Por quase um ano, tive medo de atravessar a rua, mesmo sendo muito cuidadosa.”

Carol Chavarri fala sobre o medo de não poder mais dançar pós acidente.

Foto: Arquivo pessoal

Vestibular

Dois dias após o atropelamento, Carol Chavarri decidiu retornar ao cursinho. “Eu era a celebridade do cursinho”, brinca. Ela conta o apelido que ganhou dos colegas: “a menina da faixa”. Ao caminhar pelos corredores, todos a observavam. Em um momento inesperado, um professor a puxou para dentro de sua sala, onde os alunos começaram a aplaudi-la. Ele fez um discurso motivacional, admirado por Carol ter enfrentado o que enfrentou e ainda assim comparecido à aula. “Entrei na minha sala e o professor foi super legal comigo”, diz.

Apesar do esforço para manter a rotina, as sequelas físicas ainda estavam presentes. “Meu olho ficava fechando, e eu só consegui assistir a uma aula e meia. Não estava aguentando ficar com os olhos abertos, então tive que voltar para casa”, conta Carol. Uma colega do cursinho sugeriu que Carol entrasse com um pedido especial para fazer a prova em condições diferenciadas, levando em conta o acidente recente. “Ela disse que uma conhecida dela tinha feito a prova do hospital e que eu deveria tentar também”, explica Carol. Determinada a seguir em frente, ela buscou os recursos disponíveis: pediu uma sala individual, assistência para ler e preencher o gabarito, além de uma cadeira acolchoada. “O mais importante para mim era ter uma hora a mais de prova, porque eu não sabia como estaria no dia, se estaria mais lenta ou com dor”, comenta. Embora seu pedido de tempo extra tenha sido negado, os outros foram atendidos.

No dia do vestibular, Carol se preparou com cuidado. Levou um boné para proteger os machucados do sol e um travesseiro para se sentir mais confortável durante a prova. “Foi uma experiência diferente. Fiz a prova sozinha, com três fiscais na sala. Um era o fiscal geral, o outro preencheria o gabarito e o último leria para mim, além disso, um gravador registrava tudo”, conta. Apesar de toda a pressão física e emocional, Carol passou no vestibular, surpreendendo-se com o resultado. “Eu fiz a prova tendo sido atropelada quatro dias antes, e essa era a minha maior preocupação”, revela.  

Ainda assim, o trauma do acidente não desapareceu de imediato. “Por quase um ano, o acidente ainda estava muito vivo em mim, principalmente com o gatilho do som do freio”, confessa. Hoje, Carol sente que o medo de carros permanece, mesmo que em um nível subconsciente. Essa resiliência, tanto no dia do atropelamento quanto no vestibular, reflete a capacidade de superar desafios que pareciam insuperáveis, mantendo o foco em seus sonhos e em seu futuro.

Carol comemorou com as amigas no dia do resultado do vestibular da UnB.

Foto: Arquivo pessoal

Aprendizado

Pouco tempo após o acidente, a faixa de pedestres onde Carol foi atropelada recebeu melhorias. “Menos de um mês depois, colocaram mais luz no poste e a faixa ficou mais iluminada”, conta ela, ainda surpresa com a rapidez da mudança. Brincando, ela lembra: “Eu sempre dizia: ‘Eu fiz a diferença, eu iluminei essa faixa.’” Para Carol, o incidente não só transformou sua vida pessoal, mas também trouxe mudanças práticas para o local, o que ela enxerga como um reflexo da necessidade de mais segurança nas vias.

Carol tomou conhecimento da visão do motorista envolvido no atropelamento. “Não lembro quem me contou ou como soube disso, mas disseram que o motorista estava vindo na velocidade normal, sem a intenção de parar”, relata. Segundo ela, o problema começou quando os dois primeiros carros pararam para dar passagem, mas avançaram antes que ela completasse a travessia. “Quando eu ainda estava atravessando, esses dois carros já seguiram em frente. O terceiro carro não me viu direito, achando que não tinha ninguém na faixa.”

Essa situação evidenciou um comportamento comum e perigoso nas ruas de Brasília. “É uma prática muito comum: ‘Ah, o pedestre saiu da minha frente, vou seguir.’ Mas não é assim que deveria ser”, adverte Carol. Ela enfatiza a importância de os motoristas esperarem o pedestre completar toda a travessia antes de avançarem. “Se há alguém na faixa, independente de onde esteja, você deve esperar”, reforça. Essa lição, para ela, não é apenas uma regra local, mas uma questão de segurança para a vida.

A experiência de Carol também impactou aqueles ao seu redor. “Uma amiga minha, depois do acidente, me disse: ‘Amiga, eu estou muito impactada com isso tudo, porque eu fazia muito isso de seguir antes do pedestre atravessar completamente, mas agora eu parei.’” Para Carol, esse tipo de mudança de comportamento reflete o impacto do aprendizado sobre segurança no trânsito, um pequeno mas significativo avanço que poderia evitar outros acidentes futuros.

Para solicitar melhorias na sinalização das faixas de pedestres, o Detran e a ouvidoria do Governo do Distrito Federal disponibilizaram algumas orientações para os cidadãos. Com essas instruções, é possível entender como requerer a instalação ou manutenção das sinalizações para os pedestres no DF.

O que fazer

O que deve ser feito ao se deparar com uma cena de acidente de trânsito, segundo a bombeira Natália Coelho:

A psicóloga e Capitã do Corpo de Bombeiros Militar do DF, Natália Coelho, 37, destaca o que deve ser feito em uma situação de atropelamento. Segundo a especialista, a primeira coisa que deve ser feita é ligar para o 193 (Bombeiros)  para solicitar ajuda especializada. Ao realizar a ligação, é de extrema importância a atenção para repassar as informações corretas.

Às vezes no nervosismo, as pessoas acabam nos passando informações imprecisas ou incorretas, e isso dificulta muito a abordagem dos bombeiros.”

Após isso, prestar atenção na segurança da cena é o mais importante. Deve-se garantir que não vai acontecer outro acidente em decorrência ao veículo ou pessoas paradas na via. Assim, ligar o pisca alerta, utilizar o triângulo do carro ou galhos de árvore para sinalizar o acidente com alguns metros de distância para que os outros carros possam reduzir a velocidade a tempo, é a melhor forma de evitar outro acidente.

Por outro lado, o que não pode ser feito também deve ser lembrado. Não é ideal ficar mexendo na vítima, pois isso pode agravar as lesões dela, e nem ficar mexendo nas ferragens do carro, caso a vítima ainda esteja presa. Também não devemos dar água, ou qualquer tipo de bebidas ou comidas, tudo isso pode agravar a situação da vítima.

Omissão

O Código Penal Brasileiro, em seu artigo 135, deixa claro que a responsabilidade de agir é um dever social, especialmente quando há uma possibilidade de auxílio sem risco pessoal. Promover a conscientização sobre a omissão de socorro não é apenas uma questão de legislação, mas de transformação cultural. É essencial que as pessoas entendam que, em situações de emergência, a ação imediata pode salvar vidas. 

A pena para esse tipo de crime pode variar entre detenção (de um a seis meses) ou multa. O crime é definido na lei como: 

“Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública”

Além disso, a pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta em morte.

Crime

Os casos de atropelamentos podem gerar uma série de perguntas sobre o que leva um motorista a não parar em momentos de emergência e como a sociedade e o sistema de justiça tratam essas situações. Para entender melhor, o psicólogo especializado em psicologias humanistas, Fauzi Mansur, 62, avalia que a reação inicial de fuga é uma resposta primária dos indivíduos e está ligada à sobrevivência. “Porém, esse comportamento pode variar entre cada pessoa de acordo com as experiências de vida de cada um”.

Uma pessoa que possui experiências de vida positivas, em que foi possível superar desafios com sucesso, está mais propensa a prestar socorro à vítima. Por outro lado, alguém que possui muitas experiências de vida negativas, que passou por muitos traumas ou que não obteve muito sucesso na resolução das adversidades de sua vida pessoal tende a fugir.

  Natália Coelho também ressalta outra questão importante. A profissional afirma que, ao lidar com pessoas envolvidas em acidentes de trânsito, devemos transmitir com calma e transparência tudo que está acontecendo. 

“É importante que a pessoa que vai prestar socorro tenha uma abordagem calma, segura e acolhedora. Devemos assumir uma postura tranquila, que explique pausadamente, com clareza que já pedimos ajuda, que o socorro está chegando e que passe alguma segurança para vítima”.

A bombeiro também diz que se a cena do acidente foi traumática para os envolvidos, o que pode ser feito para minimizar as consequências psicológicas vai ser feito posteriormente à situação. Ou seja, a recuperação será feita dentro do consultório com especialistas.

A psicóloga também orienta para os colegas e parentes dos envolvidos com o acidente, principalmente a vítima:

“O ideal é não fazer a pessoa ficar revivendo aquilo, perguntar toda hora o que aconteceu, como aconteceu… Depois chega outra pessoa e pergunta de novo… Isso pode agravar a situação psicológica dos envolvidos”

Por Isabele Azenha

Com supervisão de Luiz Cláudio Ferreira e Gilberto Costa

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