Embora vivam nas sombras, os morcegos não são maus e assustadores. A imagem de um ser sanguinário foi construída ao longo dos anos por vários personagens, mas se fôssemos transformar esses animais em seres humanos, o perfil deles seria similar ao do homem-morcego, ao contrário da visão da maioria das pessoas, que os vê como o Conde Drácula.
Assim como o Batman, esses pequenos mamíferos prestam serviços importantíssimos para a sociedade. Além de serem um dos maiores plantadores de árvores do mundo, os morcegos fazem a polinização de diversas flores e dispersam as sementes dos frutos que comem, como o pequi, a banana e o caju. Tiago Furtado, doutorando em Ecologia pela Universidade de Brasília – UNB, explica o motivo que leva os morcegos a serem ótimos plantadores: “sendo o único mamífero que tem a capa- cidade real de voo, o gasto de energia desses bichos é extremamente alto. Tendo uma alimentação constante por conta desse esgotamento energético, uma parte das sementes são dispersadas durante o processo.”
Os morcegos insetívoros também tem um papel importante nos serviços ecossistêmicos. Esses bichos podem comer centenas de insetos em apenas uma noite, ajudando a combater doenças e pragas agrícolas.
NEM TUDO SÃO FLORES
Com base em estudos, o mineiro Lucas Damásio, mestrando em Ecologia pela Universidade de Brasília – UNB, diz que “as populações das espécies de morcegos estão diminuindo cada vez mais devido a destruição do que habitat natural e o aquecimento global.” Com essa projeção de um futuro trágico para os nossos pequenos heróis, Lucas estuda as possíveis alternativas para a conservação desses bichos, caso essas mudanças não sejam freadas. Para ele, “estudar a antropização em morcegos nos parques urbanos é importante para entender como os bichos se comportam em ambientes urbanos, e avaliar a possível conservação dos morcegos nesses locais.”
Em Brasília, são mais de 30 parques. De sul a norte da capital, sempre há espaço para tomar um ar puro. Águas Claras, a terra dos prédios, conta apenas com o parque ecológico, localizado no lado norte do bairro, para o equilíbrio ambiental.
Embora os parques urbanos sejam unidades de preservação e reduto de vários tipos de animais, há alguns fatores que influenciam no comportamento e na adaptação deles. Por estarem no meio de uma matriz urbana, a luz e o som podem prejudicar a vida dos bichos, e principalmente, dos morcegos.
Mas para que essas pesquisas sejam realizadas, é necessário muito mais do que conhecimento. A força de vontade e o companheirismo são os pilares de sustentação para a comunidade científica em nosso país. O estereótipo do cientista de jaleco e sapato social, portando tecnologia de ponta está bem longe de ser um padrão no Brasil. O baixíssimo investimento na área, a falta de interesse da sociedade e o incentivo quase nulo do governo tornam o trabalho muito mais difícil. Longe das mordomias e do conforto, o improviso é parte essencial do ofício de pesquisador.
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NOITE NO CAMPO
Após visitar os parques Burle Marx, Dom Bosco, Asa Sul e Olhos d’Água, chega o momento de ir ao parque de Águas Claras, no entorno de Brasília. Foram oito noites em campo, duas noites em cada parque visitado pela variada equipe de pesquisadores do Laboratório de Biologia e Conservação de Morcegos, o LaBCoM.
É final de tarde em Águas Claras. O sol começa a se pôr, e a escuridão abraça aos poucos os 75 mil mora- dores do bairro. Enquanto uma parte dos habitantes da cidade-dormitório voltam para suas residências – a maioria empresários, funcionários públicos e estudantes, – o grupo estabelece seu acampamento embaixo de duas mangueiras na parte mais baixa do parque. A poucos metros da pista asfaltada e da luz alaranjada dos postes, os frequentadores diários do local indagavam o que ocorria no local. O movimento de pessoas se intensificava conforme a noite se estabelecia, e graças a tímida iluminação, os olhares curiosos eram vistos apenas pelo movimento de suas cabeças em direção às redes erguidas. Ainda era inverno em Brasília. A poeira e a escassa umidade dificultavam as atividades ainda mais.
O time da noite era composto por Amanda Bernardes, graduanda em Ciências Biológicas, Lucas Damásio e Lucas Lauretto, ambos mestrando em Ecologia e João Paulo Passos, graduando em Medicina Veterinária.
As redes já estavam em pé quando os bichos começaram a despertar. Aos poucos, batiam asas entres as árvores baixas do cerrado brasiliense e a escuridão que os acolhia. Em três horas de amostragem, foram pegos mais de 20 morcegos. Os pequenos mamíferos presos na rede de fio de nylon farfalham e clamam por liberdade.
O processo de triagem dura pouco mais de dois minutos para cada morcego. A triagem consiste em saber o peso, a espécie, o sexo e o tamanho dos bichos. Amanda estava responsável por anotar todos esses detalhes. Sentada em uma banqueta de praia no meio do acampamento, a estudante encostava o cotovelo em cima da mesa dobrável enquanto escrevia. Com a lanterna em sua testa, as mãos de Amanda revezavam entre o registro, e alguns goles no café que trouxe de casa. Lauretto e Damásio revezavam suas funções na triagem: enquanto um apanhava os morcegos na rede localizada a cerca de 1km do acampamento, o outro auxiliava na identificação dos bichos. Ao mesmo tempo em que o trio trabalhava com os morcegos, João Paulo trabalhava em um projeto paralelo, a fim de avaliar a disponibilidade de recursos alimentares para os animais. João ergueu uma placa retangular de pouco mais de 25 centímetros de altura e 50 de comprimento agarrado em uma estaca de 5 metros de altura, próximo a um local iluminado por luz artificial e em locais sem luz artificial. De hora em hora, o graduando em Medicina Veterinária voltava ao local e contava quantos insetos caíram desde a última ronda. Os números ainda não foram estimados.
Foram 12 rondas. Das seis da tarde, até às seis da manhã. Lauretto, Damásio e Amanda revezavam suas funções para que um pudesse descansar das longas ca- minhadas de subida e descida no parque. A cada ronda, o frio se fazia mais presente. Nem os três casacos de Amanda conseguiram espantá-lo.
A alimentação era feita a base de frutas e biscoitos de Pessoal de Nível Superior (Capes), e trazidos de casa. Cada um levava o que podia e comiam pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e ali mesmo, no meio de um campo aberto de um parque qualquer.
Ninguém vai ao campo por obrigação, mas sim, pelo prazer em ajudar. É impossível fazer tudo isso acontecer sozinho. Embora o preparo, há sempre o risco de ocorrer algum acidente. Para evitar problemas e dar ritmo ao campo, os colegas ajudam uns aos outros em suas pesquisas, e são ajudados quando precisam.
Tiago Furtado, que participou da segunda noite na pesquisa de campo do parque de Águas Claras, disse que embora o frio das madrugadas, o baixo investimento na área, as noites mal dormidas e a alimentação longe do ideal, é prazeroso saber que ele, junto aos seus colegas, está proporcionando um bom futuro para os morcegos, e principalmente, para a sociedade.
TEMPOS SOMBRIOS
Para que as pesquisas sejam realizadas, os estudantes recebem uma bolsa, variando de 400 reais, para estudantes de graduação, até 2200 reais, para estudantes de doutorado.
Com uma vasta demanda nos campos, segundo Damásio, é difícil sobreviver com apenas o auxílio de 1500 reais de mestrado. A dedicação é exclusiva à pesquisa, e qualquer outro vínculo empregatício é proibido. Mesmo morando em outro estado, os familiares do futuro mestre em Ecologia ainda o ajudam nos custos do dia a dia. Ainda que divida um apartamento na Asa Norte com outras três pessoas, os custos são altíssimos. Segundo um ranking internacional, Brasília é a quarta cidade mais cara para se viver no Brasil.
As bolsas são distribuídas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A Capes é uma fundação vinculada ao Ministério da Educação do Brasil que atua no incentivo a pós-graduação em todos os estados do país, já o CNPq trabalha com o incentivo à pesquisa no Brasil.
Embora haja órgãos específicos para incentivar os estudantes a serem pesquisadores, um possível corte de R$ 400 milhões em 2019 no repasse do Ministério da Ciência e Tecnologia para o CNPq pode travar até 70% das pesquisas no país, segundo Mario Neto Borges, presidente do Conselho.
Tiago comenta o assunto em voz baixa e melancólica. Para ele, o Cerrado é uma fonte de recursos naturais inexploradas, e que a falta de investimento na área pode fazer com que o país perca boas oportunidades no desenvolvimento científico. “A impressão que a gente tem é que os governos querem acabar com a ciência, porque a ciência transforma o ser humano, né? O conhecimento
transforma. Então, eu tenho a impressão de que eles não querem a população informada, tenho a impressão de que eles querem a população ‘técnica’, sabe? Produção em massa. Uma população que tenha capacidade de fazer uma produção industrial, não que pense no que ela está fazendo. E a ciência traz essas reflexões.”
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O RAIAR DO SOL
São mais de 15 horas de trabalho por dia, contando o deslocamento até o local e a volta para casa, mas o sorriso no rosto dos jovens cientistas nunca some. Os raios solares anunciam que é hora de ir para casa, mas para Amanda Bernardes, o dia só está começando. Com aulas de segunda a sábado, apenas com as sextas e domingos livres, a graduanda em Ciências Biológicas se desdobra para manter todos os seus compromissos.
Por morar longe da Universidade de Brasília, Amanda percorre mais de 60km por dia. O descanso – que é um luxo – ocorre entre as aulas do dia. As vezes nem dorme. A grade pesada é apenas
um dos sacrifícios dos que sonham com um futuro melhor para o mundo.
Amanda mora com os pais, mas mesmo assim, a relação se torna distante. Passam dias sem ter um contato real, tornando o ambiente familiar muito mais superficial do que deveria. Longe da família, a estudante encontra apoio em seus colegas e amigos da faculdade e do laboratório.
Por Deivlin Vale
Matéria publicada em dezembro de 2018, na Revista Esquina.