A vida em uma cama de papelão

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O sonho era ter uma vida “normal”. Para isso, Alberto Siqueira*, 50, precisa resolver seus três maiores problemas: a saúde, debilitada devido a insuficiência renal e uma hérnia umbilical; a falta de emprego, que o afeta desde 2018; e a falta de moradia, já que hoje, dorme sobre um pedaço de papelão menor que o tamanho do seu corpo, em frente ao Centro Pop de Taguatinga. O homem é uma das 2,3 mil pessoas que fazem parte das estatísticas da Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes) e tem feito das ruas sua moradia.

“O cotidiano durante o dia não é ruim. O que faz medo é a noite”, afirma Siqueira, que passa seus dias esperando por uma oportunidade de trabalho rápido e comida para passar o dia. Para ser atendido pelo programa que dá direito à alimentação, higiene pessoal, provisão de documentos e um espaço para os pertences, é necessário estar em situação de rua.

“Estou na rua sem passar pelas casas de passagem esse tempo todo (três meses) porque preciso do atendimento da assistente social. Assim ela pode me explicar sobre como funciona ajuda de custo, moradia e outros direitos. Tinha uma casa me esperando, mas eu nem sabia disso”, explica. Alberto foi chamado pelo sistema on-line do programa “Morar Bem”, do Governo Federal, três vezes nos últimos cinco anos, mas por falta de acesso a internet não pode dar seguimento ao processo.

Desconexão

Sem qualquer tipo de acesso à internet, o homem só descobriu que foi convocado para o programa da Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal (Codhab-DF) em janeiro de 2021, quando a assistente social reuniu informações sobre o cadastro no programa. “Passei tanto tempo nas casas de passagem e nas ruas, que nem lembrava ou imaginava que era possível ser chamado”, lamenta.

Alberto torce para que pelo menos dessa vez, a assistente social possa avisá-lo caso tenha outra chance de realizar seu sonho. “O ruim é que aqui você só come e pronto. Não tem nada para educação, diversão ou pelo menos internet para gente ver como tá nossa vida nesses programas tudo aí, tem que torcer pra dar certo sem saber como anda”, relata.

Sem ter uma casa para chamar de sua há mais de 10 anos, quando ainda morava em Sobradinho com a família, o brasiliense nato tem passado a última década como nômade, trabalhando com construção civil em Brasília, Paraná, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Pará, Tocantins… “Aprendi muita coisa de serviço e da vida andando por aí, mas sem grana eu sempre voltava pra cá. Pro meu lar (Brasília)”, relembra. Nesses lugares, morou de favor, em casas de passagem e nas ruas. Para Siqueira, as pessoas que vivem em situação de rua não têm motivos específicos para estar onde estão e por isso, não pode responder a pergunta que fazem com tanta frequência.

Cilada

Enquanto come o lanche fornecido pelo programa do Centro Pop, o brasiliense nascido em Planaltina conta que a situação atual foi um acidente de percurso. “Foi uma cilada da vida que me colocou aqui”. Devido aos problemas com drogas e álcool, o homem diz “ter perdido a linha” e bagunçado os planos de ter um bom emprego e uma casa, o que o fez se afastar dos familiares.

“Com eles (os familiares), as coisas nunca davam certo. Minha ex-esposa, meus irmãos e minha mãe… Eu precisava colocar minha vida nos eixos. Então, há um ano e meio, eu fui embora e nunca mais voltei”, explica enquanto desenha linhas invisíveis nas tatuagens espalhadas pelos braços.

São desenhos de cobras, escorpiões e corações em cada dedo das mãos feitas ao longo dos anos. Ele diz que as tatuagens não contam nenhuma história específica. Apenas se tornaram detalhes de uma vida bem vivida. Alberto garante que “seus tempos de guerra”, onde as drogas, as brigas que causaram sua prisão e as festas cotidianas, não existem mais. Ele precisa executar seu plano.

Na rua

O ex-pedreiro explica que o primeiro problema a ser tratado é sua saúde, que o debilitou o suficiente para que encontrar um emprego fixo seja um obstáculo. “Não sou fichado desde 2018 por conta de uma hérnia no umbigo. Não tem muito tempo também que descobri que tenho insuficiência renal e gastrite inicial, o que explicam as dores frequentes”.

Alberto é atendido pelo Consultório na Rua, ação do Sistema Único de Saúde (SUS), que dá a pessoas em situação de vulnerabilidade acesso a serviços de saúde, incluindo, a vacinação contra a covid-19. O homem afirma que tomou a dose única da Janssen, e portanto “está blindado dessa doença pelo menos”.

Além da vacina, o brasiliense também tem se consultado frequentemente devido a insuficiência renal e a hérnia umbilical. Seu atendimento acontece na UBS 5, que fica em Taguatinga. Lá, Alberto recebe atendimento médico, medicamentos e receitas para o tratamento da insuficiência renal. “Com esses remédios até consigo passar os dias bem, mas me preocupo com a cirurgia”, explica.

Siqueira está em uma longa fila de espera para a consulta de pré-operatório da herniorrafia, ou cirurgia de hérnia umbilical, que só tem datas próximas a dezembro de 2021 e janeiro de 2022. A preocupação é que os exames estão perto de “vencer” o que o colocaria em outra fila para que os exames sejam feitos novamente e já a cirurgia, só pode acontecer após as consultas e a data mais próxima é em fevereiro de 2022. O Ministério da Saúde garante que o paciente em situação de vulnerabilidade tenha direito ao cuidado pós-operatório e ao período de observação no hospital, mas não fornece apoio após a alta.

O homem sonha que, após isso ser resolvido, ele poderá voltar a trabalhar, já que o desemprego é seu segundo maior problema. “Não falta experiência, o que falta mesmo é saúde”. Recentemente, Alberto e outros moradores de rua atendidos pelo Centro Pop foram matriculados no programa Renova-DF, um projeto do Governo do Distrito Federal (GDF) que capacita pessoas desempregadas para facilitar o ingresso no mercado de trabalho e reformar espaços públicos.

“Apesar de já conhecer a maioria das coisas que vão passar no curso eu estou animado, o diploma vai me ajudar a conseguir um emprego mais rápido”. As aulas do programa estão previstas para começar apenas em novembro de 2021, logo após o término das aulas da primeira turma (que se iniciou em agosto). No fim, ele receberá o certificado de conclusão do curso e poderá utilizar para inserir no currículo como curso complementar.

Onde morar

O terceiro e último problema, sendo o que mais preocupa Siqueira, é a moradia. Devido aos seus problemas de saúde, o brasiliense vai ser encaminhado para uma das casas de passagem administradas pela Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes). “Mais três dias e eu consigo ir para uma casa de passagem, não tem problema esperar. Passei três meses na rua dormindo no papelão, posso esperar mais três dias”, afirma como uma prece.

Já o sonho da casa própria, só poderá acontecer quando o homem conseguir o emprego, pois para estar no programa Morar Bem, do GDF, é preciso comprovar uma renda familiar de até 12 salários mínimos. Até 2018, Adalberto tinha renda fixa e estava adequado para o programa, porém, perdeu os três chamados feitos pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal (Codhab), já que para verificar o cadastro é necessário ter acesso à internet, coisa que ele não nunca teve. “Mal tenho telefone, quem dirá internet. A minha sorte é que a assistente e o pessoal daqui (Centro Pop) conseguiram abrir meu cadastro e ver pra mim, agora eu só preciso esperar pra ser chamado novamente, o que não tem bem uma data”, lamenta.

“Falar isso tudo é fácil, não é? Mas vai demandar um certo tempo.” Alberto afirma que sabe que seus três problemas podem ser resolvidos com a ajuda do governo, mas que para ‘eles’ olhar, para baixo é sempre mais difícil. “O problema é esse. Acham que um pacote de biscoito e um papelão vão resolver a situação de todo mundo que tá aqui na rua, não entendem que as pessoas precisam de mais que isso. Precisamos de emprego, de lazer, de moradia”.

O brasiliense conhece bem seus direitos, e até mesmo cita o art. 3° da Lei Orgânica do Distrito Federal, que fala das obrigatoriedades do governo, que são: atendimento das demandas da sociedade nas áreas de educação, saúde, trabalho, transporte, segurança pública, moradia, saneamento básico, lazer e assistência social. Ele confidencia que conhecer a lei e repeti-la é uma forma de não se esquecer dos seus direitos básicos e de não desistir de seu plano.

*A pedido do brasiliense, seu real foi ocultado da reportagem.

Por Maria Clara Andrade
Supervisão de Luiz Cláudio Ferreira

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