Após ataque contra terreiro da família, sociólogo alerta para escalada da violência religiosa

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As incertezas não assustavam Guilherme. Por mais que a pandemia obrigasse as pessoas a manter um rigoroso distanciamento social em meados de 2020, o pós-doutor em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) acreditava que a situação poderia fazer com que mais estudantes pudessem participar das reuniões do grupo Calundu, que ele tinha ajudado a fundar.

Enquanto ele estudava para mais um seminário, recebeu uma ligação de seu pai. O terreiro de sua família em Belo Horizonte fora invadido e violado havia alguns dias, e a imagem de Iemanjá, completamente destruída.

Festa de Nkos’i, em 2018. Imagem: Cabana Senhora da Glória/Divulgação

 

O motivo da demora do contato de Nilo Sérgio Nogueira com seu filho é que ele sabia que seria um golpe pesadíssimo para Guilherme Dantas Nogueira, tanto pelo lado acadêmico, afinal enquanto pesquisador Guilherme estuda materiais históricos para grupos afro religiosos, quanto pelo apego emocional, pois o local que sua família protegeu, em especial a imagem, haviam sido violados.

A estátua por si só era um objeto histórico. Ela foi usada na primeira procissão à entidade na lagoa da Pampulha, que foi organizada por Nelson Mateus Nogueira, ou Tateto Nepanji, avô de Guilherme. Ele também fundou, em 1961, o terreiro de umbanda Cabana Senhora da Glória, ou Nzo Kuna Nkos’i, de tradição angoleira (Moxicongo), local onde se localizava a estátua.

Denúncia

Após o choque, o que o sociólogo sabia é que a imagem deveria ser reformada depois de recolhidos os cacos. Atualmente ela está sendo reconstruída por um artista plástico conhecido do terreiro.

O caso foi denunciado e por mais que os invasores tenham sido localizados, Guilherme nunca se preocupou em fazer justiça aos responsáveis. Ele sabia que era uma situação grande demais para individualizar a culpa.

Gongá onde ficava a imagem de Iemanjá. Imagem: Cabana Senhora da Glória/Divulgação

 “Quando um terreiro é invadido, foi a sociedade brasileira que atacou, sobretudo os neopentecostais, que erigiram sua religiosidade na luta contra a existência de outra religião.”

De acordo com Guilherme, o racismo estrutural do estado acompanha a sociedade brasileira desde os tempos do Brasil Colônia. A perseguição não só aos cultos afro-religiosos, mas às populações negras como um todo, é uma constante na história brasileira, o que pode ser visualizado nos dados do relatório da Ajuda à Igreja que Sofre no Brasil (ACN-Brasil), ONG que mobiliza esforços para ajudar cultos em necessidade.

O número de adeptos destas religiões é pequeno atualmente (menos de 0,5 % da população total), contudo a probabilidade de um deles sofrer com atos de discriminação religiosa é 130 a 210 vezes maior do que para a população em geral.

Por mais que existam medidas do estado para combater o racismo religioso, elas não são de fato efetivas, e uma das razões é a ascensão política dos fundamentalistas neopentecostais. Ao propor a volta às tradições no cotidiano social em períodos de instabilidade, o que acontece de fato é a propagação de um discurso de ódio, que visa dizimar outras religiões, em especial as afro-brasileiras. Isso tudo é amplificado quando esses grupos conseguem cargos no governo e neutralizam as ações estatais que poderiam ser usadas para reduzir a intolerância.

Racismo religioso

Guilherme usa como exemplo a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), que tinha medidas concretas para combater o racismo religioso, até ser incorporada ao Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos (MMFDH).

O Plano  Nacional de Proteção à Liberdade Religiosa e de Promoção de Políticas Públicas para as Comunidades Tradicionais de Terreiro (PNCT), publicado em 2016, não só visava um plano nacional de promoção de igualdade étnico-racial, como afirmava que a intolerância religiosa contra religiões afro-brasileiras é sim uma expressão de racismo. Atualmente, o documento sequer está disponível na internet.

Para o sociólogo, essas situações evidenciam o desinteresse do estado em combater a intolerância religiosa. O Ministério Público sequer utiliza a religião como filtro de dados de assassinato no Brasil.

As informações estatais a respeito de intolerância religiosa são registradas nos relatórios anuais do Disque 100, o contato que é utilizado para denunciar violações aos direitos humanos, é por onde o MMFDH recebe, analisa e encaminha aos órgãos de proteção e responsabilização as denúncias de violações de direitos.

De acordo com os relatórios, entre os anos de 2015 e 2018, foram registrados 2.356 denúncias de violações religiosas, com uma média de 589 por ano. Contando desde 2015, o ano de 2020 foi o que mais teve registros, com 758.

De acordo com com Guilherme, ainda é cedo para afirmar se a pandemia foi um fator decisivo para essa alta de denúncias, e que outros fatores, como a subnotificação em outros anos, poderiam justificar a alta. O relatório mais recente é o de 2021, que registrou 583 casos. O relatório de 2019 não possui dados sobre denúncias de intolerância religiosa.

Histórico de violência

Os registros não deixam explícitos como as violações ocorreram, nem a gravidade das ocorrências. O que pode ser dito com certeza é que a invasão da Cabana Nossa Senhora da Glória não foi um caso isolado. Em fevereiro de 2022, em Eunápolis-BA, o terreiro Logun Edé foi atacado em dois dias consecutivos, de acordo com matéria do g1. Membros da igreja Assembleia de Deus são os maiores suspeitos das invasões, que destruíram o terreiro.

O pastor responsável pelo culto negou qualquer relação com o ocorrido, que foi denunciado como ataque de intolerância religiosa. Já em São Leopoldo-RS, no dia 17/06 de 2022, a mãe de santo Vera Lúcia Mendes Teixeira (63) morreu após ser baleada no próprio centro de umbanda. De acordo com o portal diário gaúcho, um homem invadiu o terreiro à procura de Vera e atirou na mãe de santo no dia 10/6.

Os três casos de violência religiosa mostram como não só o estado, mas a própria sociedade tem ainda preconceito com as manifestações religiosas de matriz africana. São comuns as associações de entidades do candomblé com o diabo cristão, provando o desconhecimento dessas práticas. Entretanto, se o ensino e o debate sobre essas religiosidades não é incentivado nem mesmo no nível superior, o panorama dificilmente mudará. Foi nesse contexto que nasceu o grupo Calundu.

Calundu

Com o objetivo de estudar religiões afro-brasileiras e latino-americanas, o grupo surgiu quando estudantes de pós-graduação de diversas áreas das ciências sociais notaram que a UnB não oferecia cursos que aprofundassem o debate do assunto. Além dos encontros, o grupo promove palestras em que convida líderes religiosos para falar sobre suas vivências dentro de seus cultos. O projeto possui ainda uma revista acadêmica que reúne artigos produzidos não só dentro do grupo, como dentro dos temas de interesse do Calundu, como racismo religioso, tradições, espiritualidades e laicidade. Além disso, o grupo produz material didático de religiões latino-americanas destinado para escolas de ensino fundamental e médio.

 

Capa da edição mais recente da revista Calundu, de junho de 2021. Imagem: Reprodução

Dentre os pilares do grupo, Guilherme ressalta a importância da liderança feminina dentro do Calundu. Ele diz que não só as religiões afro-brasileiras possuem raízes matriarcais em suas lideranças, como o próprio grupo Calundu surgiu da mente de Ariadne Moreira Basílio de Oliveira, sua colega de pós-graduação e advogada, enquanto Guilherme procurou o apoio do Instituto de Sociologia (SOL-UnB) para dar início ao grupo.

Por Vinícius Pinelli

Imagem de capa: Fundo Baobá

Supervisão de Vivaldo de Sousa

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