No ano de 2023, as ruas viraram moradia de mais de 236 mil pessoas, de acordo com pesquisa realizada pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.

Em seu dia a dia, moradores de rua enfrentam situações como o perigo, o frio, a fome e a violência física ou verbal. Nos últimos anos, entretanto, um novo tipo de transgressão vem chamando a atenção de sociólogos e urbanistas ao ser implementada nas cidades grandes: a arquitetura hostil.
Em entrevista à Agência Ceub, a arquiteta Ludmila Correia explica esse fenômeno e seus impactos sociais na construção das metrópoles. Confira na íntegra:
Agência Ceub – O que é ‘arquitetura hostil’?
Ludmila Correia – A “arquitetura hostil” existe quando se constrói espaços públicos que afastam certos grupos sociais, prejudicando o acesso igualitário e democrático às ruas, praças, viadutos e parques.
É uma forma de se conceber espaços que impossibilitam ou dificultam a presença de pessoas seletas, especialmente pessoas em situação de rua, jovens periféricos, LGBTQIA +, e outros marginalizados.
Essa é uma prática muito criticada por arquitetos que defendem a democracia e o direito à cidade, pois fortalecem a exclusão social e a segregação urbana, tornando as cidades menos inclusivas e acolhedoras para todos os cidadãos.
Agência Ceub – De que maneira essas estruturas podem ser observadas?
Ludmila Correia – Normalmente, essas estratégias são adotadas em bairros de classe média e alta, onde pessoas que não fazem parte do mesmo grupo social não são “bem vindas”.
Na prática, estamos falando da ausência de mobiliário que favoreça a permanência, como bancos, sombras, proteções à chuva; ou a inclusão de elementos que limitem o acesso e/ou o uso dos espaços – bancos com divisórias que impossibilitam deitar, inclinações desconfortáveis, grades, portões, sistemas de aspersão de água, entre outros.
Agência Ceub – Essa vontade de afastamento é recente? A aceitação social à arquitetura hostil tem a ver com o medo de violência?
Ludmila Correia – A ideia não é recente, remonta ao final do século XIX, após a Revolução Industrial, quando um grande número de pessoas começou a migrar para as cidades, vivendo em condições precárias.
Na década de 1930, George Orwell relatou suas experiências com a extrema pobreza em Paris e Londres. Embora não tenha usado, explicitamente, o termo “arquitetura hostil”, a noção de afastar grupos específicos dos espaços urbanos é claramente ilustrada quando o autor descreve os bancos dos parques públicos, projetados de forma a impedir que pessoas em situação de rua pudessem usá-los para descansar.
Algumas pessoas defendem que intervenções de arquitetura hostil podem afastar grupos considerados indesejáveis, reduzindo a ocorrência de crimes.
No entanto, isso é uma ilusão.
Primeiro porque essas medidas vão, no máximo, deslocar e mascarar os problemas sociais aprofundando as desigualdades, não os resolvendo de fato e gerando uma sociedade mais fragmentada e menos coesa. Segundo porque, quando certos grupos são excluídos, aprofunda-se a segregação social por meio da marginalização das populações mais vulneráveis, criando-se um ambiente mais propício para conflitos.
Ao vez de promover a segurança, essas intervenções tendem a agravar os casos de violência e ampliar os conflitos sociais.
Agência Ceub – De que forma esse tipo de arquitetura afeta a construção das cidades e impacta o desenvolvimento de uma sociedade mais igualitária?
Ludmila Correia – Na perspectiva do Direito à Cidade, ações que fortalecem a segregação social tendem a causar danos à coletividade, além de acirrar conflitos sociais.
Intervenções urbanas hostis, criadas com intuito de afastar atividades e pessoas consideradas “indesejáveis”, restringem o acesso inclusivo e democrático aos espaços públicos, gerando cidades mais desiguais e fragmentadas.
A vitalidade urbana e a qualidade de vida dos habitantes é prejudicada, tendo em vista que a interação social e a convivência harmônica entre os habitantes de uma cidade pressupõe o confronto com pessoas diferentes, social, cultural e/ou economicamente.
Agência Ceub – Quais propostas seriam interessantes para substituir esse uso indevido?
Ludmila Correia – Conceitualmente, diversos autores defendem a ideia de cidades mais inclusivas, como Jane Jacobs e Henri Lefebvre.
Especialmente a partir da década de 2010, o movimento em prol de cidades vivas e inclusivas se fortalece pelo mundo.
Esses grupos convergem na defesa de espaços públicos mais acolhedores e acessíveis, promovendo interação social e atividades comunitárias para todas as idades, gêneros e classes sociais, além de favorecerem pontos de encontro e lazer convidativos.
Em 2022, a Lei Nº 14.489, conhecida como Lei Padre Júlio Lancelotti, altera o Estatuto da Cidade para proibir o emprego de técnicas construtivas hostis em espaços públicos, e incluir entre as diretrizes da Política Urbana a “promoção de conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade na fruição dos espaços”.
Essa legislação visa promover ambientes urbanos que respeitem os direitos humanos e a dignidade das pessoas em situação de vulnerabilidade social. A lei ganhou esse nome devido à luta do Padre Júlio Lancelotti – da Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo. O padre é conhecido por acolher e defender pessoas em situação de rua, incluindo a demolição de pedras instaladas sob um viaduto para impedir a permanência das pessoas.
Por Luísa Mello
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira