Assobios de saudade

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Sob inspiração de ‘Sabiá’ – Chico Buarque e Tom Jobim e ‘Canção do Exílio’ – Gonçalves Dias. Ouça a música e leia a poesia.


Em 29 de setembro de 1968, durante o III Festival Internacional da Canção, a saudade fez nascer uma das mais marcantes obras da música popular brasileira. Naquela quinta-feira, a dupla Chico Buarque e Tom Jobim subiu ao palco para apresentar, pela primeira vez, a canção “Sabiá”. Quem sai de casa, atravessa oceanos e estradas, pode se sentir feito uma ave migratória, que voa para regiões mais quentes durante o inverno, levanta voo em direção a uma esperança de futuro.

Chico tinha 24 anos quando escreveu “Sabiá” em 1968, mesma idade que tinha o jovem Dibonan Wilfried Kevin Koné em 2020, quando saiu de Abidjan, capital econômica da Costa do Marfim, para vir para Brasília junto da irmã mais nova. “Depois do ensino médio, eu sempre tive essa vontade de sair do país para ter outras experiências, aprender outras culturas e fazer minha vida com isso. Eu queria fazer comunicação audiovisual, e sei que esse lado da comunicação tem muito a ver com a cultura”, contou.

Falante nativo do francês, Dibonan deixou os pais e outros sete irmãos para se aventurar com o português por meio do Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G) — iniciativa do governo brasileiro que oferece a estudantes estrangeiros vagas gratuitas para graduação completa no Brasil, a partir de um processo seletivo junto à embaixada brasileira. “Saí do meu país já sabendo que cursaria audiovisual na Universidade de Brasília (UnB), que era o meu sonho desde sempre. Eu sabia que ia fazer um curso de português na UnB durante uns seis meses, depois fazer uma prova de proficiência e, se passasse, começaria a minha graduação”, lembrou.

Contudo, não esperava que, um mês após a chegada em Brasília, em março de 2020, enfrentaria a pandemia de covid-19. “Eu fiquei preso em casa, no Riacho Fundo, tendo aulas virtuais com três professores. Com o tempo, os professores sumiram e a UnB não teve condições de aplicar a prova de proficiência. O tempo foi passando e, em 2021, decidi ir a Belo Horizonte (MG) fazer a prova lá. Deu certo.” Dibonan pôde, então, iniciar a graduação em audiovisual na UnB.

Dibonan participa remotamente do “a Dot”, celebração de seu casamento que ocorreu no Benin, terra natal de sua noiva. – Foto: Arquivo pessoal


Atualmente, aos 28 anos, cursa o sexto semestre de audiovisual, estagia no Canal Universitário de Brasília (Unbtv), trabalha como bolsista no Centro de Educação a Distância e Tecnologias Educacionais (CEAD/UnB) e reside na Casa do Estudante. Costuma ver a família por videochamada todos os finais de semana, mas ainda não pôde encontrá-los pessoalmente desde a partida. “Quando chegam as férias, todo mundo volta para a sua família no natal e eu passo aqui na Casa do Estudante. Dá muita saudade! Claro que eu tenho vontade de visitar, mas uma passagem custa mais de R$ 14 mil para ir e voltar. É muito caro! Dá para viver aqui como rico, né!”, explicou gargalhando.

As aves que aqui gorjeiam


Quando perguntei sobre as dificuldades que já enfrentou por ser imigrante, respirou fundo, olhou para baixo, coçou o joelho e respondeu: “Foi no Brasil que eu descobri que eu sou negro. Em casa, não havia essa distinção. Só quando cheguei aqui que entendi que existia uma diferença”.

Além da barreira linguística, Dibonan acredita que o preconceito é uma dificuldade, mas defende que o foco nos objetivos precisa ser mais forte. “Tem coisa que temos que levar como uma experiência, e não como algo para nos machucar. É aquilo que você deixa entrar no seu coração que machuca, e se você deixa na porta dele, não vai machucar”, defendeu sorrindo.

Para o marfinense, a volta para casa é um sonho distante. “Ainda tenho muito a aprender. Quero me formar, fazer mestrado, consolidar minha carreira. Só depois posso voltar. Quero participar da política do meu país”, contou.

Após ver a Costa do Marfim sofrer com duas guerras civis em dez anos — em 2002 e 2011 —, pretende trazer os moldes da política brasileira para a república africana. “Gostaria que fosse mais parecida. Claro que tem coisas a reclamar, mas o Brasil tem uma certa estabilidade política que eu ainda quero ver no meu país”, disse esperançoso.

Pensar naquilo que vê como sendo o seu “sabiá” é algo divisivo. A saudade da mãe, membro da família de quem é mais próximo, pesa muito. “Me separar dela foi muito difícil. Sinto falta da sopa de Graing que ela fazia”. Porém, talvez a coisa que mais lhe cause saudades seja a celebração de sua religiosidade.

“Eu sou cristão e todo sábado eu sempre estava na igreja cantando e tocando piano com a galera. Eu participava de vários programas de espiritualidade e vida cristã e sinto falta de tudo isso aqui. Eu já participei de alguns cultos no Brasil, mas eu sinto que não é o mesmo calor”, sorri.

Trecho da entrevista em que Dibonan fala sobre seu “sabiá”.


Dibonan posa na janela de sua residência, na Casa do Estudante. – Foto: Henrique Fregonasse


Apesar das saudades, a nova casa criou raízes profundas e perenes no coração. “Foi o Brasil que me acolheu, vai sempre ser minha segunda casa, minha segunda pátria-mãe. Vou me casar no Brasil, dia nove de novembro, com uma africana do Benim. Ela é minha veterana, do curso de Relações Internacionais”.

Onde canta o Sabiá


Assim como Dibonan, o poeta Gonçalves Dias sentiu a dor de estar longe da terra natal. Em julho de 1843, estudava direito na Universidade de Coimbra, em Portugal, quando escreveu: “Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá. As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá”. A poesia, encharcada de patriotismo e de saudade da terra natal, tornou o sabiá um símbolo desse sentimento.

“As aves são companheiras das pessoas em qualquer região e situação, e o Brasil tem 24 espécies de aves que levam o nome vulgar de ‘sabiá’. Acredita-se que, na ‘Canção do Exílio’, Gonçalves Dias, que era maranhense, estaria se referindo ao Sabiá-da-praia (espécie Mimus gilvus), que pertence a uma família de aves chamada Mimidae e é muito presente no estado”, explicou o professor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília (UnB), Ricardo Bomfim Machado.

“Na letra do Chico, carioca, o sabiá poderia ser qualquer uma das três espécies comuns no Rio de Janeiro: Sabiá-barranqueiro, Sabiá-laranjeira ou Sabiá-poca. Essas espécies são de outra família de aves: Turdidae”, completou Bomfim Machado.

Canto do sabiá-laranjeira. – Reprodução: Youtube



Em “Sabiá”, o piano de Tom Jobim inicia a canção com uma repetição ordenada das notas “Mi bemol”, “Lá bemol” e “Fá”, reproduzindo, para não deixar dúvidas, o canto do Sabiá-laranjeira. A melodia segue, então, com a voz de Chico Buarque — responsável pela letra —, que canta sobre a esperança de voltar para a terra natal e encontrar o canto de uma sabiá, em uma época em que, sob o regime militar vigente desde 1964, perseguidos políticos eram obrigados a deixar o Brasil sem perspectiva de retorno.

Reprodução do canto do sabiá-laranjeira no piano. – Reprodução: Henrique Fregonasse


Com o fim da ditadura, em 1985, o exílio de brasileiros perseguidos políticos não mais era um problema. A redemocratização e o estabelecimento de uma política externa mais receptiva — principalmente a outros países da América Latina — abriu espaço para uma nova onda migratória para o país a partir da década de 1990.

Não gorjeiam como lá


O Sabiá-laranjeira é uma ave endêmica da América do Sul, que migrou da Europa há cerca de 20 milhões de anos. Considerado Ave Nacional do Brasil, é citado por vários poetas como o pássaro que canta o amor e a primavera. Durante uma viagem à República Tcheca, no Réveillon de 2015, os ouvidos de Elena Yurievna Anoshina foram inebriados ao ouvir as notas do piano de Tom Jobim — “Mi bemol”, “Lá bemol” e “Fá” —, o canto de um Sabiá-laranjeira, tão longe de seu habitat natural.

“Eu tinha 25 anos. Estava viajando com minha amiga e acabei conhecendo ele. A gente estava se falando e ele me perguntou ‘Você quer conhecer o Brasil? Me manda seus dados e me fala quando você pode vir’. Falei para a minha família que iria visitar uma amiga e, em maio, fui passar dez dias com ele no Rio de Janeiro. Quando voltei para a Rússia, já estava apaixonada e pensando em me mudar”, contou. Sobre o motivo de aceitar vir para o Brasil, exclamou: “Foi por amor!”, disse, rindo e revirando os olhos, como quem debocha de si mesma, mas sem deixar de se divertir com a situação.

Elena Anoshina posa durante entrevista no Café Daniel Briand, na Asa Norte. – Foto: Henrique Fregonasse


Elena deixou a grande metrópole de Moscou, capital da Rússia, pela pequena cidade de Brasília em agosto do mesmo ano, visando experimentar a vida na capital federal por três meses. “Pessoas sem visto conseguem vir e passar três meses. Eu vim, odiei Brasília. Amei o Rio, mas odiei Brasília. Mas já estava apaixonada… Voltei à Rússia no final de outubro e, em abril, me mudei para cá de vez”, contou.

“Foi ótimo de um lado, mas essa coisa de não falar a língua é muito complicada. No Brasil, pouca gente sabe falar inglês, e quem sabe não quer falar o tempo inteiro. No início, eu chorei muito. Ligava para a minha melhor amiga e dizia ‘eu odeio esse lugar!’ Não ligava para os meus pais porque não queria deixá-los preocupados”, lamentou.

Para a professora de línguas, a mudança para junto a uma outra pessoa é um “desafio emocional enorme”, pois você chega para viver uma vida que não é a sua. “Você vive as amizades dela, a rotina dela, a família dela. Não é a sua vida”, contou.

Formada em publicidade, Elena começou a dar aulas de inglês em escolas de idiomas logo que chegou a Brasília. Depois, passou a trabalhar dando aulas de forma autônoma, assumindo também aulas de russo, de português para russos e, eventualmente, realizando traduções de alguns livros, artigos e traduções simultâneas. O plano para o trabalho é gravar um curso de ensino de russo ainda em 2024.

Depois de mais de cinco anos de relacionamento, o canto do Sabiá-laranjeira já não soava mais tão doce para Elena. Deixou voar. E mesmo não gostando muito de Brasília, decidiu ficar aqui. “Eu poderia voltar. Até pensei que teria que voltar caso as coisas não dessem certo para mim. Mas como deu tudo certo, consegui ser bem sucedida e me bancar, eu fiquei”.

A busca por uma realidade mais próxima da de Moscou a levou a visitar São Paulo algumas vezes. “Já visitei a cidade algumas vezes, passei uns meses lá. Eu quero mudar para São Paulo, esse é o meu plano, mas eu tenho medo, medo de começar tudo de novo e de ter a sensação que eu tive quando mudei para cá, de não ter ninguém”, contou.

“Eu consegui fazer amizades de verdade aqui, que eu realmente considero. Eu acho difícil fazer isso. Além da minha cultura ser diferente daqui, mesmo eu já me sentindo brasileira, de qualquer jeito eu já não tenho mais 15 anos para fazer amizade facilmente. Essas amizades que eu fiz aqui são muito importantes para mim”, explicou preocupada.

Atualmente, aos 34 anos, Elena convive bem com as saudades da família. “Não costumo dizer que ‘sinto falta’ de coisas que não posso ter. Se minha família está tão longe, é claro que sinto saudades, mas prefiro não ver isso como ‘sentir falta’.” Para ela, aquilo que vê como o seu “sabiá”, o que mais lhe gera saudades de casa é a “alma” da própria Moscou.

Para Elena, Brasília não tem alma. É um lugar onde é “cada um por si”, e onde é muito difícil sair andando de casa e conhecer pessoas novas, devido à dificuldade de locomoção que normalmente faz as pessoas dependerem de carro, ônibus ou, no caso dela, motoristas de aplicativo. “Em Moscou, eu vou sempre andando. É super seguro e eu sempre conheço coisas novas. Se eu andar durante uma hora, eu vou poder dizer que eu vi uma padaria pequena, entrei lá, sentei, li um livro, tomei um café maravilhoso, conversei com não sei quem e conheci alguém. Essa parte falta muito aqui, e é uma coisa perfeita”, lembrou, com olhos brilhantes.

Trecho da entrevista em que Elena fala sobre seu “sabiá”.


Aprendendo a assobiar


Apesar de todo o amor pela terra natal, Elena não se considera mais unicamente russa. “Eu sou brasileira agora. Tirei passaporte, RG, tudo! Agora, não tem mais como as pessoas me conhecerem como ‘a amiga russa’. Já logo digo: ‘Não, não, eu sou brasileira também!” O visto que conseguiu pelo antigo casamento precisou ser refeito para que garantisse a cidadania. “Foi tranquilo. Eles não precisaram ver minha prova de proficiência porque falaram que eu falava muito bem. Me ajudaram e eu nem precisei voltar para casa para mudar o visto. Depois disso, tive que esperar um tempo pela palavra do tabelião, e aí já pude fazer toda a documentação. Só não fiz meu título de eleitora ainda”, contou rindo.

Para ela, a hospitalidade é uma característica marcante dos brasileiros, assim como a receptividade. “Eu fui muito bem recebida aqui, em tudo o que fui fazer. Os brasileiros amam estrangeiros. Você recebe muita atenção. Eu nunca senti que estava sendo alvo de preconceito, mas há os estereótipos. Algumas pessoas querem se aproximar só pelo fato de você ser russa, e eu sou muito mais do que isso”, explicou.

Além disso, o costume brasileiro de cumprimentar com abraços e beijos foi algo que passou de estranho para rotina. “No início eu estranhava pessoas desconhecidas vindo me abraçar, me beijar. Quando fui a Moscou visitar a família, eu abraçava e beijava minhas amigas, meus pais. Só depois me dei conta e comecei a perguntar se era algo que incomodava. Atualmente, é algo que não abro mão. Abraço todo mundo, beijo todo mundo, acho que a gente vive mais feliz assim.”

Idas, voltas e vindas


A última ida a Moscou, em julho, quebrou um jejum de seis anos sem ver os familiares e amigos. As visitas costumavam ser frequentes, mas a pandemia e o início da guerra entre Rússia e Ucrânia dificultaram o trânsito. “É uma viagem muito complicada. Você vai de Moscou para o Catar, depois para São Paulo e pega outro voo para Brasília. São dois dias voando, é muito cansativo. E também é muito caro.”

Dessa vez, a visita teve um motivo especial. O estado de saúde da avó é delicado e fez valer todo o esforço. “A minha avó é uma das pessoas mais importantes da minha vida. Eu cresci com ela. Cada vez que eu deixava Moscou, eu dizia ‘tchau’ como se fosse para sempre. Ela me dizia ‘acho que não vou conseguir te esperar’.” Com o aniversário de 86 da avó, neste ano, Elena encontrou a oportunidade que faltava. “Eu falei ‘tenho que ir, custe o que custar’. Vê-la valeu muito mais do que o dinheiro que gastei. Aproveitei para passar um tempo maior lá”, contou.

Elena visita a praia de Santo Antônio de Lisboa durante viagem para Florianópolis em novembro de 2023. – Foto: Arquivo pessoal


Em setembro, foi a um teatro brasiliense assistir à peça “O que só sabemos juntos”, estrelada por Denise Fraga e Tony Ramos. Inesperadamente, contou que ver o ator pessoalmente foi a realização de um sonho de criança, já que ele estrelou várias novelas brasileiras que foram retransmitidas na Rússia, e que ela e a avó assistiram juntas enquanto crescia. “Eu chegava da escola e a novela passava umas seis, sete da noite, mais ou menos. Eu terminava de fazer o dever de casa, a gente jantava e depois assistia juntas todos os dias, eu e minha avó.”

“Eu liguei para a minha avó e disse ‘vó, você não vai lembrar o nome, mas eu vi um dos caras que estava sempre naquelas novelas. Acredita que eu vi ele ontem? Ele estava tão perto que eu poderia abraçar ele se eu quisesse.’ Ela perguntou ‘sério? Meu Deus, que legal!’”, contou sorrindo. A notícia gerou uma conexão nostálgica, e entre sorrisos, as duas tiveram uma boa conversa. “Eu falei ‘te liguei para falar isso porque eu quero que você saiba que isso aconteceu comigo’”, contou Elena, sorrindo.

Assim como o relacionamento que a trouxe ao Brasil, a guerra é um assunto sobre o qual prefere não se aprofundar. Elena não está disposta a correr riscos que possam impedi-la de voltar à terra natal. “Ainda mais agora que tenho minha cidadania brasileira, não quero fazer ou falar nada que possa prejudicar a mim ou à minha família. Não quero perder minha nacionalidade e o suporte que tenho da embaixada. Não quero ser inimiga da minha pátria.”

Além da mudança para São Paulo, que ainda não tem data definida, os planos de Elena para o futuro ainda são uma incógnita. Depois de ter vivido a pandemia de covid-19, presenciado a guerra entre Rússia e Ucrânia e ter tido suas expectativas frustradas, a professora prefere não fazer mais planos a longo prazo. “Meu único plano para o futuro é me mudar para São Paulo — isso tem que ser escrito para eu olhar e falar ‘nossa, eu tenho que mudar para São Paulo!’ — e meu plano de trabalho é gravar meu curso, que para mim é a coisa mais importante. Depois disso, quero viajar muito e, se der tudo certo, construir uma família linda, saudável e feliz!”

Quadradinho de muitas bandeiras


Nos últimos dez anos, o Brasil presenciou um aumento significativo de imigrantes, especialmente após crises em países como Venezuela e Haiti. O número anual de estrangeiros em território nacional variou entre 70 mil e 100 mil pessoas, em média. Após a crise venezuelana, no período pós-2018, a imigração venezuelana se destacou como a maior. Em 2023, segundo dados da Organização dos Advogados do Brasil do Distrito Federal (OAB-DF), cerca de 22 mil venezuelanos foram regularizados no Brasil, enquanto houve um fluxo migratório contínuo de haitianos, sírios, e cidadãos de outros países africanos e asiáticos.

Arte: Birô de Criação


A Lei nº 13.445/2017, conhecida como Lei de Migração, regula a entrada, permanência e regularização de estrangeiros no Brasil, definindo os possíveis tipos de vistos para imigrantes, diretrizes para a solicitação de refúgio, e de que formas esses migrantes podem regularizar sua situação no país junto à Polícia Federal (PF). Além disso, a legislação garante a não criminalização da imigração irregular e assegura uma série de direitos para migrantes, como acesso à saúde, educação e trabalho, além de proteção contra deportações arbitrárias.

De acordo com a Presidente da Comissão de Relações Internacionais da OAB-DF, Clarita Maia, a grande maioria das pessoas deixam seus países de origem para fugir de conflitos armados, crises econômicas, desastres ambientais e perseguições políticas ou religiosas. Segundo ela, o Brasil é um destino comum para quem busca por melhores condições de vida, fuga de conflitos ou perseguições política, religiosa e étnica, reunificação familiar e oportunidades de trabalho. “Para muitos refugiados, o Brasil é visto como um país acolhedor devido à sua legislação migratória relativamente aberta.”

Dados do Censo 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) — projeto de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação da Universidade de Brasília em parceria com o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) —, mostram que há aproximadamente 27 mil migrantes residindo no DF, concentrados, principalmente, em áreas periféricas como Ceilândia, Taguatinga e Planaltina, onde o custo de vida é mais acessível. A maior parte deles tem entre 20 e 29 anos e vem de países como Venezuela, Haiti, Bolívia, Síria e alguns países africanos como Senegal e Congo. “Brasília, como capital, atrai diplomatas, refugiados e imigrantes em busca de oportunidades de emprego no setor público ou projetos de desenvolvimento”, explicou Clarita Maia.

Arte: Birô de Criação


Sei que ainda vou voltar


Segundo a Presidente da Comissão de Relações Internacionais da OAB/DF, muitos imigrantes — principalmente aqueles que fogem de situações de conflito ou perseguição — têm a intenção de permanecer no Brasil. Apesar disso, uma parcela significativa também busca retornar aos países de origem após a estabilização da situação vigente, ou por não conseguir se estabelecer adequadamente no Brasil.

“A barreira do idioma e dos costumes se soma às dificuldades de inserção no mercado de trabalho, discriminação e preconceito — muitas vezes de natureza racial, religiosa ou xenofóbica — e falta de suporte psicológico e social. Muitos também enfrentam desafios para o reconhecimento de suas qualificações profissionais.”, explicou Clarita Maia.

A reportagem questionou o MJSP sobre a existência de iniciativas governamentais que busquem auxiliar imigrantes sobre essas questões. O ministério citou que existem projetos em andamento em parceria com universidades e outras organizações da sociedade civil, com o apoio de organizações internacionais — como a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) e a Organização Internacional para as Migrações (OIM) —, voltados ao aprendizado da língua portuguesa por meio da metodologia Plac (Português como Língua de Acolhimento), à empregabilidade e geração de renda, à educação financeira, ao combate ao racismo e à xenofobia, entre outras temáticas pertinentes a refugiados e migrantes no Brasil.

É ainda lá que eu hei de ouvir


Quando deixou a cidade de Lechería, capital do município autónomo Diego Bautista Urbaneja — a 230 quilômetros de Caracas —, na Venezuela, em 15 de janeiro de 2023, Gliceida Elisbeth Farrera, de 36 anos, não imaginava que sentiria tantas saudades do mar.

“Chachi”, como é conhecida pelos íntimos, o marido e os quatro filhos saíram do país, carregando não muito além das roupas do corpo e um sonho: construir uma vida melhor no Brasil.


Deixaram para trás família, amigos, a vida que conheciam e o mar, companheiro de Chachi desde seu nascimento, pela seca realidade do Cerrado brasileiro, a uma distância de pelo menos 1100 km da praia mais próxima. “A situação estava muito difícil. Tinha dificuldade de alimentação e de medicina, muitas coisas que nos impediam de morar na Venezuela. Eu e meu marido ganhávamos em dólar, e tínhamos uma renda mensal de menos de 200 dólares. Isso não dava para fazer um mercado, comprar outras coisas, sustentar nossa família”, contou, ainda se esforçando para adaptar-se ao português.

A família chegou ao Brasil em Pacaraima (RO), e dependeu do programa de interiorização do governo brasileiro, Operação Acolhida, para chegar ao DF. “Ficamos em Roraima e tivemos que tirar o CPF, fazer carteirinha de vacinação e carteira de identidade. Minha filha mais velha tem problemas de locomoção, e tivemos que aguardar a liberação de um médico para nos auxiliar a trazê-la para Brasília.” Em sete de março de 2023, pisaram em solo brasiliense, no bairro Zumbi dos Palmares, em São Sebastião.

Segundo o MJSP, é considerada refugiada a pessoa que deixa seu país de origem ou de residência (no caso dos apátridas), em decorrência de fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a determinado grupo social ou opiniões políticas; ou, ainda, devido à grave e generalizada violação de direitos humanos em seu país de origem ou residência. Refugiados se diferenciam de imigrantes uma vez que os últimos se deslocam por motivos diferentes dos relativos ao refúgio, como busca de oportunidades de trabalho, estudos, melhores condições de vida, entre outros.

“Há muitos venezuelanos em Pacaraima. Está saindo muita gente por conta de como está o país. Mas não podemos falar muito disso por conta do governo de lá.” Chachi pediu que não nos aprofundássemos sobre a relação com o governo venezuelano por temer as consequências do que isso poderia implicar para ela e sua família que continua na Venezuela.

Perguntado a respeito da relação entre refugiados e a imigração ilegal, o MJSP reforçou que a lei de refúgio brasileira, em consonância com a Convenção de Genebra de 1951, prevê que o ingresso irregular no território nacional não pode ser tido como impedimento para a solicitação de refúgio às autoridades competentes no Brasil. O ministério destacou, ainda, que “pessoas em busca de refúgio, na realidade, estão em busca de proteção internacional, já que seu país de origem ou residência foi incapaz de provê-la”.

Atualmente, a família de Chachi se mantém apenas com o trabalho do marido. “Eu trabalhava em um restaurante, e o dono me ajudava com o portugês, me corrigindo quando eu errava. Foi difícil me adaptar. Eu tive que deixar o trabalho por dificuldades de saúde. Sinto dores nos joelhos, algumas tremedeiras e tem isso aqui”, disse, levantando a cabeça e apontando para o inchaço no pescoço. “Fiz alguns exames para entender a origem das dores, mas esse inchaço a médica disse que pode ser tireoide. Me disse para ir ao Paranoá [Hospital Regional do Paranoá] para examinar, mas eu não fui. Não sei onde fica.”

Em Lechería, Chachi tinha uma forte conexão com o mar, seu sabiá. “Sinto falta de ter praia perto. Era muito linda a praia de lá. Eu nasci em frente ao mar.” O irmão, mergulhador de águas profundas, não quis sair do país por não aguentar a distância das águas. A irmã é casada com um pescador, mesma profissão do avô materno, que tinha um restaurante em frente ao oceano.

Aqui gorjeiam melhor que lá

Gliceida “Chachi” posando com um casaco que estampa as cores da bandeira venezuelana. – Foto: Henrique Fregonasse


Mesmo com as condições de trabalho prejudicadas pela saúde, a economia brasileira é motivo suficiente para que Chachi tenha pretensões de permanecer no país. Para ela, a vida melhorou consideravelmente desde a chegada. “Aqui, existe a possibilidade de adquirir uma casa, um carro, tem muita oportunidade aqui no Brasil. Na Venezuela não tem nada. Eu morei 16 anos na casa da minha sogra. Aqui eu moro sozinha com minha família e não tem problema de falta de dinheiro nem falta de alimentação, graças a Deus. Minha filha está estudando, tem transporte, tem uniforme que deram a ela — na Venezuela tem que comprar uniforme, tênis, outras coisas. Aqui tem menos coisas que precisa comprar.”

A vida social, aqui quase inexistente, não pesa na decisão de ficar. “Onde eu moro só tem a minha casa. Tem uma igreja perto, mas não sou esse tipo de cristã, eu acho. Tinha uma irmã, da igreja, que passava pela nossa casa e nos dava ‘bom dia’, mas tivemos uma pequena briga e ela deixou de falar. Eu falo mais com a família do meu esposo, que mora aqui. Não tenho amigos brasileiros.”

Com sua forte crença em Deus, acredita que as amizades são escolhas dele, e confia que uma vida social mais restrita é uma determinação divina. “Se Deus colocar amigos na minha vida, eu aceito de bom grado. Senão, está bom!”

Questionada sobre as dificuldades que passou enquanto refugiada, foi clara ao dizer: “Não tenho queixas do Brasil. Estou muito agradecida ao país e à sua gente, que é muito maravilhosa.” O transporte público brasiliense é a única coisa que não lhe rende tantos elogios. “Podia ser mais fácil andar aqui. Para qualquer lugar que vou, tenho que pegar dois ou três ônibus para chegar.”

O sonho, agora, é trazer o restante da família, da qual sente muitas saudades, especialmente o pai, de 62 anos. “Ele está envelhecendo e eu me preocupo porque lá não tem medicina. Aqui tem. Eu já tentei dizer para que viesse, mas ele não quer deixar os meus irmãos na Venezuela”, contou, com a voz embargada.

Chachi também teme que os filhos queiram voltar ao país quando tiverem idade o suficiente. “Meu filho não é feliz aqui. Não gostou de deixar os amigos para trás. Vive dizendo que vai voltar à Venezuela quando atingir a maioridade, que é daqui a dois anos. Eu queria que toda a minha família entendesse o quão melhor é aqui. Perceberiam que não tem nada para procurar na Venezuela”, lamentou.

O preço pela chance de uma vida melhor é inestimável: não saber quando verá novamente o pai e o tão querido mar. Um preço que está disposta a pagar. A terra natal de Chachi tem palmeiras onde canta o Sabiá, mas aos seus ouvidos, as aves que aqui gorjeiam, gorjeiam melhor que lá.

Confira alguns trechos da entrevista:

Por Henrique Fregonasse

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