“Aqui dentro, ninguém lembra da gente. Lá fora, ninguém quer lembrar”, diz Patrícia*, ex-detenta em uma carta endereçada à “madrinha” Mariana*, da Associação Ame Mulheres Esquecidas (A.M.E).
Essas palavras carregam a dor de quem passou pelo cárcere e ainda enfrenta o peso do abandono.
É nesse contexto que iniciativas como a A.M.E. se destacam, promovendo acolhimento, capacitação e ressocialização.
Shaila Manzoni durante visita no Presídio Feminino de Luziânia (GO) Crédito: Arquivo pessoal
“Esperança”
Para as mulheres ex-detentas, os desafios são maiores, devido ao estigma social e à dificuldade de acessar oportunidades de trabalho e apoio psicológico. No geral, segundo ministério da Justiça, a tava de reincidência é de 50%.
“Eu vi mulheres que chegavam destruídas, sem esperança, se levantarem e descobrirem que eram capazes de muito mais do que imaginavam. É isso que me move todos os dias”, relata Shaila Manzoni, fundadora da associação.
Dentro das prisões femininas, a invisibilidade é quase uma regra. Segunda a fundadora da instituição, muitas mulheres sequer recebem visitas, por exemplo, na Unidade Prisional Feminina de Luziânia.
O local com capacidade para 121 mulheres tem atualmente com 184 presas, configurando superlotação, de acordo com informações do site oficial da Secretaria de Segurança Pública de Goiás.
Entre as cartas deixadas por essas mulheres, mais uma frase de Patrícia ecoa o sentimento de tristeza e abandono: “sinto falta até de um abraço.”
Esse isolamento não é apenas físico, é também emocional e estrutural.
Sem perspectivas de futuro, internas vivem uma rotina marcada por violência e tristeza. No entanto, iniciativas como a A.M.E. têm tentado mudar o cenário.
Ao organizar eventos comemorativos ou doar itens para as celas, a associação tenta resgatar a humanidade dessas mulheres, oferecendo momentos de afeto em um lugar que parece ter sido feito para apagar qualquer traço de dignidade.
“O mais urgente é enxergar o ser humano no meio disso tudo. Sem isso, a gente perde o sentido”, afirma Shaila.
A saída da prisão é um marco muito esperado, mas quase sempre assustador. A liberdade não vem acompanhada de um manual de sobrevivência.
“O portão abriu, mas eu não sabia para onde ir. Minha família não me aceitou de volta. Passei dias vagando, com medo de voltar para o que me levou até ali”, relata Patrícia*, que passou três anos detida.
Foi a A.M.E. que se tornou o ponto de virada para ela. Por meio de uma parceria com empresas locais, ela conseguiu um emprego como cozinheira. “Foi a primeira vez que alguém acreditou em mim”, conta Patrícia por telefone, com a voz embargada.
“Aqui fora, o mais difícil não é encontrar trabalho, é acreditar que você ainda tem algo para oferecer”, acrescenta Ana Maria* (nome fictício).
A parceria com empresas locais, como uma lanchonete, tem sido essencial para abrir portas para essas mulheres. Segundo Ricardo Sechis, dono da rede, “dar uma chance a quem já foi condenado é apostar numa transformação verdadeira”.
“No início, eu não achava que era capaz. Quando me chamaram para a entrevista de emprego, achei que era brincadeira”, conta Ana Maria*, uma das beneficiadas com a parceria.
Hoje, ela trabalha como atendente e já sonha em abrir seu próprio negócio.
“Se não fosse Deus e vocês, eu não estaria mais aqui. Quando tudo parecia perdido, alguém acreditou em mim”, reflete Patrícia, que deixou o presídio de Luziânia há 18 meses.
Em relação ao apoio emocional recebido pelas detentas, destaca-se o papel das madrinhas.
“A gente não julga, a gente acolhe. Minha missão é lembrar a minha afilhada de que ela não está sozinha”, comenta Mariana*, que acompanha uma das mulheres há dois anos. No caso dela, esse apoio se dá por meio de cartas. Muitas vezes é esse laço que impede recaídas ou novos episódios de abandono emocional.
Eventos
Segundo informações divulgadas no site da associação, diversos eventos comemorativos são organizados dentro dos presídios com o objetivo de trazer um pouco de dignidade e afeto para as mulheres privadas de liberdade.
Na foto acima, comemoração de aniversário no presídio de Luziânia. Foto: AME/Divulgação
Datas como Natal, aniversários, Páscoa e Dia das Mães são celebradas e desempenham um papel essencial no resgate da humanidade e no fortalecimento do vínculo emocional das internas com o mundo exterior.
Essas celebrações não apenas proporcionam momentos de alegria e reflexão, mas também ajudam a resgatar a autoestima e o senso de pertencimento, fundamentais para a reintegração social.
Parcerias como a da Remembear reforçam esse trabalho.
Desde 2021, a empresa tem doado itens de decoração para eventos internos, fortalecendo o senso de comunidade entre as participantes. “A gente ficou tocada pelo projeto e quis ajudar de alguma forma. Não é só sobre objetos, é sobre fazer com que elas se sintam especiais, mesmo em um ambiente tão hostil”, destacou Fabiani Silva e Luiza Lima, representante da equipe Remembear..
Durante a entrevista, Renata Hanai, amiga de Shaila e sócia da associação, falou com carinho sobre o impacto do trabalho que realizam. “A transformação de verdade acontece quando alguém olha para essas mulheres e vê mais do que os erros que elas cometeram. É nesse cuidado, nessa empatia, que a gente consegue devolver a elas um pouco de dignidade e esperança. É isso que nós tentamos fazer todos os dias, lembrar que cada uma delas merece uma nova chance, mesmo com todas as dificuldades que vêm depois de sair.”
Por Júlia Christine
Supervisão de Vivaldo de Sousa e Luiz Claudio Ferreira