

Para entender o que se passa no mundo, Daniel Marques, de 45 anos, tem o celular como guia. Ao sair de casa no Guará, ele segue até a parada de ônibus mais próxima com suas mãos bem ocupadas. Em uma a bengala, e na outra o celular. Era início da tarde de uma sexta-feira, quando ele estava pronto para subir no ônibus. Antes de ele entrar, confirmou com o motorista: “Para no centro de Taguatinga?”. O motorista confirmou. E assim, ele subiu sorrindo com seus óculos escuros.
Ao sentar no banco do veículo, pegou o celular e começou a deslizar os dedos rapidamente, e quase que colado no ouvido. Vozes seguidas e aceleradas saíam do aparelho. É que ele estava escutando áudios de whatsapp, a principal rede que o ajuda a ficar bem informado. Ele faz parte de vários grupos para pessoas
com deficiência visual. Entre os participantes, a discussão se estende entre o que é verdade e mentira, e o que é informação e desinformação. Além disso, ele acrescenta que os familiares e amigos não cegos o ajudam muito com as informações. “Eles também participam do grupo”.
Vigilante de notícias
Daniel ainda observa a credibilidade de quem produziu determinado conteúdo e avisa aos demais para fazer o mesmo, a fim de evitar conflitos. “Tem que ter muito cuidado com o que a gente divulga hoje em dia para passar adiante as coisas para os outros. É um erro gravíssimo não saber a fonte da informação”.
Em um dos grupos, Daniel é administrador, e atua como um vigilante no momento em que os seus colegas compartilham notícias. “São muitas informações falsas. Você não pode pegar um vídeo divulgado em uma rede social e simplesmente jogar lá no grupo”.
Ele aponta a importância de checar primeiro a informação em um veículo confiável, que conforme ele, os principais são as emissoras de televisão. “Você pode pegar vídeos dos jornais de qualquer emissora, que por mais que exista um lado político, ela vai dar a informação correta”, argumenta.
Voltando ao trajeto que Daniel percorria, pelas vias da EPTG em rumo a cidade de Taguatinga, eu e ele começamos a conversar. Fiz uma série de perguntas. Daniel respondia a todas, com tranquilidade e bom humor. Começou a falar de suas paixões. Automóveis é a primeira delas. Até que soltou “pelo som do motor desse ônibus, já sei que é da empresa Marechal”. Fiquei surpresa com a precisão do acerto. Em seguida, ele dispara: “Meu tato e minha audição são a minha visão. Acredito que se eu enxergasse, não notaria esses detalhes, assim como as pessoas com visão não notam”.
Assistente pessoal
Enquanto conversávamos, Taguatinga se tornava mais próxima, até que Daniel colocou o celular entre o ouvido e olho direito, e começou a passar o dedo indicador e o dedo do meio da mão esquerda rapidamente, uma voz robótica saía do aparelho a medida que Daniel fazia os movimentos. Até que uma voz feminina soou, era sua amiga Lidiane, que tinha acabado de mandar um áudio avisando onde estava para que eles pudessem se encontrar.
Essa voz robótica que lia aquilo que Daniel clicava na verdade é um leitor de tela em voz que os sistemas de celulares desenvolveram para promover acessibilidade para pessoas com deficiência. Como um assistente pessoal, nos celulares Android ele se chama TalkBack, nos Iphones é conhecido por VoiceOver. Basta ativá-los nas configurações do dispositivo e usá-los. Os recursos para pessoas com deficiência visual incluem texto em negrito, modo alto de contraste e avisos de notificações em voz.
Tocar para confirmar
Para responder aos comandos da ferramenta, com dois dedos é possível rolar a tela e passar de uma página para outra. Com um toque você seleciona o aplicativo que deseja abrir, com dois toques no aplicativo você confirma que quer mesmo abri-lo. O toque duplo significa confirmação.
A professora Helena Rita Pereira, de 45 anos, que é cega e dá aula de Braille no Centro de Ensino Especial para Deficientes Visuais (CEEDV), confia nas instruções do aparelho, e mostra pela primeira vez a novidade tecnológica ao aluno Alírio.

No CEEDV, há aulas para ensinar aos novos alunos como se adaptar a ferramenta tecnológica e manuseá-la para navegar com autonomia no celular.
É por causa dele que eu pude conversar por um aplicativo de mensagens com Daniel e Helena. Essa é a principal ferramenta que os permite se conectar com as pessoas nas redes sociais, fazer ligações, realizar buscas na internet e se manter informado. Helena me mostrou como ela faz quando quer pesquisar algo, ela vai até o aplicativo do google, encontra o botão do microfone na tela e dá dois toques com o dedo. “Pronto, agora eu falo o que eu quero pesquisar. Um exemplo: “pontos de vacinação no DF”. O celular repete em voz o que ela disse e a busca é feita.
No deslizar dos seus dedos, ela vai escutando atentamente o que o leitor de tela vai falando. Quando encontra o que precisa são dois toques de novo. Ao ser levada a página do clique confirmado, o sistema vai lendo palavra por palavra.
O novo da vida no tátil
Helena Rita tem formação em psicologia e pedagogia, mas antes de começar a dar aula já trabalhava como revisora de texto em Braille no Centro de Apoio Pedagógico para Atendimento às Pessoas com Deficiência Visual (CAP), que fica dentro do CEEDV. Suas primeiras turmas foram de soroban – instrumento para fazer cálculo manual – e alfabetização para crianças cegas.
Hoje ela leciona Braille para adultos, um público que segundo ela ainda sente dificuldades para se adaptar à nova linguagem, já que grande parte nasceu e cresceu com a visão total, e foi perdendo ao longo da vida.

“Percebo que as maiores queixas vem da adaptação. Aprender pela via tátil é um processo um pouco lento, então eu busco encorajá-los a não desistir e ainda proporcioná-los uma nova forma de ver e viver a vida”.
A professora atende de segunda a sexta vinte alunos, que são divididos por horários para que ela possa atender cada um Individualmente. Dentro da sala, que é bem pequena, com três carteiras para os estudantes e a dela de professora, ela vai de mesa em mesa ensinando e conferindo os acertos.
Debaixo d’água
No CEEDV, alunos e professores andam pelos corredores somente no lado direito. O meio fica livre. Estranhei por só eu estar nessa linha. Depois descobri que era uma regra. Todos seguem à risca o andar pelo lado direito, para ninguém esbarrar em ninguém. Passei por Alírio e não desconfiei de nada. Ele parecia comigo. Não usava nenhum acessório que entregasse sua particularidade. Não apresentava também nenhuma característica física de limitação. Eu o enxerguei. Ele também, mas só a metade de mim.
Alírio de Oliveira perdeu toda a visão do olho direito e apresenta baixa visão no olho esquerdo. De longe enxerga normalmente, só não consegue diferenciar as noções de profundidade. “É tudo muito plano. Reto”. De perto a visão é embaçada. “Parece olhar debaixo d’água, sabe?”. É pelo olho esquerdo que ele sempre está debaixo da água.
Entrei em uma sala de aula, me apresentei. Essa é a primeira regra de convivência do CEEDV. É ao falar seu nome que todos passam a te conhecer. Conhecer pelo escutar, já que não podem te conhecer no olhar.
Como em um espanto de alegria, eles cumprimentam com um sorriso e repetem meu nome. Eu os cumprimento com mais um aperto de mãos. Pronto, agora sim já estamos mais próximos.
Alírio estava prestes a começar sua aula de digitação. As mãos ficavam na “fileira base” do teclado, que nada mais é do que a fileira do meio. Seu processo de aprender a usar o teclado, agora com uma visão limitada, está avançando, ele já está indo para a última fileira de letras, e passar a ter um domínio maior do instrumento.

As aulas de digitação são acompanhadas de um leitor de tela, que vai lendo letra por letra, a medida que o aluno vai apertando tecla por tecla.
“L E I T E I R O”
O que Alírio vem buscando desde 2020 é uma autonomia independente de sua condição visual. A vida do delegado aposentado mudou radicalmente. “Eu nunca que imaginei ter um câncer e que com ele viesse a perda da minha visão”.
Há três anos ele vem se adaptando ao “universo da pessoa cega”, participando de aulas do CEEDV, fazendo parte de grupos com pessoas que há anos não enxergam, socializando e aprendendo com eles e se redescobrindo em um mundo novo que ele conheceu aos seus 60 anos de idade. “Hoje eu tenho, sofro na pele uma deficiência visual, e eu passei a conhecer o mundo das pessoas que não tem visão”. Em seu caminhar pela vida, o entusiasmo e o ressignificar não se deixam ir pelos sufocos das dificuldades.
“Eu vou indo. Vou enfrentando. Transformando”, afirma.
Rede é informação
Quando o assunto é se informar mais e melhor, a resposta é clara e direta. “Não confio no que está nas redes sociais”. Segundo Alírio, boa parte do que está no online são informações manipuladas, e sua preferência é ouvir os telejornais e o rádio. Mas principalmente, escutar e verificar com sua rede de “pessoas bem informadas”
“Minha família e amigos são todos bem informados. Quando eu tenho alguma dúvida, ligo para um deles e pergunto.” Por ter trabalhado por décadas na área de segurança e investigação, os amigos delegados também são suas fontes confiáveis para o que ele vem escutando de boca em boca.
A esposa dele, Sandra, 52, que já trabalhou com comunicação e jornalismo, é sua maior checadora de informações noticiosas, e é a que guia os passos do marido antes dele ter qualquer atitude. “Eu não tomo nenhuma ação sem ter certeza que a informação que me chegou é correta”.
A certeza vem daqueles que o amam e o cuidam. E a veracidade daqueles que ele acompanha diariamente, justamente por acreditar no trabalho feito e transmitido, que são os jornalistas.
Simples e acessível
“A missão é dar acesso às coisas simples”. Essa é a primeira meta apontada pela professora Helena Rita Pereira. As coisas simples que ela se refere nada mais são do que materiais impressos em linguagem acessível e inclusiva à comunidade cega. O simples é o braille. O acessível também precisa ser o braille.
A vocação de Patrícia Silva de Jesus se resume em uma só palavra: acessibilidade. Ela diz acreditar que o seu caminho já estava muito bem delimitado desde muito nova porque o que ela tem feito desde a adolescência é entender o universo da pessoa com deficiência e promover um mundo mais inclusivo e acessível.
Autodidata, Patrícia aprendeu braille sozinha aos 16 anos, enquanto ajudava os colegas cegos de sua escola. “Foi nessas trocas que eu fui me tornando profissional. Depois eu recebi um convite para estagiar no Instituto de Cegos, em seguida eu passei oito anos no setor braille da Biblioteca Pública do Estado
da Bahia, e lá eu produzia livros acessíveis”.
Se tornando em seguida professora de educação especial e inclusiva, Patrícia Braille como ficou conhecida, destaca que uma garantia para que pessoas cegas estejam cada vez mais inseridas na sociedade e bem informadas é o fornecimento de sites acessíveis, com textos em áudios, com opções de ampliação de fonte e leitores de tela.
Além disso, o recurso de audiodescrição é um dos seus principais objetos de estudo e aplicação no trabalho. A inquietação por oferecer produto e serviço acessível fez com que ela criasse o Manual de Audiodescrição em QR Code em materiais impressos para pessoas cegas.
“O manual é um passo a passo de como colocar audiodescrição em QR Code em produtos editoriais impressos, ou seja, em livros, revistas, folhetos, periódicos em geral”, explicou.
O material foi mais um instrumento que ela pôde desenvolver com o objetivo de proporcionar acesso inclusivo aos não visuais. “Vivemos em uma sociedade que privilegia o olhar, a comunicação é baseada estruturalmente em imagens.
Pensa como essas pessoas ficam em desvantagem se essa comunicação não tiver a audiodescrição”, recorda Patrícia.
Para a professora Sinara Pollom Zardo é com propostas como essa que o mundo precisa aprender logo e botar em prática o quanto antes. A coordenadora do Laboratório de Apoio às Pessoas com Deficiência Visual da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) e diretora da Diretoria de Acessibilidade, traz a problematização de informação acessível e informação acessada.
Para ela, a informação precisa ter formatos acessíveis para que seja acessada pelas pessoas com deficiência visual. “Isso porque a forma como um texto é colocado no site, muita das vezes a configuração dele não é passível de conversão para um leitor de tela”, exemplifica.
O leitor de tela é o principal recurso tecnológico que permite ajudar as pessoas com deficiência visual a navegar pelo computador e pelo celular. Essa inteligência artificial já está disponível nos sistemas e softwares digitais, basta os administradores dos sites instalarem e aderirem a esse meio.
Vizinho popular
Conviver com algo ou alguém sem precisar se comunicar pode ser uma tarefa difícil para alguns, mas há quem consiga lidar tranquilamente. O que Alcides Lino, de 52 anos, protesta é que por causa do vizinho ele acaba se sentindo em desvantagem. O outro é mais popular, mais imediato, mais atraente, mais rápido, e mais do que tudo isso, todos querem saber dele, estar com ele e apreciá-lo. Alcides fica em segundo plano, e acaba levando as dores do lado de cá. Alcides e a internet são vizinhos, mas não se falam. O caso deles é mais atípico ainda. Os dois moram na mesma casa, mas preferem ficar cada um no seu canto.
Há cerca de 15 anos, Alcides, começou a sentir os primeiros sintomas de uma doença que viria a ser irreversível na sua vida. Foi no trabalho, um açougue em Ceilândia, que ele começou a ter dificuldades em ler as notas fiscais das mercadorias. Pensou que teria que começar a usar óculos, mas na verdade, o que ele não esperava era um diagnóstico de glaucoma nos dois olhos.
A catarata é a principal causa de cegueira mundial, que pode ser resolvida com uma cirurgia. Mas o glaucoma não. Ele é a principal causa de cegueira irreversível. Segundo a Sociedade Brasileira do Glaucoma (SBG), até 2,5 milhões de pessoas com mais de 40 anos no Brasil podem ser afetadas pela doença.
O oftalmologista Danillo Almeida explica que o paciente vai perdendo a visão periférica inicialmente, ou seja, de fora para dentro, e de uma forma assustadora porque a doença é silenciosa. “O que vale destacar no glaucoma é que ela se torna uma doença desafiadora porque na maior parte dos casos ela é assintomática”. Ele acrescenta que o paciente só consegue identificar se tiver crises agudas – dor intensa nos olhos e ao redor deles, ou quando ele é diagnosticado pelo próprio oftalmologista durante o exame médico.
O presidente da SBG, Roberto Galvão Filho, reforça o silêncio do glaucoma com um dado alarmante: “70% das pessoas não sabem que sofrem com a doença”. Além disso, o glaucoma é uma doença hereditária – quem tem parentes próximos, têm uma predisposição maior a desenvolver.
Analogicamente conectado
Além de dividirem a mesma casa, Alcides e o ex-cunhado possuem duas grandes diferenças: a visão e o que possuem na palma da mão. Um possui baixa visão e um celular analógico, o outro enxerga normalmente e está nas redes.
Com um óculos de armação preta, Alcides vai mantendo a pouca visão do olho direito. Usa uma lupa para poder ler e enviar as mensagens de texto pelo celular, fazendo questão de usar a visão que lhe restou para ter mais uma forma de se comunicar com as pessoas.
Ele que veio de Bom Jesus da Lapa (BA), mas foi criado em Barreiras, precisa ligar para conseguir falar com os parentes. Basta alguns toques no teclado para o celular ir ao ouvido, e a ligação diminui distâncias e acolhe as saudades.
“Estou sempre conversando com eles, mas tem alguns que preferem falar por mensagens no whatsapp. Não gostam de ligação. E por aí já começa a exclusão. Fica difícil falar com eles”. O celular de Alcides não tem internet e ele não possui nenhuma conta em redes sociais.
Na cena do rádio
Com o celular de teclado da marca Positivo, Alcides navega não nas re des sociais, mas pela diversas linhas de transmissão de rádio. “Preciso ficar bem informado, né?”, ele analisa. São as notícias do rádio que o atualizam no dia a dia, já que seu celular não é smartphone e por isso não tem acesso a internet.
Ele que possui baixa visão, depende quase que exclusivamente de sua audição para ficar por dentro das notícias.

Para a jornalista de rádio Deborah Fortuna, a mágica acontece quando o ouvinte é inserido na cena de um de terminado acontecimento. “Não é só dizer uma informação por informação, mas trazer minuciosamente os detalhes”. E quando a informação é ouvida por pessoas com deficiência visual, o trabalho precisa ser dobrado para que, segundo a profissional, a notícia seja transmitida de forma clara e coesa.
“No rádio tem que mostrar emoção, clima, trazer sons, cheiros e uma descrição sem preguiça do fato que está sendo narrado para melhor compreensão do ouvinte cego”, assegura.
Alcides também é aluno do CEEDV, e diz que gosta de debater as notícias do cotidiano com os outros colegas da escola, e que assim eles vão se ajudando, descobrindo coisas novas, compartilhando experiências, e principalmente incentivando o debate e o senso crítico.
Ele também voltou a fazer aulas de Braille, e está empolgado para mergulhar cada vez mais no conhecimento tátil. A professora Helena Rita descreve a importância que o Braille proporciona para aqueles que um dia já tiveram uma visão plena mas que hoje são acometidos pela falta dela. “A visão é um sentido privilegiado, e aprender a linguagem em Braille é resgatar nossa liberdade que
um dia foi roubada”.
Ela ainda entende que o Braille é antes de qualquer denominação, “uma função social”. “A tecnologia não substitui o contato pela palavra física. O braille é autonomia, encorajamento. É o resgate da nossa cidadania”, completa.
Por Paloma Castro
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira