Dos quase 644 mil presos em todo o país, 474 mil têm a chance de estudar dentro dos presídios. Isso significa que pouco mais de 73% têm acesso à educação enquanto cumprem penas nas carceragens espalhadas pelo Brasil. Especialistas, porém, afirmam que o cenário é preocupante, porque consideram que o sistema penitenciário deveria garantir meios de ressocialização para toda a população carcerária.
A colaboradora e assistente social da Associação de Familiares de Internos e Internas do Sistema Penitenciário do DF e Entorno (Afisp), Julie Lima, 33 anos, diz que o direito ao estudo é negligenciado para os detentos. “O trabalho, o acesso à educação, à escola, à cursos profissionalizantes, à biblioteca, livros, que deveriam ser um direito e infelizmente não é, é um privilégio”, relata.
A garantia de um sistema educacional de excelência nos presídios não tem relação apenas para que os detentos adquiram conhecimento, mas, sim, para reconstrução da autoestima e redução da reincidência criminal. Dessa forma, a sociedade tem a oportunidade de refletir sobre o papel da educação na reinserção social e na construção de um sistema penal mais eficaz.
Também membro da Afisp, Alessandra Paes, 44 anos, técnica de radiologia e defensora dessa causa, exalta a importância de ampliar o acesso à educação nas penitenciárias. “Aumentar o quantitativo é essencial para que todos tenham acesso à educação dentro dos presídios. É um passo significativo na promoção da ressocialização e na construção de um ambiente mais propício à reinserção na sociedade”, afirma.
Os presídios brasileiros têm a obrigação de fornecer educação, assim como consta no artigo 11, inciso IV da lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, conhecida como Lei de Execução Penal. Mas o cenário do país ainda não é o ideal. O maior índice de presos matriculados em educação prisional, levando em conta a quantidade total, é no estado do Rio de Janeiro: dos 47.619 carcerários, apenas 24.723 estudam, o que equivale a 51,92%. Já no Distrito Federal, dos 15.363 detentos, 2.683 estão matriculados em educação, ou seja, somente 17,46%. Confira o gráfico com a representação de porcentagem por estado:
Crédito: produção própria
A professora Larissa Dantas leciona em presídios desde 2006 e conta que é possível estudar desde o 6º ano do Ensino Fundamental até o 3º do Ensino Médio. Contudo, ela explica que existem limitações que variam de acordo com cada centro educacional. Por exemplo, devido a questões de segurança, os professores ficam separados dos alunos por uma grade e não é permitida a entrada de livros nas celas.
Entretanto, a professora destacou a importância do material educacional no processo de ensino dos detentos. Ela ressaltou que, embora haja tempo disponível dentro das celas, a falta de material é uma barreira que limita o aprendizado. “A segurança sempre barra a escola. É uma luta. E, na verdade, deveriam trabalhar juntas porque a educação é o coração do presídio”, relata Larissa.
Ainda segundo ela, além do conhecimento, quem estuda tem direito a remissão, que é um incentivo relevante dentro do sistema prisional. Ou seja, detentos que dedicam tempo aos estudos, têm a pena reduzida. “ Cada 12 horas de estudo resulta em um dia remido. Então compensa muito”, explica ela.
Apesar dos empecilhos enfrentados, Larissa conta que alguns alunos conseguem mudar de vida através do ensino, como o caso do ex-presidiário, o qual prefere ser identificado como F.S., que estudou por sete anos nos presídios, e após completar a pena, conseguiu ingressar na universidade por meio da nota no Enem. F.S. começou os estudos semianalfabeto ainda dentro do presídio, contudo, após dedicação, conseguiu tirar 920 na redação do Enem. “No início eu tive uma certa resistência em voltar para a sala de aula, ainda mais dentro de um presídio. Mas tenho consciência de que as aulas me deram uma nova chance para que eu pudesse mudar de vida”, ressalta.
F.S. é um exemplo de inspiração para a professora Larissa. Ela, que sempre acredita em uma segunda chance para seus alunos, vê a escola no presídio como uma luz no fim do túnel. “A cada dia que passa o que eu vejo é a evolução de quem quer sair de lá, de quem quer se formar e correr atrás. Eu acredito muito nos meus alunos.”
Ao contar sua história de superação, F.S. deixa uma mensagem de esperança em relação a recomeços após a prisão. “Há oportunidade de recomeçar a vida mesmo dentro do presídio. Eu sou a prova viva, pois vivenciei na prática e aproveitei todas as oportunidades que me foram ofertadas”, afirma. Mas a história de F.S. ainda é minoria. Existem diversos fatores que dificultam o acesso aos estudos para os presidiários e nem todos conseguem ter que F.S teve, não por falta de vontade, mas por falhas no sistema.
Enem para pessoas privadas de liberdade
O Enem PPL (Exame Nacional do Ensino Médio para Pessoas Privadas de Liberdade) avalia o desempenho do participante que já concluiu o Ensino Médio e, a partir de critérios utilizados pelo Ministério da Educação (MEC), permite o acesso ao ensino superior por meio de programas como o Sisu, ProUni e Fies. O programa foi desenvolvido pelo MEC, em parceria com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisadores Educacionais (Inep), e tem como objetivo não só avaliar o desempenho dos participantes que concluíram o Ensino Médio, mas também proporcionar novas oportunidades de acesso ao Ensino Superior.
A professora Larissa vê a importância do Enem para seus alunos e procura ajudá-los nos conteúdos. Segundo ela, é uma prova diferente da convencional, mas com o mesmo grau de dificuldade. Por isso, ela busca sempre levar os cadernos de questões antigos, como material de estudo. Apesar disso, ela explica que só a aprovação não é o suficiente para que o detento possa assumir o curso desejado.
“Quando o aluno é de regime fechado ele não consegue fazer uma faculdade, porque ele teria que estar no regime semiaberto. Então se ele passar no Enem estando em regime fechado, ele tem que cumprir a pena. A nota tem validade de dois anos para ingressar na faculdade”, explica a professora.
Segundo o Inep, a única diferença entre a prova do Enem PPL para o Enem comum é a aplicação. O instituto descreve que a prova ocorre dentro de unidades prisionais e socioeducativas indicadas pelos respectivos órgãos de administração prisional e socioeducativa de cada unidade da federação. Assim, o Enem PPL é aplicado em penitenciárias, cadeias públicas, centros de detenção provisória e instituições de medidas socioeducativas. A aplicação é posterior ao Enem regular e ocorre em dias úteis, pois aos fins de semana os detentos recebem visitas.
Além disso, a Justiça brasileira prevê por meio do Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) nº 165084, relatado pelo Ministro Gilmar Mendes, do STF, que um sentenciado aprovado no Enem deve ter um total de 133 dias remidos em sua pena. Ou seja, o cálculo da remição deve ser feito com base em 50% da carga horária definida legalmente para o Ensino Médio regular (2.400 horas).
Direitos humanos e a ressocialização
A doutoranda em direitos humanos e mestre em educação, Luciana Nogueira, explica que a educação dentro dos presídios não deve ser utilizada como uma moeda de troca. Ela afirma que o acesso ao estudo, além de uma das maneiras que mais garantem a ressocialização, é um direito que deve ser assegurado a qualquer pessoa, independentemente da situação em que se encontra.
Ao invés de produzir mais criminosos, o sistema penitenciário precisa se preocupar com as questões de educação, o que não deve ser tratado apenas como uma moeda de troca para a diminuição de pena. “O certo é pensar nesse homem como um cidadão com direitos e uma nova oportunidade de agir diferente”, explica a especialista.
Nogueira explica que, caso esses direitos não sejam assegurados, a reclusão pode se tornar um ciclo vicioso. Nesse cenário, o indivíduo cumpre a sua pena, mas, posteriormente, ele pode recorrer novamente ao crime, principalmente pela falta de oportunidades. Segundo ela, quebrar essa sequência de criminalidade só é possível se o estado disponibilizar alternativas de mudança e educação.
Além disso, a especialista destaca que mesmo que alguém cometa um crime, essa pessoa não pode deixar de ser tratada como ser humano e não deve ser excluída da sociedade. “É importante levar em consideração que esse indivíduo não deixa de ser um humano. Eu acredito que a questão fundamental é enxergá-lo sob a ótica dos direitos humanos, não como alguém que está simplesmente condenado à morte social ou à exclusão da sociedade, mas como alguém que pode ser reeducado, reintegrado ao mercado de trabalho e à sociedade, sendo reinserido”, destaca.
Por: Isabele Azenha, Marina Moroni, Milena Dias, Nathália Maciel e Paulo Gontijo
Sob supervisão de Isa Stacciarini