Movimento agitado ao redor do estádio Mané Garrincha, em Brasília. A repórter faz o trabalho jornalístico, a entrevista. Microfone em punho. Câmera ligada. Fonte falando. De repente, a profissional sente um beijo “bem babado” no pescoço. Um torcedor na arquibancada do estádio a assediou ao vivo.

Imagine-se trabalhando e alguém sem a sua permissão tocar no seu corpo. Se sentir violada. É isso o que muitas mulheres jornalistas passam no exercício da sua profissão. Foi o que aconteceu com a repórter Carina Ávila em 2019 em uma cobertura de um jogo entre Flamengo e Avaí.
“Na hora, eu fiquei sem reação porque eu estava no meio da entrevista. A torcedora do Avaí estava me dando a resposta dela naquele momento e eu não sabia se eu interrompia para gritar com o homem e correr atrás dele. No final das contas, eu segui a entrevista com ela e me mantive focada no meu trabalho”, afirma a repórter.
Como jornalista esportiva
Carina Ávila afirma que como jornalista esportiva já sofreu muito assédio em estádios e em coberturas, especialmente de futebol masculino. “O futebol masculino, infelizmente, ainda é um ambiente extremamente machista e muitas vezes os homens que estão ali para assistir ao jogo veem uma repórter mulher trabalhando e acreditam que o corpo dela está ali para satisfazê-los. Que o nosso corpo é público”.
Ela também recordou episódio semelhante em que estava ao vivo também na frente do estádio Mané Garrincha, em Brasília, e um torcedor deu um beijo no ombro dela enquanto a jornalista passava as informações do jogo, que era Flamengo e Vasco pelo campeonato brasileiro em 2019.
Fora do Brasil
Fora do Brasil, a jornalista também passou por assédios. Ela conta que em 26 de maio de 2018 o jornal onde ela trabalhava a enviou para Madri, na Espanha, para acompanhar a festa da torcida do Real Madrid na final da Champions League. O jogo era contra o Liverpool e acontecia em Kiev, na Ucrânia, mas transmitiam na capital espanhola no estádio Santiago Bernabeu, do Real Madrid.
Carina Ávila afirma que lhe pediram para gravar um boletim de um minuto que passaria em salas de cinema do Brasil, junto com a partida. Ela diz que chegou duas horas adiantada, mas não conseguiu gravar o boletim de apenas um minuto sem ser interrompida. “Foram centenas de tentativas e eram torcedores que me davam beijo, na cabeça, na bochecha, que pegavam meu cabelo, que pegavam o microfone da minha mão. Eu estava sozinha e uma mulher sozinha ali estava extremamente vulnerável”, conta Carina Ávila.
Assista às tentativas de Carina Ávila de gravar o boletim:
na final da champions league de 2018, me pediram pra gravar um boletim de 1 minuto na frente do santiago bernabéu, estádio do real madrid.
— Carina Ávila (@CarinaCAvila) March 28, 2021
eu estava completamente sozinha. coloquei a câmera no tripé e fui pra frente dela tentar gravar. missão impossível… pic.twitter.com/h5J9M2ZZ93
A profissional afirma que guardou todas essas tentativas frustradas de gravação no cartão de memória da câmera e dois anos depois ela editou e colocou todas juntas nas redes sociais e o vídeo viralizou. “Eu saí desse jogo super frustrada porque era uma oportunidade incrível poder fazer uma gravação da Champions League, em Madri, para salas de cinema, e eu não consegui entregar. Todas as minhas tentativas tiveram interrupção”, afirma a repórter.
Carina Ávila conta que, no dia do ocorrido, teve uma sensação de impotência, de não saber o que fazer ou como agir. “Eu queria me defender, mas não sabia como. A situação é mesmo de manter a calma e seguir tentando fazer o meu trabalho na esperança de que uma hora vai dar certo”.
Deixar o jornalismo não é opção
A profissional afirma, porém, que nunca teve vontade de deixar o jornalismo, mesmo depois dos assédios que sofreu. “O jornalismo me move, me inspira, me dá vida”.
Atualmente, ela mora em Sevilha, na Espanha, porque faz um mestrado na cidade. Depois de cinco anos trabalhando na TV Globo, ela pediu demissão em 2021, mas continua como jornalista em uma empresa norte-americana e também escreve reportagens como freelancer para veículos brasileiros.
A profissional acredita que esses ataques contra mulheres jornalistas devem ser “severamente punidos e repreendidos”. Para ela, não podem ser normalizados nem vistos como uma “brincadeira”.
“Eu espero que futuramente nós possamos ser mais respeitadas, principalmente, quando a gente estiver ali, trabalhando. Que as pessoas nos vejam e respeitem o trabalho que a gente está fazendo e não nos vejam como um pedaço de carne, como um rostinho e um corpinho que está ali à disposição para ser abraçado, agarrado, beijado e para falar coisas sexuais. Isso para mim é muito absurdo, você olhar para alguém que você nem conhece e dizer esse tipo de coisa extremamente desconfortável”, afirma a profissional.
“Acostume-se com isso”
A recomendação é de causar asco: “acostume-se” ao assédio. Mas foi exatamente isso que a Samira Castro ouviu de um editor depois de contar uma história inacreditável de assédio.
A hoje presidente da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), Samira Castro, na época repórter de um jornal, conta que foi para uma entrevista com um empresário, da área que ela cobria, economia, e ele pegou na perna dela.
“Eu estava de saia e eu tive que tirar a mão dele da minha perna e dizer ‘com licença, eu estou trabalhando. Você está confundindo as coisas’”, afirma Samira Castro.
Não foi de imediato que ela tomou consciência de que algumas situações que a incomodavam, como essa, eram, de fato, assédio e violência. E quando ela levou ao conhecimento de seu editor, ele apenas disse “acostume-se”.
Nesse caso do assédio da fonte, a jornalista pediu para não entrevistar mais aquela pessoa. “Eu disse, então, ‘olhe, eu não vou mais fazer entrevista com fulano de tal porque eu me senti desconfortável’. O editor até certo ponto respeitava, mas eu via que a estrutura da redação era um pouco de naturalizar essas questões”, conta a presidente da Fenaj.
Samira Castro afirma que já sofreu inúmeras violências enquanto mulher jornalista no exercício de sua profissão, especialmente, no começo da carreira por ser uma jornalista jovem e trabalhar em uma “área considerada masculina”. Ela disse que sofreu cantadas, assédio de fontes, de chefes, de colegas de trabalho e já ouviu piadas machistas e sexistas. “Muitas vezes, a minha competência foi posta à prova pelo fato de ser mulher e jovem”.
A presidente da Fenaj acrescenta que as mulheres vítimas de violência no exercício do jornalismo tendem a se retrair ou, até mesmo, abandonar a atividade profissional.
“A gente não tem nenhum levantamento específico sobre isso, mas o que a gente observa é que as mulheres jornalistas são desmerecidas não só pelo seu trabalho, mas pela sua condição de gênero. Elas são chamadas de burras, feias, gordas. São questionadas pela sua condição”.
Manifesto ‘Deixa Ela Trabalhar’
Samira Castro acredita que há áreas do jornalismo em que as mulheres sofrem mais violências, como política, economia, esporte e segurança pública. Porque a maioria das pessoas consideram “áreas masculinas”.
Além disso, ela afirma que essas áreas motivam as mulheres jornalistas a se unirem. “As jornalistas de esporte, há algum tempo, lançaram o manifesto ‘Deixa Ela Trabalhar’ porque mulheres do esporte eram assediadas ao vivo, por torcedores, por dirigentes de clubes. Então, elas lançaram esse movimento para tentar dar um pouco mais de visibilidade a essa questão”.
As jornalistas que trabalham com esporte lançaram o manifesto “Deixa Ela Trabalhar” nas redes sociais em março de 2018. O objetivo é lutar contra o assédio moral e sexual que elas sofrem nos estádios, nas ruas e nas redações ao exercerem sua profissão.
Repórteres mulheres falam frases impactantes no vídeo do manifesto, como: “somos mulheres e profissionais”; “só queremos trabalhar em paz”; “encosta em mim quem eu quero” e “eu quero respeito”.
Assista ao Manifesto Deixa Ela Trabalhar:
Samira Castro acredita que é preciso debater o assunto “muito claramente”. Ela conta que a Fenaj tem uma Comissão Nacional de Mulheres Jornalistas e incentiva que os sindicatos criem comissões estaduais para que seja possível ter políticas de proteção específicas às mulheres.
“O movimento sindical brasileiro das jornalistas e dos jornalistas precisa debater mais esse tema e ter mais mulheres sendo dirigentes sindicais porque com a nossa visão, com a nossa experiência do dia a dia, a gente pode, por exemplo, pleitear mais direitos em relação a pautas que envolvem riscos, a gente pode fazer cláusulas de convenção coletiva para combater o assédio moral e o assédio sexual no ambiente de trabalho”, diz a presidente da Fenaj.
“Vamos tomar um vinho que eu te conto”
A jornalista Beatriz Roscoe acredita que existem muitas violências que as mulheres jornalistas passam. “Desde aquelas menores do tipo quando você vai entrevistar uma fonte e começa aquele assunto ‘nossa, mas tão nova com esse assunto tão difícil’. Há um pouco de descredibilização, acho que muito por ser mulher. E vai até um ‘vamos tomar um vinho que eu te conto’, situação pela qual eu já passei”, afirma.
A diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal e da Coordenação do Coletivo de Mulheres Jornalistas do DF, Renata Maffezoli, também conta já ter ouvido esse tipo de comentário. Afirmou que já teve um convite de uma fonte para algo “a dois” em troca de uma entrevista.
Para ela, a melhoria dessa situação aconteceria por meio de uma mudança estrutural da sociedade. “É importante fazer o debate público, pois nenhum tipo de violência contra as mulheres deve ser naturalizada”.
Renata Maffezoli afirma que também é necessário falar sobre assédio, machismo e misoginia nos espaços de trabalho. “Apontar as situações que são intoleráveis torna mais fácil o diálogo e a mudança. Muitas mulheres acabam por naturalizar a violência e às vezes não percebem que foram vítimas de uma situação que não deveria ocorrer”.

Projeto “Violência de Gênero contra Jornalistas”
Tudo o que elas estavam tentando fazer era trabalhar, mas acabaram sendo vítimas de um mundo machista que não as viu como as profissionais que elas são. Ouviram comentários que não queriam ouvir, foram tocadas de uma maneira que não queriam ser tocadas, tiveram convites que não queriam ter tido.
Segundo Letícia Kleim, assistente jurídico da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e coordenadora do projeto “Violência de Gênero contra Jornalistas”, a sociedade como a que vivemos atualmente é muito fundada na misoginia e no machismo, o que reflete no exercício do jornalismo porque as mulheres serão “subjugadas” e “atacadas” por ser jornalistas e por ser mulheres. “Por estarem, como é próprio do jornalismo, em um lugar de grande projeção pública e de grande impacto social. Isso acaba gerando mais efeitos e reações que são próprias do machismo”.
A Abraji criou em 2021 o projeto Violência de Gênero contra Jornalistas, com apoio da Unesco. O trabalho monitora ataques contra mulheres jornalistas e ataques de gênero em geral.
O que diz o projeto
Segundo o projeto, em 2022 foram 145 episódios de ataques de gênero ou contra mulheres jornalistas. O número representa um aumento de 13,1% em relação a 2021, quando foram identificados 119 casos do tipo. Leia o relatório do projeto do ano passado.
O projeto traçou também um perfil geral das vítimas desses ataques. São, sobretudo, repórteres ou analistas de meios de comunicação (90,3%), brancas (79,3%), e que trabalham na televisão (52,4%).
O trabalho considera, porém, que as informações sobre cor e gênero das vítimas podem ser resultado de subnotificações e/ou lacunas na coleta de casos. No estudo, há menção às dificuldades com o levantamento. “Essa ressalva leva em conta a dificuldade em relatar, denunciar e, consequentemente, identificar situações de racismo, transfobia e outras formas de discriminação com base em cor, gênero e outros traços físicos e cognitivos das vítimas”, afirma o trabalho da Abraji.
A visão da especialista
Para Letícia Kleim, o gênero deveria ser algo que traz mais pluralidade e inclusão para a liberdade de expressão e para o direito de acesso à informação. “Isso porque, tratando de sociedades democráticas, a gente tem que observar a liberdade de expressão de uma forma mais ampla e integrada com toda a sociedade. Então, buscar a liberdade de expressão é buscar também a liberdade de vozes que estão sendo ouvidas no debate público”.
Assim, Letícia Kleim diz que o gênero deve ser um elemento fundamental a ser considerado quando se pensa em defesa da liberdade de expressão, mas muitas vezes isso é invertido e o gênero se torna ferramenta de ataque contra as pessoas que estão exercendo sua profissão de jornalista ou da liberdade de expressão de forma geral.
O projeto em números
Segundo o projeto Violência de Gênero contra Jornalistas, as agressões mais comuns no monitoramento de gênero foram os discursos estigmatizantes (74 casos, 51% do total). Já a cobertura que mais gerou ataques foi a política (62,7%).
Quanto aos agressores, a maior parte dos casos (57,2%) envolveu a participação de agentes não identificados, como manifestantes e internautas. Atores estatais estão em segundo lugar (29,5%). Além disso, em 57,9% dos ataques de gênero e/ou a mulheres jornalistas, os agressores são homens.
Assista ao vídeo que explica o estudo:
E para diminuir os ataques?
Já para tentar evitar ou diminuir os ataques a mulheres jornalistas no exercício da profissão, Letícia Kleim acredita que não há uma única resposta. “É, na verdade, um conjunto de fatores, pensando no conjunto de atores envolvidos nesses ataques”.
Segundo ela, a parte do Estado é muito importante. “A gente observa que muitos ataques são causados por agentes estatais. Há o primeiro passo de garantir que eles não sejam propagadores de ataques contra jornalistas, especialmente mulheres jornalistas”. Letícia Kleim afirma que o Estado também tem o dever de prevenir os ataques e proteger as mulheres quando a violência acontecer, inclusive investigar e punir os agressores.
“Desenvolver melhores mecanismos de proteção para jornalistas e desenvolver melhores protocolos para as autoridades policiais e todo o sistema de Justiça para conseguir tratar esses crimes contra jornalistas não somente como crimes, mas também pelo impacto social que eles têm de restrição da liberdade de imprensa”, afirma a assistente jurídico da Abraji.
Para ela, os próprios veículos de comunicação devem estar preparados para fornecer o apoio necessário para as jornalistas e também eliminar as práticas de violência de gênero que acontecem dentro das redações.
Letícia Kleim cita, por fim, que outro fator que deve estar sensibilizado para as questões de gênero são as plataformas de redes sociais que são onde a maioria desses ataques contra mulheres acontecem. “As plataformas têm que ter políticas de combate a esse tipo de discurso de ódio e que sejam sensibilizadas para questões de gênero”.
O crime tem punição
Melícia Alves de Carvalho Mesel, procuradora e coordenadora nacional de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho do MPT (Ministério Público do Trabalho), explica que a jornalista que é assediada pode fazer um boletim de ocorrência em uma delegacia de polícia e a própria delegacia remete ao Ministério Público Estadual para apuração do crime.
A procuradora sugere também que se faça a denúncia no Ministério Público do Trabalho quando a profissional estiver em uma relação de trabalho e for assediada. Assim, o órgão vai verificar se a jornalista estava em um espaço que já oferecia algum tipo de risco ou de insegurança para a profissional e se a empresa não teve cuidado em protegê-la e portanto, foi negligente.
Se configurada a falta da empresa nesses casos, segundo a procuradora do MPT, a companhia responde por não oferecer as medidas de segurança necessárias. Entre as punições, pode ser exigido que a empresa faça capacitação sobre o tema e tenha normas internas que protejam as mulheres para que o assédio não ocorra.
E o agressor?
Já o assediador pode ser condenado a pagar dano moral para a vítima e também dano moral coletivo, por ofensa à sociedade. O dinheiro, nesse último caso, seria revertido para o fundo de amparo ao trabalhador ou outras destinações coletivas. Se o assediador também for empregado da mesma empresa que a vítima, ele pode ser demitido por justa causa.
No caso do assédio sexual, o agressor pode responder também com uma pena de detenção de um a dois anos.
A procuradora explica que a vítima que denuncia ao Ministério Público um assediador que trabalha com ela tem o direito ao sigilo. Assim, só o órgão público tem as informações daquela denunciante. Mas a vítima também pode optar por denunciar de forma anônima, caso em que nem o Ministério Público teria acesso aos dados dela.
“Às vezes é importante que a denúncia seja sigilosa porque esta pode vir sem informações importantes para a apuração e o procurador responsável pelo caso poderá entrar em contato com a vítima e esclarecer mais fatos. Se for feita de forma anônima e a denúncia não vier com todas as informações, pode dificultar a investigação porque se o procurador quiser mais detalhes, não terá o contato da vítima para colher esses elementos”, explica a jurista.
Outro alerta
A procuradora alerta também para o fato de que se a empresa tem poucos funcionários e há uma denúncia de violência ou assédio, às vezes, com o próprio detalhamento do fato, a empresa pode deduzir que seja aquela trabalhadora a denunciante, mesmo que ela denuncie de forma sigilosa.
“É um risco, obviamente, que a vítima pode correr”, afirma Melícia Mesel. Mas a procuradora diz que é um risco que não pode impedir a vítima de fazer a denúncia porque, caso contrário, ela e outras mulheres continuarão vivendo um ciclo de violência naquele ambiente e outras pessoas podem vir a ser vítimas do mesmo modo. “Denunciar também é um ato de coragem”.
É possível fazer a denúncia para casos de violência no trabalho ou no exercício da profissão também de maneira on-line pelo site do MPT.