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O Supremo Tribunal Federal decidiu, por unanimidade, na sexta (12) invalidar o argumento jurídico de defesa da honra para casos de feminicídio e acolheu o pedido do Partido Democrático Trabalhista (PDT).
O Brasil ocupa o quinto lugar no ranking de feminicídio do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). O Atlas da Violência de 2019 indica que em 5 anos, os feminicídios aumentaram em 17% e o Fórum Brasileiro de Segurança aponta que em 2020, no Brasil, três mulheres são assassinadas a cada três dias.
Tese jurídica
Para a advogada criminalista, Mariana Madera, o argumento de legítima defesa da honra não é válido, pois a honra é um direito subjetivo, de caráter ético e moral. A especialista explica que os crimes dolosos, ou seja, os crimes que atentam contra a vida são julgados de maneira muito rasa e superficial pelo Tribunal do Júri, pois os jurados são leigos, são civis que se voluntariam para julgar, enquanto o Estado, na forma de juiz, somente conduz o processo e aplica a pena definida no júri.
Para Mariana, todos os órgãos de justiça do Brasil, atualmente, estão atuando de forma comprometida e progressiva para combater a violência contra a mulher. Ela cita a criação de mecanismos rápidos e acessíveis que promovem a proteção de mulheres e, mesmo com visão otimista sobre esse assunto, afirma ser um trabalho árduo: “Depende do avanço cultural da sociedade patriarcal que pressupõe a coisificação da mulher.”
A legítima defesa da honra, por esse olhar, justificaria a morte de uma pessoa, geralmente uma mulher, em razão de uma traição. Essa é uma tese jurídica arcaica e inconstitucional que reforça o machismo no ordenamento jurídico brasileiro.
Para Tânia Mara Campos, doutora em antropologia e integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Mulheres (NEPeM) da Universidade de Brasília, no passado da nossa sociedade a honra era um bem para os homens. O patriarca da família precisava zelar para ser respeitado, levando em conta a conduta e o comportamento das mulheres que estavam vinculadas a ele no seu ciclo familiar.
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A antropóloga explica que nessa perspectiva patriarcal, o valor de um homem naquela sociedade era definido por sua honra e, por isso, as mulheres ao redor de uma figura masculina eram controladas para garantir a proteção de si e seu grupo familiar: “A distribuição da honra era uma forma de se pensar a extensão da propriedade, do homem como dono desses outros corpos femininos em torno dele. Ele se constituía da posse, da extensão da sua propriedade, sobre o domínio de corpos femininos.”
Ainda hoje, feminicídios estavam sendo defendidos com este argumento desumano e abstrato, responsabilizando a vítima por sua própria morte e perpetuando a cultura de violência contra a mulher nos dias atuais. Esse tema acaba por ferir o princípio da dignidade humana e o princípio da igualdade de gênero, quando é utilizado para afirmar que uma pessoa pode ser absolvida após matar outra em defesa de sua honra.
A velha ideia de que é no lar que a mulher fica protegida, está deixando de existir. A atual Constituição Federal já estabelece relação de paridade e direitos iguais entre homens e mulheres e reforça a intervenção do Estado em situação de violência dentro da família. Por isso, não faz sentido que ainda se utilize do argumento jurídico de legítima defesa da honra.
A antropóloga explica que, atualmente, essa tese confronta uma perspectiva de igualdade de gênero, justiça social e democracia: “Não faz sentido persistir com esse termo e com essa possibilidade de tipificação e absolvição de crimes.” Para ela, essa decisão atinge diretamente a dignidade da mulher e a proteção à vida, pois gera uma medida punitiva exemplar para a sociedade que não aceita mais esse tipo de conduta.
A criminalista Mariana Madera explica que a legítima defesa é uma causa que exclui a ilegalidade de uma agressão através do uso moderado de força para se defender ou preservar a vida de outra pessoa e está prevista em lei, no artigo 25 do código penal. Já a legítima defesa da honra, coloca a integridade do sujeito como um direito subjetivo, ou seja, que pode ser medido de acordo com os valores e princípios individuais de cada um, sendo abstrato e tendencioso, sem padrão específico.
O STF
Por unanimidade e em sessão virtual, os onze ministros do Supremo Tribunal Federal, decidiram declarar a inconstitucionalidade dessa tese, em casos de julgamentos de feminicídio.
O ministro Dias Toffoli, relator do caso, defendeu que essa alegação é um recurso argumentativo cruel e naturaliza a cultura de violência contra a mulher no Brasil: “Um ato violento deve estar sujeito à repressão penal.”
Após esse entendimento do STF, a defesa do réu não poderá mais sustentar essa tese nas fases pré-processual e processual ou até mesmo no julgamento de júri popular. Caso o advogado tente utilizar essa tese, pode sofrer a invalidação do argumento, gerando nulidade do ato
A criminalista Mariana Madera entende que, com a aprovação do Ministro Toffoli, um debate social de enorme importância é colocado em evidência num país que é marcado por dados alarmantes relacionados à violência contra a mulher. Para ela, os debates jurídicos colocam a luta da violência contra a mulher num campo de visão facilmente visto por todos e traz a necessidade de se combater discursos que violam a integridade física e a vida de mulheres.
Para a antropóloga Tânia Mara, o direito deve se atualizar mais rapidamente em relação ao atraso para alcançar as mudanças sociais, os comportamentos e as representações mais atuais, a fim de se aproximar de uma perspectiva muito mais pedagógica que aponta para o caminho da sociedade que a gente deseja. “O Direito faz uma virada, pulando de conservadorismo para a atualidade dinâmica. É importante lembrar que essa decisão foi tomada no mês da mulher, com um peso significativo, reforçando que nós mulheres precisamos ser vistas, reconhecidas e respeitadas.”
Essa decisão do Supremo Tribunal Federal é simbólica e expressiva, uma vez que a justiça é um poder garantidor de direitos, balizando a sociedade. Na visão antropológica, bem como social e jurídica, esses crimes de ordem passional que antigamente seriam de foro íntimo, são na verdade, um crime de ordem pública e dizem respeito ao bem estar de toda sociedade. O novo posicionamento do STF invalidando essa tese, confirma o quanto esse assunto é de ordem pública e de interesse geral.
Por Renata Goretti
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira