“A guerra de reciclagem é a briga. Todo dia tem briga. Se hoje sair um bocado de gente pra catar reciclagem e tiver quem não consiga catar nada, daí fica naquele sonhar”. O sonho depende do trabalho braçal de Leandro, de 38 anos, o “Demônio”. “De dia passa fome e de noite sonha com a comida”.
Ele não quis falar o nome dele completo, mas permitiu as fotos. Achou melhor que eu o chamasse pelos apelidos. “ Não sou acostumado a falar meu sobrenome pros outros não. Leandrinho, Neguinho, Demônio tá bom(…) geralmente as pessoas confundem a gente com os outros. Então, nem falo muito meu nome”
Leandrinho disse que vai fazer 39 anos em breve, mas não quis falar quando. São 3h da manhã na Asa Norte. O local que ele escolheu para conversar foi embaixo de um bloco comercial da quadra 411. Estava bem escuro e ninguém passava por perto. Rindo, com um pouco de vergonha no canto da boca, ele espreguiçou. “Tirar o boné, por quê? Meu cabelo não fica bonito e tá sem cortar direito”.
Os antebraços com cicatrizes carregavam sete sacos de lixo bem cheios e pesados. Todos amarrados entre si. Algum tempo e alguns movimentos corporais foram necessários para que ele conseguisse colocar todo o material no chão e se sentasse. Apertei suas mãos grossas e sujas. Com o boné em posição diferente, foi possível que a luz chegasse fraca no seu rosto para a foto.
A guerra da madrugada
“É uma guerra porque a gente tem que trabalhar rápido. Sair primeiro que os caminhões de lixo, às vezes madrugar junto com os lixeiros porque, se eles passarem antes levando tudo, a gente não faz o dia a dia”. Os trabalhadores não podem ficar esperando, nem ter horário de começar ou terminar. Tem que ser rápido.
Os períodos favoritos dos trabalhadores que estão na parte mais baixa da “hierarquia” dos catadores de reciclagem são os da noite e da madrugada. Isso porque os bares e restaurantes são os melhores fornecedores de garrafas de plástico e latas de alumínio. Os materiais que mais lhe interessam. Como não conseguem carregar uma grande quantidade nos próprios braços e a pé, precisam dar preferência aos materiais que têm o valor de revenda mais alto.
Leandro anda nas ruas comerciais e residenciais do bairro revirando os containers ou latões de lixo. Normalmente cada bloco, residencial ou comercial, tem seu container. Ele esvazia os sacos grandes de lixo dentro dos próprios containers para vasculhar tudo e separar o que vai levar.
Enquanto está debruçado com metade do corpo dentro do container vai jogando para o lado de fora o material que vai utilizar. Depois que verificou tudo, ele usa os próprios sacos que abriu para carregar o material que separou e que vai levar consigo. Para conseguir carregar tanto peso em duas mãos enquanto caminha ele faz amarrações entre os sacos e nos braços. As áreas de comércio geram mais fruto no trabalho. “Como tem muito bagunceiro na rua, muitas lixeiras são trancadas. Então fica mais difícil trabalhar onde o pessoal mora”.
Leandro não tem barraco e não costuma dormir no mesmo lugar. “Na rua não tem como morar em lugar fixo. Hoje eu durmo aqui embaixo desse bloco que não tem câmera de segurança. Amanhã posso dormir naquele de lá. Eu não tenho como pagar aluguel e não faço barraca de lona pq tenho medo de alguém botar fogo enquanto estou dormindo. Já vi muita cena ruim”.
Duas ou três vezes por dia, ele leva o material que recolhe para a “fazendinha”. Um acampamento com atualmente 15 barracos de lona e madeira na avenida L3, em um descampado próximo à Universidade Nacional de Brasília (UnB). É lá que ele vende o material para um primeiro atravessador, que além de juntar esse material que compra de catadores de pequenas quantidades como Leandro, também recolhe material de reciclagem na rua com carroças, cavalos, carros e bicicletas.
A cada 10 ou 15 dias, um segundo atravessador vai ao acampamento, com um caminhão, e compra essas grandes sacolas de material reciclável acumulado e os leva para serem vendidos em alguma cooperativa de reciclagem nas áreas do entorno do Distrito Federal. O preço pago no quilo de alumínio na cooperativa é em torno de R$ 5. Leandro recebe em torno de R$ 2 por quilo.
Cada estágio desse caminho que o material faz até chegar ao comprador final fica com uma parte do dinheiro que cada quilo de reciclagem vale. Naturalmente, pessoas na base da pirâmide, como o Demônio, são as que recebem menos. “Para não ter que estar andando longe e como a gente não tem como se locomover, a gente vende pra quem pode né”.
“Já trabalhei com muita coisa, já fiz de tudo. Eu queria ser comerciante, ter meu próprio negócio, mas a gente faz o que a gente pode. Hoje eu só posso trabalhar com reciclagem. É muito difícil alguém pegar um morador de rua para trabalhar. A maioria é ex-presidiário, tem problemas. Então eles ficam com receio”.
O clima do papo melhorou entre nós quando ele falou sobre o que queria fazer no futuro. Foi rápido. Voltou a ficar pesado, desacreditado do próprio nome e sem esperança quando perguntei sobre seu passado. “Já fui preso quando era mais novo. Daqui eu não sou, mas me acostumei aqui. Não tenho família aqui e não sinto saudades porque não conheci direito. Já fui confundido. Tô perdido nesse mundo desde novo”. Ele também não quis falar de onde veio e onde nasceu.
O olhar da experiência, aos 22
Também na Asa Norte, Juan Lucas da Silva convive com suas pressas e os seus demônios. “Na rua, a pessoa tem que saber viver porque a rua não é brincadeira não. Ainda mais de noite quando a gente tá dormindo. Você apaga e não vê mais nada. Não tem como saber quem veio e quem foi. O cara não vai acordar a gente pra matar a gente”.
Juan fez 22 anos em 6 de dezembro. “Já tenho muita experiência na rua. Ainda tenho muita coisa a perder. Não quero estar preso não. A gente dá conselhos pros meninos novos aí, mas eles acham que estão certos.”
Um dia, enquanto eu conversava com Leandro, tentando marcar uma entrevista, Juan se aproximou para ajudar o “amigo” a revirar umas caixas com lixo na entrada lateral de um bar. Tinha bastante gente em volta e música alta. Acho que ele ficou curioso sobre o que eu conversava com Leandro e se aproximou para escutar. Imediatamente aceitou conversar comigo.
Com pouca idade, disposto a dividir suas experiências e me ensinar um pouco sobre as ruas da Asa Norte na madrugada da reciclagem. É o turno de trabalho. “Meu nome verdadeiro é Juan Lucas Farias da Silva. Tem uns que chamam de Luan e até de Tauan. Mas é Juan”.
Ele acha que não compensa mais vender o material da reciclagem na “Fazendinha”, mas continua a fazer o mesmo. Juan reclama que não pagam bem e cada vez está pior o valor pago pelos quilos de material reciclável.
“Eu viajava com meu pai quando era criança. Eu carrego um sonho até hoje que, se for pra eu ter um emprego, eu quero ser caminhoneiro”. Juan diz que o pai seguiu a profissão. “A gente viajava pra Bahia, Piauí, Maranhão (…) Ele carregava secos e molhados. Óleo, arroz, feijão, balinha, chiclete e tudo que vende no mercado. Um dia ainda vou ser caminhoneiro. Eu já sei dirigir, quero um Mercedes 1620. É o melhor caminhão para mim”.
Juan também habita a base da pirâmide dos trabalhadores da reciclagem. Também não dorme em um local fixo. Também tem medo de morrer dormindo, apesar do sonho para o futuro.
Cabelo sujo e olhos claros. O corpo magro, mas ainda forte da juventude. O boné é vermelho. Os dentes já são bastante maltratados pelo uso abusivo do crack. A pele morena, as roupas querendo secar da chuva que tomou durante o dia e o olhar procurando os conhecidos que circulam escondidos na rua cheia de bares, traficantes, jovens clientes (dos traficantes) endinheirados, mostram a vida que pulsa dentro dele.
Ele vive a cada momento. Parece saber que, se quiser, de verdade, pode tudo. “Tem gente que deixa a droga usar a pessoa. Eu não, eu que uso ela. Se ela usar a gente, a gente não consegue nada. Fica só pensando nela, querendo ela”.
Quando o encontro durante o dia, fora do frio da noite, no calor do sol, a expressão é diferente. Descansando, exausto da noite, deitado em entradas de lojas de hortifruti ou farmácias. Com o rosto suado encostado no chão, no mesmo calor, entre passos e olhares enojados de pessoas fazendo compras e vivendo seus dias.
“Eu queria ter ido no velório do meu tio lá esses dias atrás. Mas não tive dinheiro. Nas cachaçadas deles, um cara quebrou uma garrafa e enfiou no pescoço dele. Jogaram ele dentro do rio e só acharam sete dias depois.”
Juan trabalha na coleta de material para reciclagem nas ruas desde que veio embora de Alvorada do Norte, no estado de Goiás, para Brasília há cinco anos. “Fui embora de casa com 17 anos. Tive umas tretas lá na cidade e preferi sair. Se eu ficasse, ia fazer besteira, e prefiro estar livre”.
“Todo dia eu ligo pro meu pai. Esses dias trombei ele ali no mercado. Tava trazendo verdura de caminhão de alguma cidade. Eu estava passando, nem tinha visto. Ele gritou e eu fui lá falar com ele”. Juan não se esconde em medo ou desesperança. Também não se esconde quando usa sua droga de escolha. Nega bebida quando lhe oferecem. Não bebe álcool. O aparente tempo e escolhas que tem pela frente, fazem parecer que o trabalho de catador é de fato temporário.
Por João Canizares
Supervisão de Luiz Cláudio Ferreira