O guerreiro da Guariroba

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Um jovem improvável que, após descobrir a força que carrega, torna-se um guerreiro responsável por mudar a história do grupo que representa, lutando por si e pelos seus. O início fantasioso refere-se à sinopse do conto preferido de Gabriel Torquato, mas muito se assemelha com a vida do nosso personagem, um militante da vida real.

Quando sai de casa naquela tarde de domingo e cruzei 40 km para conhecê-lo, não imaginava o tipo de história que encontraria. Gabriel Torquato é morador do reino da Guariroba, na Ceilândia. Com 20 anos de idade e formação técnica em design gráfico, apresenta TEA (Transtorno do Espectro Autista) de grau leve. A mãe do jovem, Andreia Torquato, de 44 anos, conta que o diagnóstico veio ainda na infância, mas o processo não foi tão simples.

A família precisou comprar uma câmera semi profissional e filmar o dia a dia do garoto escondido para provar aos profissionais da saúde que o menino demonstrava comportamentos indicativos de TEA, apesar de não andar na ponta dos pés e nem apresentar “aparência” de autista, ações comuns de crianças com o espectro. “Eu juntei todas as gravações no meu notebook, coloquei debaixo do braço e fui atrás do médico. Ele sofreu muito e a gente também”, relembra Andreia

No computador da família, a pasta com o nome “Gabriel estereotipias” guarda as imagens, onde ele aparece, com várias idades, fazendo o mesmo movimento de balanço. É comum que pessoas com TEA tenham reações sensoriais repetitivas conhecidas como STIMS (?). No caso dele, os movimentos tornaram-se mais fortes com o passar do tempo.

Os desafios foram todos documentados. O acervo virou material de estudo de caso para a mãe psicopedagoga. No meio de laudos e exames, faz questão de mostrar fotos reveladas de Gabriel com a família. Uma fotografia do dia das mães, quando o menino tinha 8 anos, a deixou emocionada.

 

 

 

Foto: Arquivo Pessoal

Leia mais sobre autismo.

“Neste dia aqui as mães ficaram muito incomodadas com a presença do Gabriel porque ele começou a cantar desesperadamente para mim com as estereotipias muito avançadas, então todo mundo parou e ficou olhando para ele. As mães não sabiam qual era a mãe dele e aí começaram a falar ‘nossa coitada dessa mãe, olha aquela criança. Tem problema, coitada’ e era meu filho. Ele estava simplesmente tentando apresentar para mim uma canção. Olha só o tamanho da boquinha que ele abriu para cantar para mim”, aponta para outra foto do mesmo dia.

Com pais professores, Gabriel descobriu o seu diagnóstico de forma didática. “Eles prepararam um monte de vídeos, de gente explicando e aí no final eles estavam esperando que eu fosse dizer algo incrível. Eu virei e literalmente falei ‘agora entendi porque eu sou diferente’, só! Era só ter falado de uma vez que eu teria a mesma reação”, brinca Gabriel.

Apesar do tom descontraído, ele confessa que saber o motivo de ser diferente dos amigos da escola, fez com que ele sentisse liberdade de ser quem é. E é com essa mesma liberdade que Gabriel corre atrás dos seus sonhos.

Recentemente o jovem foi aprovado em um processo seletivo e irá trabalhar em um posto de saúde perto de casa. Além disso, é empreendedor. O processo de contratação para o novo emprego ainda está acontecendo e os documentos são muitos. O jovem conta que enviou currículo para vários lugares. “As coisas já estão difíceis para pessoas que não têm deficiência. Imagine para quem tem”, lamenta.

No primeiro processo seletivo que participou, não conseguiu a vaga. Engana-se quem acha que Gabriel foi reprovado na seleção. Dois dias antes do início do serviço, a família recebeu a ligação para buscar a documentação com a seguinte justificativa: “infelizmente, a vaga não existiu”.

Ele e um colega, que também apresenta o espectro, seriam auxiliares administrativos em um hospital. A frustração foi clara.“O que eu senti é uma certa falta de cuidado porque dá a esperança de rolar (o emprego) e depois cortar do nada”, relembra Gabriel.

Direitos

O direito de pessoas com espectro no mercado de trabalho são garantidos pela Lei de Cotas (Lei nº 8.213/91) que estabelece que empresas com cem ou mais empregados preencham uma parcela de seus cargos com pessoas com deficiência. A porcentagem depende do tamanho da empresa.

O Ministério Público do Trabalho (MPT) explica que as instituições costumam ter um processo burocrático para pessoas com deficiência que dificulta a captação de profissionais. “Aí ele vai mostrar para o juiz que há um ano anunciou e não aparece ninguém”, diz uma fonte do órgão.

Esta reportagem não apresenta dados oficiais sobre pessoas com autismo no mercado de trabalho no Brasil, já que os números sequer existem. Isso porque não há informações específicas sobre o espectro autista no censo. Ou seja, não se sabe a quantidade total de pessoas com esse transtorno no DF , muito menos se elas têm carteira assinada.

Os dados disponíveis referem-se à relação de crianças e adolescentes com espectro autista que estão no ambiente escolar, ou uma projeção baseada em pessoas com deficiência com grau de dificuldade para realização de algumas atividades.

Dificuldades

A vice-presidente do Movimento Orgulho Autista Brasil (MOAB), Viviane Guimarães, explica que quando um médico assina um diagnóstico de autismo para uma pessoa, não há nenhum tipo de cadastro, o que dificulta no acompanhamento do paciente e na coleta de dados.

Ela esclarece também que os graus de autismo influenciam muito na realização de atividades, inclusive no mercado de trabalho. Quanto mais severo o grau do espectro, maior a dependência na realização de atividades básicas do dia a dia como comer, se vestir ou escovar os dentes.

O grau leve de autismo permite maior independência, o que facilita na inclusão no mercado de trabalho. “As matérias de exata são mais fáceis de compreender para eles. A maioria deles tem dificuldade com a linguagem mais rebuscada, a linguagem de duplo sentido”, explica Guimarães.

Gabriel definitivamente foge do padrão. Depois da frustração no primeiro processo seletivo em que participou, a família decidiu juntar esforços para montar um espaço de trabalho para o jovem empreendedor. No fundo da casa, há um quarto com cerca de 15m², com duas máquinas de sublimação. Nelas ele estampa camisetas e canecas com os desenhos que produz com design gráfico.

O Refúgio

O pequeno quarto é o mesmo espaço que abriga o maior sonho de Gabriel. O livro “Os contos da Rosa Azul” que está escrevendo é o principal motivo da nossa conversa e assunto preferido do escritor. Quando começamos a falar, todas as outras coisas parecem desaparecer para ele. O assunto vem à tona diversas vezes durante a entrevista, independente de qual seja a pergunta.

O texto ficcional é uma releitura do conto japonês Minamoto no Yoshitsume. Na história, o jovem protagonista descobre que o seu clã de origem está derrotado, fazendo com que ele vá à luta pelos seus. “Um jovem monge que não tinha nada de brilhante se transformou em um dos maiores generais do japão”, explica Gabriel.

Empolgado, ele tira do armário anotações e material de estudo. Textos com o temas como “O que é um personagem”, “Ideia dramática”, “Estrutura dos três atos”, “Jornada do herói”. No computador, uma pasta separada por personagem descreve cada um deles em detalhes. Nome, idade, perfil, características físicas. “Nossa, eu já fiz muita coisa”, reconhece.

A ideia de escrever o livro surgiu em um momento muito difícil da vida do jovem. “Eu acho que cheguei até a ter uma depressão nessa época, foi terrível eu não queria sair da cama. Eu sentia que não ia conseguir fazer nada por mais que eu quisesse e por algum motivo eu acordei um dia e me deu esse estalo de escrever um livro. A partir disso, eu me foquei tanto nessa ideia que eu senti que isso salvou a minha vida basicamente. Então eu estou grato por isso, entende? Por isso que eu tenho essa vontade de terminar. Eu não vou parar de fazer porque eu sou grato pelo que aconteceu.”

O objetivo é fazer algo autoral, sem pensar muito na fama ou no dinheiro. “O que eu quero é conseguir a proeza de fazer algo autoral, algo bem feito. Eu senti que eu consegui escrever uma coisa muito boa. Eu, que nunca estudei faculdade sobre escrita e nada disso, usando só esforço, consegui criar um material muito bom. Deixar uma marca no mundo”, projeta.

Do luto à luta

O apoio e suporte que recebe da família, é passado para outras pessoas com o espectro. Gabriel e a mãe trabalham no Movimento Orgulho Autista Brasil (MOAB). Andreia é coordenadora da região da Ceilândia. Lá ela organiza o Desabafo Autista, momento em que os familiares fazem uma espécie de roda de conversa para expor conquistas e desafios. Ela explica que toda família passa por um momento de luto ao receber o diagnóstico, mas é importante ressignificar. “Fiz do meu luto, luta!”, diz.

Durante a conversa, ela revela um desejo pessoal: mudar-se para Portugal com a família. A filha do meio está realizando exames para revelar se também possui o espectro. Ela acredita que, em outro país, eles podem ter a estrutura que não tem no Brasil. “Aqui no Brasil, não tem estratégia nenhuma. Eu vou morrer, o que vai ser do meu filho?”, questiona.

Em 2019, foi sancionada a Lei 13.861, de 2019 que obriga a inclusão de perguntas sobre espectro autistas no Censo Demográfico que estava previsto para 2020. Em Brasília, também foi sancionada a Lei 6.809 que institui a carteira de identificação de pessoas com deficiência. Porém, as carteirinhas ainda não foram disponibilizadas.

Na despedida, um trato entre mim e o entrevistado. Combinamos que, assim que esta matéria virar livro, ele receberá uma cópia, assim como eu, quando ele terminar o seu. Enquanto os resultados não vêm, a luta continua. Gabriel é procurado por várias famílias para conversar com outros pacientes. Ele é conhecido por falar bem, e usa a facilidade em prol da turma “De fato, minha fala não é tão afetada assim. Eu vou acabar usando essa fala para ajudar pessoas que não podem falar, que falam e que as pessoas não entendem. É o meu clã”.

Por Brenna Costa

Supervisão de Luiz Cláudio Ferreira

 

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