Não se sabe ao certo a origem da crença, mas a sexta-feira 13, de qualquer mês, é popularmente considerada um dia de azar. E assim foi para Marlla, naquela sexta, dia 13 de janeiro de 2023. “Macaca”. “Suja”. “Preta nojenta”. E daí para pior, como ela mesma me contou.

Nem o dia, chuvoso e pesado desde que tinha acordado, e as dificuldades e os problemas enfrentados no trabalho, haviam preparado a conselheira tutelar Marlla Angélica dos Santos, de 40 anos recém completados, para escutar as ofensas e xingamentos, contra a cor da sua pele, que viriam de Bruno César dos Santos, de 45 anos, e de Gustavo Vitório da Silva, de 25.
Violência
Ela estava chegando em casa, depois de um dia maçante, escutando música, que toca nos intervalos da rádio de notícias, como de costume. Chovia, mas Marlla conseguiu ver, subindo a rua, dois homens “muito estranhos”, como se fossem uma visão. Um deles não tinha barba, estava sem camisa e descalço. Loiro e de olhos claros, ele também não tinha tatuagens e media cerca de 1,72m.
Esse era Gustavo, como ela iria tomar conhecimento depois. Bruno, por sua vez, tinha barba e usava camisa azul, calça marrom e tênis. Os dois estavam claramente bêbados e andando no meio da pista.
Uma vez dito, por Fernando Pessoa, cada um cumpre o destino que lhe cumpre. “Como as pedras na orla dos canteiros, o fado nos dispõe, e ali ficamos”.
Quando Marlla virou o carro, para entrar no portão de casa, demorou um pouco para entender o que estava acontecendo. O som ligado conseguiu abafar os primeiros gritos que vinham do lado de fora do veículo. Dias depois, ela entendeu que os homens achavam que ela queria atropelá-los.
– Vagabunda! Você não tá me vendo não?! – berrou um deles
– Você tá falando comigo? – perguntou Marlla
– Com você mesmo, sua preta nojenta!
Ela nunca foi de se calar e abaixar a cabeça para ninguém e dessa vez não seria diferente.
Pedro Isaac, seu filho mais velho, estava no quarto, dentro de casa, quando escutou a briga que vinha da frente do portão. A rua estava movimentada, mas ninguém ajudou. Ninguém chamou a polícia. “O povo só olhava”, lembrou a conselheira. Restou ao garoto, de 17 anos, interceder pela mãe.
A discussão entre o menino e os criminosos acabou não durando muito. Gustavo, um dos agressores, acertou um soco no rosto de Pedro. “Deixa eu aparecer aqui com a minha arma”, ameaçou.
“O homem mais velho agarrou meu cabelo, pelas minhas costas, e começou a me puxar para o chão. Eu vi ele levantando a mão para me bater e eu só pensava que se ele me acertasse eu ia desmaiar. Com a graça de Deus veio um homem, eu não sei de onde, e começou a brigar com esse cara”, relembrou Marlla.

Ainda em choque, ela conseguiu ligar para a polícia, mesmo que tremendo. Quando questionada sobre o que tinha acontecido, ela não conseguia explicar. Nenhum som saía de sua boca.
A briga podia até ter chegado ao fim, mas esse seria apenas o começo.
Em certo tom de deboche, a polícia encontrou os homens há 100 metros da casa de Marlla, em um bar. Eles estavam tomando um litrão e rindo com os garçons.
Indiferença
Todos foram encaminhados até a 21ª Delegacia de Polícia, localizada em Taguatinga Sul. No caminho Bruno e Gustavo nada disseram. “No meu entendimento, eles iriam assinar algum termo circunstancial e iam ser liberados. Não ia dar em nada, até porque sempre foi assim. Mas eu queria dar uma canseira neles. Eles olhavam para mim sabendo que não ia dar em nada.”
O que ninguém sabia, inclusive Marlla, era que, apenas um dia antes, na quinta-feira 12 de janeiro, a Lei 14.532, que equipara crimes de injúria racial à racismo, foi sancionada e aumentou a pena desse tipo de crime. Antes aqueles que cometessem injúria racial poderiam receber a punição de um a três anos de reclusão. Agora, o que passa a valer, é a punição de dois a cinco anos de reclusão.
Dor em série
A Secretaria de Segurança do DF explica que os casos de racismo são aqueles direcionados a um determinado grupo, enquanto os de injúria racial são aqueles direcionados a uma pessoa com a utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem.
Em 2022, foram registrados 618 casos de injúria racial na capital do país. Isso significa que, em um mês, foram denunciados cerca de 51 casos e que, pelo menos, um caso foi registrado, por dia, durante todo o ano.
Apenas entre 1º de janeiro e o dia 20 de março de 2023, a polícia civil do DF registrou 112 denúncias de injúria racial. Marlla foi a primeira pessoa do país a denunciar esse tipo de crime com a nova lei em vigor.
“Nunca vi branco ter tanto problema psiquiátrico.” De acordo com ela, depois que foi identificada a nova lei, os homens alegaram estar em surto psicótico. “Me xingaram de macaco, disso e daquilo, por que tava em surto? Quando a delegada me falou que agora eles iam ser tipificados, eu desabei. Eu não conseguia acreditar”.
“Odeio o termo guerreira”
Para Marlla, existe uma expectativa geral em relação à mulher preta. “A mulher preta é a mulher que tem que ser forte. Desde que eu me entendo por gente eu tenho que ser forte. Eu odeio o termo guerreira, porque me força a estar sempre em uma luta. Eu estou cansada de ter que ser fortaleza. Eu não quero ser guerreira. Eu também preciso ser cuidada, ser amada, eu preciso ser acalentada. E mesmo assim eu me cobro ser e estar forte, de me fazer ser uma fortaleza, para mim, para os meus filhos, para todo mundo”.
Para ela, a mulher preta está sempre em alerta, sempre disposta a entrar em uma briga, porque, se abaixar a cabeça, as pessoas pisam. “Se a gente abaixa a cabeça, a impressão que dá é que vão humilhar a gente. Ficamos em alerta esperando uma atitude negativa. E o pior é que ela sempre existe.” disse com lágrimas em seus olhos.
Na alma
“O racismo dói n’ alma e destrói a gente por dentro. A sensação que eu tenho é que, toda vez que a gente tá chegando na linha de chegada, a sociedade vai lá e muda, homens, mulheres, brancos, os próprios pretos… eles estão sempre exigindo algo da gente.”
Marlla procurou a mídia, com o intuito de dar notoriedade para o caso e resguardar a sua família, já que os homens sabiam onde ela morava e em poucos dias a história do crime de injúria racial estava em todos os jornais da cidade. Nem isso foi o suficiente para que Marlla fosse acolhida. “Só duas pessoas do meu trabalho vieram falar comigo. Me falaram que não sabiam o que dizer porque eu sou uma mulher forte”, relembrou a conselheira.
Diego e Gustavo foram presos em flagrante por ameaça e injúria racial, ficaram presos por dois dias e foram liberados pela juíza de direito substituta Dra. Bianca Ferreira de Pieratti, da 6ª Vara da Fazenda Publica do DF. Lhes foi concedido liberdade provisória, desde que não saíssem do DF pelo período de 30 dias, comparecessem a todos os atos processuais, não mudassem de endereço sem notificar a Vara, assim como não se aproximassem com menos de 300 metros das vítimas, como explicou Matheus Mayer Milanez, o advogado de Marlla. Pelo menos o bar a 100 metros da casa das vítimas os criminosos não irão frequentar mais.
Para Marlla, o único caminho para um racista é a prisão. “Não existe solução. Tá enraizado na nossa sociedade. Não existe isso de falta de conhecimento. A internet tá aí, tá tudo aí. Nós não temos obrigação nenhuma de ensinar nada para ninguém. Se eu tiver que parar a minha vida para ensinar as pessoas sobre racismo, racismo estrutural, racismo recreativo… eu não vou viver. Eu não tenho essa responsabilidade, essa responsabilidade é de cada um, é do Estado.”
Por Madu Toledo
Fotos: Acervo pessoal da entrevistada
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira