Perfil: o caminho de um aluno surdo até a docência

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Desde os três anos de idade, Esdras Coutinho lida com o silêncio. A surdez foi uma condição presente na vida dele, causada pela meningite na infância. Inicialmente, o esporte foi o que guiou a vida de Esdras.

Durante a infância, para recuperar o movimento das pernas, outra consequência da meningite, ele fez tratamento de fisioterapia e praticou natação. Foi na luta para se movimentar que ele se apaixonou pelo esporte. 

“O esporte me ajudou muito. Eu comecei com a natação. Ela foi a que me colocou lá em cima. Na época eu fiquei sem os movimentos das pernas, tive que fazer muita fisioterapia e natação para poder voltar a andar”, explicou Esdras ao levantar as mãos, como se quisesse me mostrar sua altura.

Foi uma tentativa de me explicar melhor o que estava sentindo. Esdras tem 1,97m de altura e um corpo atlético, resultado de anos de esporte.

Outras aptidões

Após anos de acompanhamento na fisioterapia, ele se recuperou e descobriu uma aptidão para outros esportes.

As primeiras portas para um futuro como educador começaram com um apoio. No ensino médio, por conta da habilidade física, ele recebeu uma bolsa como aluno de um colégio particular, em 2008, local onde atualmente ele trabalha como professor de educação física. 

A bolsa que ele recebeu foi como jogador de futsal na escola.

“Eles abriram a mão e me acolheram (os diretores). Foi a primeira vez que eu me senti acolhido pela escola de todas as escolas que eu já estudei, eu sofri muito porque algumas escolas não queriam me aceitar como aluno”, explica com um sorriso no rosto.

Esdras demonstra um carinho com o olhar ao falar do antigo coordenador pedagógico da escola e amigo, Carlos Henrique Martinez, conhecido como Kiko. 

O apoio inicial de Kiko e os anos de companheirismo transformaram a vida de Esdras.

“Trato ele como se fosse um pai. Ele e o Beto me ajudaram muito. Teve momentos que eu não queria ir pra escola e eles iam lá na minha casa pra me buscar e me levar pra escola. Eles pegavam no meu pé demais. Tenho saudades do Beto demais. Ele faleceu de covid em 2020. Ele deixou um legado para todo mundo”. Os olhos ficam marejados enquanto recorda. Roberto Cavalcante, conhecido como Beto ou Betão, 44 anos, faleceu de covid-19 em 2020 durante a pandemia.

Hoje, o professor de educação física relembra sua fase como aluno. “O meu primeiro ano na escola foi de muita adaptação, depois os próximos anos foram mais tranquilos. No começo, eu tinha que copiar dos outros alunos porque eu não escutava os professores. Depois eles começaram a dar a aula virados para mim para eu poder fazer leitura labial. Eles não podiam falar de costas”. 

Língua inclusiva

Segundo o Censo Escolar de 2021, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), Assim como Esdras, outros 34,044 mil alunos com deficiência, em 2010, foram incluídos em classes comuns.

Segundo a professora Rachel Ferro, a libras é a melhor opção pedagógica para os alunos surdos.

“ A inclusão eu acho que ela é muito bonita no papel. Para o aluno surdo, é melhor como método ele usar a libras como a primeira língua.  Porque se não o aluno vai só copiar o que o professor está passando sem entender o que ele está escrevendo e também ele não vai se sentir 100% incluído”, comenta.

No Brasil, há apenas 64 escolas bilíngues voltadas para o ensino de surdos no Brasil. No Distrito Federal, uma unidade de ensino localizada em Taguatinga é a única entre as 33 regiões administrativas.

O Governo do Distrito Federal (GDF) já anunciou que planeja inaugurar a segunda unidade na capital em 2023 no Plano Piloto.

“O ensino bilíngue precisa de mais suporte do governo, a escola de Taguatinga não tem a estrutura necessária para um ensino adequado dos alunos”, diz a professora. 

Segundo o portal da transparência do Distrito Federal, o GDF investiu, neste ano de 2023, até agora, R$ 8 milhões na escola bilíngue de libras em Taguatinga.

fotografia: Madu Toledo/ identificação nas portas da escola bilíngue de libras em Taguatinga

Vida universitária

Se durante a vida escolar foi difícil para Esdras, a vida universitária se mostrou particularmente mais complicada para ele.

Ele entrou no curso de educação física em uma faculdade privada após ganhar mais uma vez uma bolsa de estudos por sua habilidade como atleta. 

Até depois de se formar no ensino médio Kiko se fez presente na vida de Esdras. 

“Eu ganhei uma bolsa atleta e fui pra faculdade no curso de educação física. Algumas pessoas me conheciam lá. O coordenador do curso era amigo do Kiko. Ele conversou com o coordenador para ele me dar um suporte durante a faculdade, mas os professores lá eram muito diferentes (comparado com a escola)”.

Esdras faz um gesto com as mãos que dá a entender que os professores não tinham atenção com ele. Ele ficou quatros anos na faculdade e se formou em licenciatura e bacharelado em educação física. 

Durante o período universitário ele estagiava na escola em que havia se formado, como professor substituto e assistente. Logo após se formar, conseguiu a efetivação como professor fixo da escola. O apoio que ele recebeu lá no início da adolescência no começo do ensino médio mudou o rumo da vida profissional. 

Segundo dados do Ministério da Educação (MEC), em 2003, apenas 665 surdos frequentavam a universidade.

Em 2005, esse número aumentou para 2.428, entre instituições públicas e privadas. Segundo estudo feito pelo Instituto Locomotiva e a Semana da Acessibilidade Surda, em 2019, cerca de 7% dos surdos brasileiros têm ensino superior completo, 15% frequentaram a escola até o ensino médio, 46% até o fundamental, enquanto 32% não têm um grau de instrução.

O início da carreira como educador

Quando Esdras entrou como estagiário na escola, ele teve um outro ponto de vista dentro da sala de aula.

Antes, os professores o tentavam incluir nas aulas da forma que eles podiam. Agora ele teria que se esforçar para ser ouvido pelos alunos. Esdras é oralizado, mas por conta da surdez, ele tem menor intensidade na voz. 

“Quando eu tinha que substituir um professor que eu não conhecia a turma, eu tinha que pensar muito antes de falar, tinha que entrar pela porta da sala já me explicando e me apresentando. Eu tenho que explicar a forma que eu aluno tem que falar comigo, algumas pessoas ficam rindo por causa da minha voz, alguns respeitam. Mas depois eu me acostumei. Eu já me acostumei, isso foi a minha vida inteira”. 

Hoje, enquanto é entrevistado para esta reportagem, tem interrupções de colegas para abraçá-lo. A rejeição não tem mais espaço nesse lugar.

Ao construir uma relação com a turma, ele se sentia mais confortável para trabalhar e conversar com os alunos. “Eu pegava turmas do quinto ano. Dois anos depois, eles estavam no sétimo. Eles já me conheciam e eu já tocava as aulas normalmente”, complementa.

Mas a sua maior dificuldade eram as turmas em que ele entrava como substituto. Não ter essa relação com a turma o deixava inseguro para dar aula e passar as atividades. 

No ambiente escolar, Esdras se tornou a face da acessibilidade e o apoio para outros alunos dentro da escola.

Assim como ele recebeu ajuda durante o seu ensino, Esdras quer prestar esse apoio para outros alunos. 

“Alguns alunos eu apoio também, eu cuido do time de futsal agora. Então, eu preciso deles na minha equipe. Eu converso muito com eles”.

Foi a partir da luta e força de vontade que ele se apaixonou pelos esportes. Agora é pelo carinho e afeto que Esdras quer ensinar o valor do esporte para os alunos.

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Por Vinícius Milhomem

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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