Gabriele Gomes encara o espelho e ajusta o crachá com seu nome. Ao atravessar as portas da loja de jogos onde trabalha, ela sabe que, como mulher trans, terá que provar mais uma vez seu valor em um mercado de trabalho que, ainda, luta para acolher a diversidade em sua plenitude.
Aos 25 anos, Gabriele carrega consigo uma bagagem pesada de entrevistas frustradas. “Sempre fui descartada logo no início por ser trans. O julgamento era instantâneo”, revela, com um suspiro de cansaço. Ela lembra como, muitas vezes, foi preciso demonstrar serviço, e não identidade, para ser aceita em um ambiente de trabalho.
A primeira conquista
Para Gabriele, o primeiro emprego formal foi uma conquista “profundamente” significativa. Em um vídeo compartilhado no TikTok, Gabriele relembra o momento em que foi contratada pela primeira vez, ela fala sobre como, antes dessa oportunidade, todas as tentativas de ingresso no mercado de trabalho haviam falhado por conta de sua identidade de gênero.
Mas Gabriele não esconde as dificuldades enfrentadas após a revelação de sua identidade. “Depois de seis meses, tive que contar que era uma mulher trans”, diz. “O próprio usar o banheiro era um incômodo. Nunca era falado ou explícito para mim até porque as pessoas tinham um certo receio de falarem comigo”. Poucas eram as pessoas falavam com ela. ”Elas sabiam que muitas eram preconceituosas e tinham medo que eu pudesse fazer algo contra elas caso não mostrassem que elas eram de verdade”, reflete.
A invisibilidade
Ela relata como foi difícil para as pessoas ao seu redor aceitarem sua identidade, especialmente aquelas que não a conheciam de antes. “Todas as outras pessoas, eu diria que elas conseguiam me tratar com muito respeito, mas não conseguiam me aceitar”. Ela relata que era muito mais difícil porque eram pessoas que, segundo entende, não a viam ou conheciam como Gabriele. A atendente avalia que se “mascarava” para conseguir um emprego, renda e estabilidade,
Mas na loja em que trabalha atualmente, conquistou a efetivação, depois de um período como freelancer de apenas três dias de trabalho. Gabriele diz que garantiu a efetivação graças à excelência de seu desempenho.
“Mesmo assim, sinto que preciso trabalhar quatro vezes mais para ser reconhecida pelo meu trabalho e não pela minha identidade”, desabafa. Para ela, o fato de ter sido contratada naquele momento foi uma virada de chave, não só no campo profissional, mas também na construção de sua autoestima e na forma como se vê no mundo.
Estigma
Essa vivência está longe de ser uma exceção no Distrito Federal, onde pessoas trans ainda enfrentam obstáculos significativos para conseguir um emprego. O estigma e a discriminação no processo seletivo podem ser tão poderosos quanto a falta de oportunidades formais.
Estudante de psicologia, Caê Caetano Nascimento compartilha uma experiência semelhante: esconder-se para ser aceito
“Era como se, ao revelar quem eu realmente sou, estivesse abrindo a porta para o preconceito”, enfatiza. , Ele reflete sobre as dificuldades de se inserir em um mercado de trabalho que ainda prioriza normas e padrões rígidos. Caê lembra como, em algumas vagas, se viu forçado a “interpretar uma personagem”, fingindo ser alguém que não era.
Caê recorda que foi a única pessoa trans durante todo o curso de psicologia. Entre os vários desafios, estava o de lidar com os pais de pessoas trans. Ele testemunha que há pessoas que não estão abertas para aprender, para se desconstruir, para ser uma rede de apoio para essa pessoa que está em constante sofrimento.
A necessidade de esconder a identidade ou de se provar constantemente gera impactos profundos na saúde mental, afetando a autoestima e a qualidade de vida desses profissionais. “Foi muito difícil a escuta da transfobia, a escuta que eu era obrigada a fazer uma harmonização… Já perdi muito trabalho por isso. Eu tive que viver no personagem de quem eu não era para buscar um trabalho”, diz Caê
Capacitação
O empreendedor Salomão Ferreti, especialista em recursos humanos, acredita que a chave para a mudança está na reestruturação do processo seletivo. “O RH tem um papel fundamental em garantir que as competências e habilidades dos candidatos sejam o foco principal das avaliações. Precisamos trabalhar para construir processos seletivos inclusivos e acolhedores desde o início”, defende.
Salomão também ressalta a importância das parcerias e redes de apoio para fomentar a inclusão. “Trabalhamos em parceria com organizações que apoiam a inclusão de pessoas trans no mercado de trabalho, buscando sempre aprender e implementar melhorias em nossos processos”.
Ele acredita que, apesar dos avanços, ainda há um longo caminho a percorrer. “O nosso objetivo é garantir que todos os candidatos tenham uma experiência justa e equitativa””, conclui.
Caê também compartilha que os profissionais que querem atender pessoas LGBTs devem ter um mínimo de conhecimento sobre as questões específicas que essas pessoas enfrentam. “A discriminação, a estigmatização, os desafios relacionados à família, ao campo social (são exemplos disso)”
Suporte
Caê trabalha no Instituto Pride, uma clínica especializada em saúde LGBT, que conta com mais de 20 psicólogos LGBTs, com diversas abordagens e especializações preparadas para acolher e atender toda a comunidade, levando em consideração a diversidade e as especificidades de cada indivíduo.
O instituto oferece serviços de psicoterapia, avaliação psicológica, além de atendimentos com médicos psiquiatras parceiros. O trabalho desenvolvido pelo Instituto Pride é fundamental, pois proporciona um ambiente seguro e de acolhimento, ao mesmo tempo que educa a sociedade sobre a importância do respeito às identidades de gênero e ao cuidado integral da saúde da população LGBT.
Transemprego
Plataformas, como a TransEmpregos, demonstram o potencial da população trans, com 39,02% dos usuáries possuindo ensino superior completo, mestrado ou doutorado. Contudo, os números revelam que as oportunidades ainda estão concentradas em setores como serviços (6,8%), comércio (8,6%) e tecnologia da Informação (19,2%). Essa realidade destaca a necessidade urgente de ampliar a diversidade nas opções profissionais e de promover uma inclusão mais abrangente.
Gabriele também sugere uma ação concreta que é possibilitar cotas de emprego para pessoas trans. “Quando a pessoa sabe que está sendo procurada por empresas que valorizam sua identidade, isso gera confiança e diminui a ansiedade da não aceitação”, afirma.
Essa proposta, para Gabriele, não apenas ampliaria as oportunidades de emprego, mas também ajudaria a combater o estigma e o preconceito velado que ainda permeia o mercado de trabalho.
Por Natália Santos
Supervisão: Luiz Claudio Ferreira