Servidor público explica alívio e conquistas após se assumir gay há quase 30 anos

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Era 28 de junho de 1996, e Brasília se preparava para sua primeira parada do orgulho LGBTQIA+. A cidade, então com pouco mais de 40 anos, ainda carregava os traços duros de sua fundação militar, um projeto de nação erguido sobre o concreto e a moral conservadora.

Organizar aquela marcha era, naquele contexto, um ato de insubordinação política e existencial. E Enilson estava entre os organizadores da festa.

Uma repórter da Rede Globo se aproximou dele naquele dia: você é gay?. E de frente para a tela decidiu algo que mudaria sua vida complementamente. Não se esconderia mais: “a mulher era muito competente, de ver que eu estava querendo aquilo.”, comentou.

Enilson Ferreira Bastos, 62 anos, nasceu em Goiânia, mudou-se para Brasília com 12 anos de idade. Cursado em técnico de áudio da TV Câmara, estava acostumado a se mover nos bastidores, a ajustar microfones para que os outros falassem. Era sua vez de ser ouvido. 

Família soube pela TV

Diante das câmeras do DFTV, ele se assumiu para todo o Brasil. Inclusive para a sua família, que não sabia de nada até o momento. E ele disse com uma serenidade de quem cansou de mentir para sobreviver.

Ele viveu o momento de seu grande gesto não em segredo, mas diante das câmeras, num trecho da reportagem que acabou revelando mais do que o planejado. Foi um acaso, ou como ele mesmo diz, “coisa de filme”, que deu início ao processo público de sua aceitação.

O rapaz que trabalhava com ele chegou, ainda surpreso, e disse: “Seus pais estão assistindo o DFTV.” E ali estava ele, estampado na televisão, inteiro. Não havia mais o que esconder.

Nascido numa família evangélica e criado para negar o que sentia, ele se reconheceu gay aos 14 anos. Aos 21, já tinha certeza. Mas demoraria mais 18 anos para reunir forças para contar ao mundo.

Trabalhar em ambientes majoritariamente masculinos, como os bastidores da política e da televisão, também exigia performance e cautela. Mas o medo, aos poucos, deu lugar ao desejo de ser inteiro.

Enilson havia acabado de iniciar carreira na Câmara dos Deputados. Voltou ao trabalho na segunda-feira sentindo-se leve, como se um peso antigo tivesse, enfim, se desfeito.

“O sol continuou passando e morrendo”, diz ele, com uma calma que só os que já enfrentaram tempestades conhecem. E, embora os colegas tenham reagido com surpresa – um deles até confessou não saber o que fazer ao encontrá-lo – ele percebeu algo fundamental: o mundo seguiu girando. E ele, mais inteiro, passou a habitar esse mundo com mais presença.

Era a primeira vez que um funcionário da Câmara dos Deputados se assumia gay na televisão. A repercussão foi enorme.

“Era a Rede Globo e eu era o objeto daquela reportagem, fui o assunto de todos os meus colegas e para mim aquilo foi extremamente positivo em tudo, em literalmente andar de cabeça erguida e literalmente dizer para todo mundo: escuta, eu sou assim, quer você me aceite ou não, eu sou essa pessoa. Isso é parte de mim, não é você com seu ódio, com seu preconceito que vai tirar isso de mim, eu sou assim. E a partir de hoje isso está claro, está na minha cara assim, estampada para todo mundo”, admite.

Conquistas

Apesar das dores que carrega, Enilson fala da vida com ternura. Sua risada é alta, o olhar é atento e o afeto transborda. Ele fala com paixão da sua profissão, da alegria de poder casar legalmente com seu companheiro, da importância de se aceitar e, sobretudo, de inspirar os outros a fazerem o mesmo.

“É muito legal quando alguém quer falar da gente. E eu digo gente, comunidade e de como lá atrás eu já comecei a lutar pela existência, pela visibilidade. Isso, de alguma forma, se puder tocar na cabeça e no coração daquele garotinho que está lá não sei aonde e sem saber o que fazer, ó, vai melhorar.”

A vida de Enilson é feita de sons e memórias, de tecnologias que já passaram e de afetos que permanecem. Ganhou o apelido de “Tio Enilson” por um costume trazido do Rio de Janeiro: chamava os outros de tio, e o apelido acabou pegando. 

E se tem uma história que ele sempre fez questão de contar é a sua, sem cortes. “É impossível eu falar da minha vida sem falar da minha sexualidade”, afirma. A sexualidade, para ele, não é um detalhe: é um eixo. Não algo a ser disfarçado, mas algo que atravessa, explica, ilumina suas escolhas, seus silêncios e suas alegrias. “A partir do momento que eu descobri, eu não tinha mais o que esconder.”, confessa.

Enilson é dessas pessoas que não apenas vivem, mas pensam o viver. Que transformam a experiência em discurso, e o discurso em ponte. Sua trajetória é atravessada por lutas, mas também por uma alegria serena de quem aprendeu a ser quem é, mesmo que isso tenha levado tempo. 

Por Sophia Santos 

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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