Trabalhadora rural transforma a dor da violência contra a mulher em poesia

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A trabalhadora rural Kennya Silva, de 45 anos, utiliza a poesia para denunciar e combater preconceitos enraizados através de suas palavras intensas. Dentre as temáticas, estão a vida do povo rural e a violência contra mulher. Ela usa seus versos para expressar não só a dor, mas a importância da mulher não se calar quando for violentada.

Para ela, o importante é não silenciar para que tudo isso possa ser um dia desconstruído. Nesse sentido, ela influenciou uma colega sua a relatar tudo o que havia sofrido através de uma violência psicológica, em uma poesia.

Ela não só escreveu, como também ganhou um prêmio local de poesia. Kennya compartilha um trecho da poesia da amiga, que saiu de São Paulo para Xinguara.


Confira vídeo

Kennya citando a poesia de sua colega, vinda do Sudeste, em entrevista à Agência Ceub


“Infelizmente as taxas de violência e feminicídio têm crescido no país e aqui [em Xinguara PA] não é diferente. E quando a gente vive em uma cidade pequena e com bastante área rural, essa violência se torna ainda maior porque muitas vezes ela é mascarada e não chega a ser apresentada para a justiça, para que seja feita a própria justiça e o agressor seja punido”, relata ela, que é graduada em pedagogia, letras e filosofia.

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A cidade em que vive tem população média de 50 mil habitantes, sendo a maioria de áreas rurais. Segundo Kennya, nesse espaço é mais comum que as violências não sejam denunciadas ou vistas porque, além de as casas serem muito distante umas das outras, as mulheres que ali vivem não conseguem entender o que é realmente uma situação de violência. “A gente tem casos de violência não só física, mas psicológica, moral e até financeira”, conta a poetisa.

Ela considera que a do tipo financeira acontece no meio urbano, mas é muito mais comum no rural. Kennya diz que há casos em que o trabalho é feito pelo casal, mas quem fica com o dinheiro é o homem. Quando a mulher precisa, ela deve justificar para que o marido avalie se é digna ou não de recebê-lo.

A violência física é a mais fácil de ser identificada e que consegue maior alcance de denúncias. Kennya traz um relato de uma moça que foi fisicamente agredida em recuperação de uma cirurgia plástica. Foi mantida em cárcere por três dias até conseguir sair, mesmo muito machucada. “O agressor não foi punido porque ele apresentou advogados. Ela foi praticamente culpabilizada pela agressão que sofreu porque foi considerado que ela não tinha feito o dever de casa”, diz.

Já a moral vem mais disfarçada. A trabalhadora rural conta um caso em que um radialista violentou uma mulher ao vivo: “durante uma enquete sobre violência doméstica uma senhora relatou que sofreu por muito tempo, inclusive quando ela estava grávida de seis meses, até quase perder o bebê. E o locutor perguntou: ‘o que você fez para ele te bater’”? Ela conclui refletindo o quanto é absurda essa pergunta.

“Muitas vezes essa violência está disfarçada dentro das conversas, das brincadeiras, e das piadas. As pessoas vão fortalecendo e disfarçando isso por meio de piadinhas de mau gosto”.

Kennya quando fez parte do calendário da Primavera das Marias ao falar sobre a mulher da zona rural


Em outro caso, Kennya ouviu uma figura masculina dizer que para fazer as pazes com uma mulher quando ela não quiser se comunicar, basta apertar todos os potes da casa, até que ela precise do conteúdo para então chamá-lo para abrir. Essa situação despertou enorme indignação na poetisa, que colocou isso em poesia:

Maria mulher

Maria que é capaz de abrir pote; que é capaz de carregar o pote, de consumir seu próprio pote.

Maria que carrega no corpo o corpo da humanidade; que carrega em seu peito o leite que dá vida a outras vidas. Maria que nem sempre por prazer, proporciona prazer, para ver feliz quem ela ama.

Maria que por amor se entrega, sonha e luta. Maria que tantas vezes não dorme não come não sorri, mas espera… Maria que produz e gera economia, que tece os fios de sua própria história. Maria que chora; que não sabe por onde começar, mas recomeça!

Maria que não precisa ser Maria homem, Maria João ou Maria José; que escolhe um homem por amor e não por dependência, Maria guerreira, Maria forte, Maria capaz… À todas nós, Marias mulher, delicadas, vaidosas e sensíveis. À todas nós que somos apenas e tão somente Marias, por quê ser Maria por si só já é o bastante.

Viva as Marias!



“Eu tenho feito da minha poesia o meu lugar de fala para não deixar que essa violência seja silenciadora. A gente como mulher, todos os dias temos que ser acima do padrão que nos é imposto. Todos os dias a gente é desafiada a manter um padrão de excelência que nos é cobrado socialmente”.

Kennya diz que a poesia é uma maneira mais leve de falar sobre violência e ela incentiva que as mulheres falem, mesmo que não seja uma denúncia formal.


Kennya pretende colocar suas poesias em livros que possam vir ao público para surtir o efeito que mais deseja, segundo ela: “desconstruir valores e padrões absurdos que são impostos.”

Ela já foi chamada de “mulher macho” por levantar cedo para tirar leite da vaca. Mas, com sua força feminina ela soube responder bem à situação: “Não, eu sou mulher mulher! Eu faço tudo isso porque eu sou mulher!”

Por Milena Dias
Fotos: Arquivo pessoal

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