O professor de arquitetura e urbanismo da Universidade de Brasília, Frederico Flósculo, de 65 anos, afirma que Brasília não possui o planejamento adequado para as cidades do entorno nem para o crescimento do Distrito Federal.
“A centralização no Plano Piloto está intimamente ligada ao pensamento de que a periferia não merece qualidade de vida nem investimento. É o pensamento de ‘Casa-Grande & Senzala”’, diz o professor.
Do sociólogo Gilberto Freyre, “Casa-Grande & Senzala” reflete como a separação social entre o escravo e o escravagista no Brasil colonial está relacionada em como a sociedade brasileira se estruturou, com uma separação social e física entre as diferentes classes sociais.
Sobre quatro rodas
Frederico Flósculo explica que Brasília foi planejada para ser revolucionária no rodoviarismo. “Na década de 1960, Brasília foi um exemplo de modernização para o mundo. JK não tinha a menor dúvida que o futuro da capital estava sobre rodas”, diz.
“Mas isso acabou tornando-se uma armadilha para a infraestrutura e para a população menos de 30 anos depois”, continua Frederico. “Brasília é uma cidade feita para classe média alta, feita para quem tem carro.”
A concentração de escolas, hospitais, áreas de lazer e oportunidades de emprego no Plano Piloto obriga as populações das Regiões Administrativas a se deslocarem diariamente para o centro de Brasília, muitas vezes por meio do transporte público. Uma pesquisa feita pelo Instituto de Pesquisa e Estatística do DF (IPEDF), em junho de 2023, mostrou que populações negras são as que mais usam ônibus e andam a pé, estas correspondem a 37,8% e 65,3% respectivamente.
Samuel da Silva, de 55 anos, é vendedor da revista “Traços” e precisa se locomover a pé por todo o DF para conseguir cumprir sua meta do dia. “Ando mais de 20 km todos os dias por todas as quadras da Asa Sul e Asa Norte”, explica o vendedor. Morador do Paranoá, Samuel pega dois ônibus todos os dias para vir ao Plano Piloto.
Samuel da Silva – Créditos Ayumi Watanabe
O transporte público é uma necessidade para 39,3% das mulheres e 28,6% dos homens do DF, segundo a mesma pesquisa, mas continua a receber reclamações da população que o usa todos os dias.
A fisioterapeuta Jamile Monteiro, de 23 anos, precisa usar o ônibus todos os dias para ir de Valparaíso, em Goiás, ao Plano para trabalhar e estudar, mas lamenta a situação de infraestrutura que enfrenta. “Para ir de Valparaíso para o centro, o transporte é péssimo e é sempre lotado, mas as passagens estão cada vez mais caras”, diz.
Exclusão planejada
Para Cristiane Portela, de 43 anos, professora de história da UnB, existe uma hierarquização bastante evidente das localidades do Distrito Federal devido às grandes distâncias entre as Regiões Administrativas e o Plano Piloto. “A hierarquização das regiões faz parte da segregação planejada que existe no DF”, diz.
A exclusão da periferia de Brasília data desde o início da criação da capital, começando com os candangos que depois da construção foram obrigados a migrar para o entorno de Brasília. “O levante da ‘Turma da Boa Vontade’ é um exemplo de luta contra a exclusão e a precarização que os trabalhadores de Taguatinga fizeram em 1964. A população não recebeu de forma passiva esses tipos de segregações”, explica Cristiane.
O levante da Turma da Boa Vontade foi um movimento de trabalhadores que reivindicavam melhorias de trabalho e comida nas construções civis de Taguatinga às vésperas do golpe militar de 1964. “A situação de insegurança já era sentida pelos moradores do entorno mesmo antes do crescimento da cidade”, continua.
O processo de exclusão dos trabalhadores de Taguatinga, do centro para a periferia, não foi uma situação isolada. Ceilândia, Santa Maria, Recanto das Emas, Riacho Fundo 2, entre outras, são exemplos de cidades criadas para realocar populações migrantes para longe do Plano Piloto.
“Começam a surgir periferias dentro das periferias, é um processo contínuo de expulsão das pessoas para longe do Plano, para lugares ainda mais distantes”, explica a professora.
Cristiane ainda afirma que o deslocamento é muito precário e a falta de políticas públicas para melhorar as Regiões Administrativas leva as populações a se deslocarem para o centro para atividades básicas.
“Desde que eu terminei a escola, me senti na obrigação de frequentar o centro por questões de estudo e trabalho, porque, infelizmente, aqui no Valparaíso não tem”, lamenta a fisioterapeuta Jamile.
“É preciso cobrar a efetivação de políticas públicas que garantam uma melhor mobilidade urbana, porque essa falta de interesse em melhorar é justamente por não ser relevante a presença dessas pessoas no centro da capital”, afirma a professora de história.
A Secretaria de Transporte e Mobilidade no Distrito Federal e o Detran foram contactados diversas vezes para responder às críticas, mas não retornaram.
Por Maria Beatriz Giusti
Supervisão de Katrine Boaventura