Crônica da cidade: pela janela do ônibus, o museu é um cenário distante

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Em silêncio, Antônia Maria entra no primeiro vagão do metrô. A moradora de Ceilândia observa bem os passageiros e tenta adivinhar, olhando fixamente para as pessoas, quem lhe cederá um lugar. Nesse momento, uma jovem que está sentada oferece o banco para a idosa. Antônia agradece, senta e passa a observar a paisagem.

É sábado à tarde e é um dia não muito comum, já que é junho e ameaça chuva. Durante o trajeto, a idosa passa várias vezes a mão no seu anel de compromisso, apesar de ser divorciada. A aliança desgastada enfatiza as mãos cansadas da mulher, que trabalha recolhendo lixo nas ruas da cidade.

Apesar do avanço da idade, ela precisa continuar o serviço para terminar de contribuir com a previdência e enfim se aposentar em dois anos.

Entre a Ceilândia e o Plano Piloto (última estação), o trem passa por Guará e Taguatinga. Durante o percurso, o cenário na janela muda à medida em que vai se aproximando o fim da linha. A jornada começa com casas pequenas e amontoadas, com telhados e carros antigos. Depois, a vista se dá para prédios com piscinas e casas com dois carros na garagem.

O metrô chega à estação central. A mulher e uma centena de passageiros, se prepararam para sair do trem. Entre pessoas, bolsas, bicicletas e catracas, ela consegue enfim sair do sufoco. Todo dia é assim, quando não no metrô, no ônibus lotado.

Depois de sair da rodoviária, Antônia segue rumo ao Museu Nacional da República. Na frente do prédio estão outros garis aguardando o ônibus da empresa que leva os funcionários para os pontos de limpeza do dia. Mesmo tão próxima do espaço cultural, a idosa não sente interesse em entrar. Para ela, museu é lugar de coisa velha e só serve para fazer as pessoas perderem tempo.

O caminho de Valdirene

Quem também não tem tempo a perder é a Valdirene. Moradora de Brazlândia e mãe de quatro filhos, a mulher gasta duas horas dentro do transporte público para chegar na frente do museu e esperar o ônibus do serviço de limpeza. Valdirene só viu o museu por dentro uma vez e foi pela televisão. Apesar de estar tão próxima do espaço, ela também não tem interesse em entrar.

No Museu, oitocentas pessoas passaram pelo local naquele dia, entre estudantes, turistas e moradores da cidade. Logo na entrada os visitantes são recebidos com uma obra potente. A pintura é do artista Pedro Ivo que morou em Brasília.

O quadro retrata um ônibus lotado na rodoviária. Dentre as expressões dos passageiros, uma se destaca: o semblante triste de um senhor sentado na escadinha de saída do
veículo.

O quadro foi pintado pelo artista em 2009, e 14 anos depois ainda faz sentido para milhares de
brasilienses que usam o transporte público superlotado diariamente, como Antônia e Valdirene. O retrato ali exposto presume que após mais de dez anos, nada mudou na capital. Ora se não mudou é porque não foi dada atenção à mobilidade em Brasília.

Nas cidades em que moram as mulheres não há museus como os do centro da cidade. Também não há incentivo que as faça ter interesse em ocupar estes espaços. Por isso, a reflexão sobre temas relevantes sempre estará distante das moradoras.

O caminho de Raimundo

Quem está saindo do museu se depara com Raimundo Marciel, de 63 anos. O homem vende pipoca no local desde 2007. O idoso já viu a vida movimentada do espaço lhe passar pelos olhos. Ali sentado ele já viu o rei Pelé e o arquiteto Oscar Niemeyer subirem a rampa principal e entrarem no prédio.

Ele também já entrou na construção, mas isso aconteceu durante as idas ao banheiro nos horários de baixo movimento.

Após muito tempo de trabalho, outra situação lhe passou pelo olhar. Durante quatro anos o museu deixou de promover shows, painéis e outras atividades devido a falta de verba e a crise sanitária mundial. A ausência de público afetou as economias do homem, que agora tenta recuperar o prejuízo com o retorno das pessoas ao espaço.

Eu já estou indo embora quando duas estudantes de um colégio de Santa Maria me param. As meninas buscam por pessoas que possam ajudá-las em um trabalho da matéria de sociologia. Eu aceito participar e enquanto uma aluna segura o celular e passa a me gravar , a outra faz uma pergunta complexa:


— Pra você, o que é ser brasileiro?


Eu não acho que sou boa com respostas, prefiro perguntar. Mas enquanto arrumo meu cabelo para o vídeo, penso em toda essa gente que encontrei no dia. Reflito que talvez ser brasileiro é ser perseverante, já que mesmo diante das desigualdades e dificuldades que existem, o nosso povo segue lutando por dias melhores. Assim eu penso e logo falo, finalizando minha resposta.


Agradecidas, as meninas seguem rumo à catedral. Na contramão eu sigo em direção a rodoviária para pegar o transporte público de Brasília e me unir a uma centena de pessoas, bolsas, bicicletas e catracas.


Ana Carolina Tomé

Supervisão de Gilberto Costa

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