A história de Alessandro, entregador de aplicativo que luta diariamente carregando a comida dos outros. A reportagem acompanhou os 250 quilômetros da rotina do trabalhador
Domingo, 8 de outubro de 2023. O alarme toca. São 8h da manhã. Alessandro acorda. A esposa e as crianças também despertam. São três filhas. A mais velha tem 7 anos. A do meio está perto de completar 2 e a caçula tem apenas 4 meses de vida. O relógio não perdoa. Cada segundo é precioso.
Alessandro aproveita o momento. Ele brinca com as pequenas e ajuda nos cuidados com a mais nova. Tic-tac, tic-tac. Já está na hora de tomar banho. Pronto, agora é o café da manhã, que tem de ser bem reforçado. São quase 10h e ele passa mais alguns minutos com a família, os últimos antes de uma longa jornada. Tic-tac, tic-tac. Alessandro tem que partir.
Com a blusa térmica amarela e preta no corpo, a calça jeans ajustada e as botas nos pés, parte para o Lago Norte. São aproximadamente 25 km da casa dele, no Setor de Chácaras do Paranoá, até o Ponto de Apoio ao Motoboy (PAM) da região, em frente ao Shopping Iguatemi.
10h30
Nesse horário, trabalhadores já estão no meio da jornada. E no Brasil, é uma verdadeira multidão. Segundo o IBGE são 589 mil pessoas que compõem a categoria. A maioria não contribui com instituto de previdência e mais de 70% estão na informalidade.
“Trabalho somente nos aplicativos. Trabalhava antes em uma farmácia no modelo CLT. Quando as empresas de aplicativo chegaram em Brasília, comecei como uma renda extra, assim como a maioria dos meus colegas. Logo se tornou a renda principal. Os aplicativos dominaram o mercado, entraram nas farmácias, nos restaurantes, nas pizzarias. Hoje é muito difícil achar um serviço fixo”, conta Sorriso.
No Plano Piloto, uma das faixas de cada Eixinho vira estacionamento para quem vai estar no Eixão do Lazer, que começa a ficar movimentado desde cedo. São diversas famílias aproveitando o final de mais uma semana. As ruas, bem menos movimentadas que o comum. A W3 fica quase deserta. As comerciais com restaurantes estão cheias, enquanto as que focam em outros tipos de empreendimentos mal possuem lojas abertas.
No ponto de apoio do Lago Norte, Sorriso cumprimenta os colegas. Com ele, já são três à espera dos primeiros pedidos.
11h32
Toca o primeiro. O restaurante é a Galeteria Gaúcha, bem ao lado do PAM. Sorriso está pronto para começar oficialmente a jornada de mais um dia de entregas em Brasília.
Os pontos de apoio são uma conquista dos entregadores, que, desde sempre, reivindicam a construção de um local onde possam parar para beber água, carregar celulares ou apenas descansar entre uma entrega e outra.
O primeiro PAM construído foi o do Lago Norte, em abril de 2022. O espaço é um dos dois pontos que a cidade possui. O outro, mais recente, fica no Setor Comercial Sul e foi inaugurado em março de 2023. A questão é que nem tudo funciona como deveria.
“É uma reivindicação nossa ter pontos de apoio como este (Lago Norte) no centro de Brasília, para que possamos descansar, ter um bebedouro – aqui ainda não tem, pois precisamos de tomadas. Até foram instaladas, mas não estão funcionando. O PAM do Setor Comercial Sul é mais completo. Mesmo assim, o bebedouro quebrou faz um tempo e está em manutenção até hoje”, desabafa Sorriso.
Logo segue para o primeiro endereço, no Noroeste, área nobre de Brasília. Alguns quilômetros percorridos e entrega finalizada, antes do meio-dia. Rapidamente, Sorriso pilota sua moto de volta para o PAM, realidade muitas vezes invisível. Além do deslocamento até a casa do cliente, é comum a rotina de retornar ao ponto para conseguir outros pedidos, mesmo que o aplicativo pague apenas o deslocamento com a entrega.
Ao chegar no ponto de apoio, o aplicativo toca. Mais uma entrega. Não há tempo a perder. Desta vez, o destino é a quadra 209 da Asa Norte. Na correria do horário do almoço, ele já engata o terceiro pedido na região e vai até a SQN 309, em um dinamismo impressionante. É preciso aproveitar ao máximo o momento em que o aplicativo não para de tocar.
12h37
“Agora, minhas filhas estão lá e minha mulher está cuidando da casa. Atualmente, ela está desempregada. Por causa da mais nova, não dá para ela começar a trabalhar. No fim de semana, era para estarmos curtindo um lazer com as meninas, mas geralmente são os melhores dias para fazer uma grana”, diz Sorriso, ao lembrar das filhas.
Não demora muito para tocar o próximo pedido. O horário do almoço é frenético, mas é quando os entregadores ganham na quantidade. Antes de acelerar para mais um trecho, Sorriso desabafa.
“Essa hora já começo a sentir o cheiro das comidas que pego nos estabelecimentos, mas só vou almoçar lá para às 3h da tarde, quando o ritmo cai um pouco”, explica sem perder o sorriso no rosto.
Parte então para mais uma bateria de entregas. Primeiro, leva uma embalagem que ocupa todo o baú da moto até a quadra 108 do Noroeste. Parece ser para uma família toda. O segundo pedido é um tanto quanto inusitado: a retirada é em um petshop famoso, no final da Asa Norte. Sorriso espera que não seja ração. Ele não quer cheiro de comida de cachorro na mala da moto.
Ele dá sorte. A entrega é apenas uma caixa de papelão, e sem odor. Sorriso diz nem saber o que está carregando, mas logo deixa a encomenda na comercial da 412 Norte. De lá, segue para mais uma retirada e vai até a QI 12 do Lago Norte para entregar o pacote de uma churrascaria. Por fim, parte para o setor do Taquari levando o último almoço do dia, mais um galeto.
14h45
Vindo do Taquari, Sorriso chega na 713 Norte. Neste trecho em específico acelerou mais do que o comum. Ele desembarca no Restaurante Beer Club para, finalmente, almoçar. Já são quase seis horas desde a última refeição. Após isso, apenas água, na garrafa que esquenta no baú da moto a cada entrega.
Com pressa, Sorriso entra no estabelecimento e vai logo montar o prato. Arroz, feijão, salada, macarrão, frango e carne. Ainda pega um copo de suco para acompanhar. O valor da refeição é fixo, R$10. A bebida aumenta a conta em R$1. Basicamente, o valor de uma entrega se vai ali na pausa.
“Este restaurante tem um preço bem legal, bem em conta para nós. Vários motoboys almoçam aqui. Eu costumo trazer almoço. Quando não trago, como aqui”, explana Sorriso após a refeição.
15h23
Sorriso liga novamente o aplicativo, que ele havia desabilitado os pedidos para comer com mais tranquilidade. No entanto, o momento agora parece ser de calmaria em relação à quantidade de entregas. Senta-se na moto e avalia a própria rotina como motoboy.
“Hoje o aplicativo paga por entrega. Eu mesmo entro 10h50 da manhã, mas só ganho a partir do momento em que pego um pedido na minha tela e finalizo. Um dos maiores aplicativos, o iFood, paga taxa mínima de R$6,50 até 5 km. Depois disso, é mais R$1,50 por quilômetro rodado. Mas isso é uma coisa difícil de ter certeza. Às vezes, nós nos sentimos manipulados. Em algumas rotas a diferença é muito grande nos valores”. Ele se abre enquanto espera por um pedido. O sinal é um som. “Ifood” toca repetidas vezes até o trabalhador aceitar ou recusar.
Sorriso não é um entregador qualquer. Por onde passa, é reconhecido pelos colegas de profissão e até por outras pessoas. Ele é ativista da classe, fundador e presidente da Associação dos Motofretistas Autônomos e Entregadores de Aplicativo do Distrito Federal (AMAE-DF).
“A ideia de montar a associação veio a partir da chegada dos aplicativos de entrega em Brasília. Nós não tínhamos uma organização, uma voz, para dialogar e negociar com as empresas por melhorias”, explica.
Sorriso mergulha no assunto e relata as dificuldades que teve junto aos colegas na luta por melhores condições de trabalho. No auge da pandemia da covid-19, em 2020, a demanda era muito alta e a falta de regulamentação aumentou a exploração.
Eram cada vez mais entregas, pacotes maiores e remunerações baixas. Então, ele e outras lideranças se mobilizaram para uma paralisação. À época, um dos aplicativos respondeu com uma série de bloqueios e banimentos. A AMAE-DF, em parceria com associações de outros estados, acionou a Justiça. Foi a primeira vitória destes trabalhadores de forma unida e organizada.
“Os aplicativos chegaram fazendo o que queriam, contratando nossos serviços e falando que somos parceiros, mas acabaram banindo vários colegas injustamente. Há anos que não temos reajuste nas taxas. Nós acabamos trabalhando cada vez mais e ganhando cada vez menos”, conclui, antes de partir para um local onde há expectativa de conseguir mais entregas.
15h54
O ritmo da tarde não parecia animador. O aplicativo demorava a tocar. Sorriso decidiu esperar próximo a uma galeria, na quadra 110/111, na Asa Norte. E assim o tempo passou, com algumas entregas curtas, as menos vantajosas para os entregadores, e bastante tempo parado, entre interações rápidas com outros entregadores e um bom período no celular.
“Agora já começa a cansar um pouco, mas é assim mesmo. Tenho contas para pagar e só consigo pensar nisso. Tem que trabalhar, né? Já estou ansioso para chegar em casa. Infelizmente as crianças vão estar dormindo quando eu chegar, e amanhã logo cedo vão para a escola, mas é assim mesmo. Trabalhar para dar um futuro melhor para as meninas”, desabafa mais uma vez, sem perder o sorriso.
Preparado para o próximo batidão de entregas e sob alguns olhares estranhos dos frequentadores dos estabelecimentos próximos da mesa onde Sorriso está, vem o relato sobre como é o tratamento dos restaurantes com os motoboys.
“É complicado. A maioria dos restaurantes não trata a gente bem. Em alguns, eu peço para usar o banheiro, mas não deixam. Eles tratam a gente que nem cachorro. Não entendem que nós também somos parte da engrenagem que ajuda a economia deles a girar”, conclui, enquanto finaliza os preparativos para mais uma entrega.
19h13
Enfim, noite. Sorriso desembarca de novo no Noroeste. A entrega demora um pouco, já é a 12ª do dia, e acontece algum desentendimento da portaria na identificação da cliente, mas no final tudo dá certo. Ainda nas colunas do prédio, ele para, confere o aplicativo e se anima ao ver que o iFood disponibilizou uma promoção. Agora, cada entrega tem um adicional de R$4. É um incentivo para ele tentar bater a própria média diária de R$200.
Segue para mais uma bateria corrida de entregas. Sem muito respiro, vai do Noroeste para a Asa Norte, depois para a Vila Planalto e, de lá, volta para a Asa Norte. Continua a jornada levando um pedido até o centro da cidade, no hotel Hplus Vision Executive, e corre até a Asa Sul. Por fim, faz a penúltima entrega na SQN 405.
“Pois é, hoje graças a Deus foi bom. No domingão a gente sempre fatura mais um pouquinho. Mas mesmo quando eu bato a meta de R$ 200, sobra muito pouco. As despesas para exercer a profissão são altas, tem a gasolina, a manutenção da moto, a comida. Tudo sai do nosso bolso”, explica, já cansado, mas ainda com um sorriso contagiante.
21h31
Finalmente a última entrega, coincidentemente no mesmo local em que começou, apenas a uma quadra de distância do primeiro pedido, no Noroeste. Após 17 entregas e quase 12h de trabalho, Sorriso “agradece a Deus” por mais um dia finalizado em segurança.
“Agora eu vou para casa, descansar um pouco, aproveitar a família ae amanhã é tudo de novo”, finaliza Sorriso. Foram mais de 250 km percorridos. Cansado, mas com um sorriso no rosto. O apelido segura a onda.
Viva esse dia junto com Sorriso no documentário ‘A Periferia que Entrega no Centro’.
Por Pedro Reis