As fotografias 3×4 têm um valor nostálgico e profissional para a família de cinco fotógrafos que trabalham na rodoviária do Plano Piloto, no Centro de Brasília. Eles se consideram candangos ou filhos, sobrinhos ou netos de pioneiros que ajudaram a construir a capital do Brasil.
É possível notar que na maioria das vezes é uma história de legado, de dar sequência ao que foi iniciado por sua família há muitos anos, no início de Brasília. Isso torna esses fotógrafos testemunhas da evolução e das mudanças da cidade com o passar dos anos.
Independência
No andar inferior da rodoviária, em frente ao colorido dos ônibus e ao redor da movimentação das pessoas, há um ponto de silêncio e quietude: uma cabine azul com um letreiro amarelo “Cine Foto São José”. Ao aproximar da cabine, estão na prateleira várias fotos de um casal. Trata-se da dona do estabelecimento, a fotógrafa Maria Verônica Carvalho, de 41 anos, e seu marido.
Maria Verônica, dona da cabine de fotos Cine Foto São José. Foto: Andressa Sarkis
Maria Verônica é natural de Independência, município de 26 mil habitantes do Ceará. Em 2004 se mudou para Brasília, à época com 17 anos de idade, para morar com a irmã. Ela relata que, mesmo com as grandes diferenças, se sentiu feliz na nova cidade. “Tem muita diferença, mas eu me adaptei. Foi um processo tranquilo. Eu tenho irmãos, primos, e muita gente da minha família aqui em Brasília, o que facilitou um pouco.”
A história dela não se iniciou na fotografia. Ela já trabalhou como faxineira e babá, por exemplo. O trabalho com os cliques na rodoviária começou pelos ensinamentos do tio, Raimundo Nonato de Carvalho, que já trabalhou no terminal por mais de 50 anos.
Raimundo foi o primeiro da família a fazer essa mudança para Brasília. O fotógrafo começou trabalhando como cobrador de ônibus e, com o tempo, ao final da década de 1970, surgiu a possibilidade de adquirir sua própria cabine, na época uma cabine móvel.
Nonato morreu em 2022. Ele foi um pioneiro. Foi, por exemplo, o primeiro a trabalhar com fotocópia na rodoviária. Maria Verônica não foi a única da família que foi aprendiz de Raimundo Nonato.
União
Ainda no piso inferior da rodoviária, ao lado da escada rolante e em frente à icônica pastelaria Viçosa, encontra-se outra cabine, toda amarela e com um letreiro azul com o nome “Foto União”. O nome, inclusive, se relaciona bem com a história do fotógrafo, e dono da cabine, Ranisley Pereira Carvalho, de 43 anos.
Ranisley nasceu em Brasília e é filho de Raimundo Nonato e primo de Maria Verônica, a concorrente no mercado das fotos na “rodô”. Assim como ela, Ranisley entrou no ramo da fotografia pelos ensinamentos do pai. Ele começou a trabalhar como aprendiz de Raimundo por volta dos 14 anos de idade, já na rodoviária, onde atua até hoje.
Ranisley Carvalho é dono da cabine de fotografia Foto União. Foto: Andressa Sarkis
Nostalgia
As histórias de Ranisley e Maria Verônica na rodoviária têm pontos em comum. Ambos viveram por todo o período de evolução tecnológica da fotografia, começando com as antigas máquinas polaroids e passando a atuar com a praticidade de um telefone celular. Maria Verônica ainda tem preferência por utilizar uma máquina fotográfica, mas Ranisley já opta pelo telefone.
Há em comum entre eles também o lamento da “baixa procura” pelo serviço fotográfico, principalmente após a pandemia. Como hoje poucos documentos pedem fotos 3×4, a demanda por esse serviço está bem menor. Ambos relatam que, antes, chegavam a fazer, em média, 180 a 200 fotos. Hoje, em um dia movimentado, a média varia entre 15 e 20 clientes.
Maria Verônica recorda que o movimento era tão intenso que ela não conseguia nem tirar uma pausa para almoçar porque a fila de clientes era “tão extensa que chegava a dar voltas na rodoviária”.
Mas, mesmo com a baixa procura, a rotina segue inalterada. Ranisley acorda todos os dias às 4h30 para trabalhar. Com Maria Verônica a história é similar, acordando às 5h diariamente para estar a postos em sua cabine.
Mesmo com essa situação, a luz no olhar dos primos fotógrafos mostra que o legado deixado por Raimundo Nonato é maior do que a circunstância atual, de um flash.
Três gerações
O fotógrafo Evaldino Álvares Brandão, de 70 anos de idade, é um dos mais antigos profissionais de Brasília. Durante os 50 anos de carreira na rodoviária, o profissional acompanhou as mudanças dos equipamentos de fotografia e da clientela. A luz dos cliques emitida da cabine do fotógrafo, que um dia já iluminaram a rodoviária, hoje não passa de um “retrato” antigo.
Nascido em Formosa (GO) no ano de 1954, Evaldino manteve vivas memórias passadas nas últimas cinco décadas. Memórias de seu pai, Pedro Álvares Brandão, que foi revelado para o mundo em Patos de Minas (MG) e se tornou foto de recordação em 2012.
Evaldino tinha apenas 10 anos quando chegou em Brasília junto de sua família, mas não foi fácil. Apesar de ser conhecida como a terra das oportunidades na época, a capital iniciava um momento sombrio, onde assim como dentro de uma câmara escura, era difícil enxergar o que tinha pela frente. Ele lembra que o Exército dificultava a entrada de pessoas de fora da capital. “Eles queimaram os carros”, disse o fotógrafo.
Os dedos de Pedro, seu pai, eram acostumados a manusear máquinas fotográficas. Porém, para seguir com seu talento em Brasília e abrir a Cinefoto Alves, por um breve período, as mãos do fotógrafo pai foram usadas como as de um carpinteiro. E assim, aos 15 anos, Evaldino iniciou no ramo da fotografia em uma rodoviária recém nascida e segue desde então.
O retrato de épocas passadas de Evaldino comparado aos dias atuais revelam um contraste como os pretos e brancos de uma foto. Antes da ascensão dos documentos digitais, o ritmo dos clientes era frenético: eram trabalhadores, embaixadores, deputados, que iam a todo momento à cabine de Evaldino, sem tempo nem mesmo para conversar. Em contrapartida, o processo de revelação das fotos era mais lento, de forma que dependia até mesmo da intensidade do vento para secar as imagens.
Evaldino sentado ao lado de sua banca. Foto: Andressa Sarkis
Em 2024, todo o processo para ele também é quase instantâneo, já que se concentra no smartphone, o que possibilitaria o trabalhador a atender mais clientes em um tempo menor. Mas a realidade é que Evaldino passa a maior parte do seu trabalho em ócio, sentado em uma cadeira branca ao lado da banca, com todo o tempo do mundo para atender e conversar com os clientes, caso eles retornem.
De camisa polo mostarda e calça jeans, Evaldino apresenta um semblante sério na maior parte do tempo. No entanto, apesar dos desafios, o trabalhador não deixa de esbanjar um raro sorriso ao dizer com convicção que acorda às 5h50 da manhã de segunda a sábado com a missão de continuar fazendo registros dos rostos dos brasilienses.
O rolo de filme fotográfico da história da família Brandão continua com Thiago, filho de Evaldino, que nasceu em Taguatinga em março de 1996, mas foi criado mesmo na rodoviária. Reservado assim como o pai, Thiago Dias Brandão também começou por volta dos 15 anos na fotografia 3×4 e nunca mais largou a profissão.
Apesar de pertencer a uma geração diferente de seu pai, Thiago, já adulto, ainda presenciou a alta demanda dos brasilienses por registros para documentos, onde chegava a bater 100 “chapas” por dia. Ele relembra com carinho os tempos áureos onde os sons dos cliques se misturavam com os clientes chegando, enquanto estava aprendendo a plastificar documentos com seu avô Pedro, ou manusear a máquina fotográfica com seu pai.
Hoje, em um dia bom, o fotógrafo bate 10 chapas, e não deseja que Laila Maria, sua filha de 10 anos, continue o legado do negócio, o que aponta Thiago como a última foto do rolo de filme da família brandão nesse ramo.
A evolução tecnológica, sobretudo o smartphone, foi uma faca de dois gumes para esses profissionais. De um lado, o dispositivo eletrônico possibilitou a otimização do trabalho para os fotógrafos, de outro ele se tornou talvez o prego na caixão para essa profissão com a chegada dos documentos digitais.
Os dedos de Thiago, que passaram anos ocupados plastificando, secando e revelando, hoje são utilizados majoritariamente para suprir o tédio do fotógrafo. Em uma rodoviária que não escuta mais, como antes, os cliques das cabines, utilizar os dedos para manusear o pequeno aparelho de espelho escuro se torna a única opção para preencher o tempo.
Thiago esperando clientes na cabine de fotografia. Foto: Andressa Sarkis
Memória e legado
Gleiciane Machado, de 40 anos, nascida na capital federal, com descendência em Piumhi (MG), abre um sorriso largo e orgulhoso ao contar a história que originou a banca de fotografia 3×4 em que trabalha, localizada no coração de Brasília, a rodoviária. Em seu semblante é possível perceber a saudade e a boa lembrança ao recordar de seu pai, Sebastião Teodoro de Lima, que abriu a banca “Lima” de fotografia e a convidou para trabalhar com ele.
“Essa banca era do meu pai. Ele faleceu em 2012, mas nós trabalhávamos juntos desde 2002, que foi quando eu decidi vir ajudá-lo. Eu tinha uns 30 e poucos anos quando isso aconteceu”.
Sebastião foi servidor público federal, porém após sua aposentadoria, ele viu a oportunidade de ir para a rodoviária, centro tão visado da capital, para trabalhar com a fotografia 3×4. Gleiciane conta de forma bem-humorada que, além dela, seu irmão também trabalhou com o pai, porém ela foi a única que continuou com a banca, que carrega consigo tantos momentos especiais e memórias.
Ao decorrer dos anos trabalhados, é possível notar as mudanças drásticas no processo fotográfico. Os olhos de Gleiciane não escondem, a demanda por fotografias 3×4 em sua banca diminuiu muito após os avanços tecnológicos. “Antigamente, nós fazíamos 100 chapas por dia. Hoje em dia, se conseguirmos fazer 15 ou 20, já é muito.”
Após as mudanças nos requisitos para as documentações, a clientela diminuiu de forma abrupta. Além disso, a digitalização dos documentos permitiu a modernização e maior acessibilidade para a fotografia. Ou seja, atualmente, é possível obter uma boa foto 3×4 para emitir determinados registros a partir do aparelho celular.
Apesar das dificuldades, os olhos castanhos de Gleiciane e seu sorriso demonstram o quanto a banca fotográfica carrega memórias emblemáticas de sua história. “Quando meu pai faleceu, eu fiquei um ano e meio sem conseguir vir aqui. Foram tantas histórias juntos nesse lugar, que não dei conta de voltar. Fiquei afastada durante esse período, mas depois segui sozinha com a banca.”
Ao contar sobre seu pai, ela lembra de uma história engraçada. “Quando a fotografia ainda era polaroid, o Bruno, da dupla sertaneja Bruno e Marrone, veio tirar uma fotografia 3×4 com meu pai, porém ele não o reconheceu”. A gargalhada ao contar essa memória é certa. “Ele só foi descobrir que era o cantor quando revelou a foto e mostrou para alguns amigos, que logo o reconheceram”.
Evolução tecnológica
A evolução tecnológica transformou o fazer fotográfico. “A fotografia nasceu como um instrumento técnico de representação. A partir das luzes que refletem nos corpos, a fotografia tem um ar de veracidade, que até então não era possível de alcançar apenas com a pintura”, afirmou o pesquisador em ciências sociais e fotografia Lourenço Cardoso.
Ele explica que a arte executada pelo olhar sensível do ser humano por meio das lentes fotográficas, tornou viável a identificação das pessoas em seus documentos. “ Não era considerado prático carregar fotos em tamanhos maiores no dia a dia. Foi instituído o tamanho 3×4 para padronizar a identificação através dos documentos com foto”, explica
Ele entende que a fotografia é considerada a representação mais próxima da realidade. “A prova clara disso é o RG, que possui uma foto para identificação”, afirma o fotógrafo.
Hoje, a fotografia é acessível a todos que possuem um celular na palma da mão. Essa evolução tornou o processo fotográfico mais dinâmico, porém acabou por afetar a vida das pessoas que fazem da fotografia uma carreira.
Ele pontua que é notável a quantidade de pessoas que carregam seus documentos de forma digital, fato que afeta diretamente a perpetuação do legado de muitos fotógrafos 3×4.
“Hoje, você mesmo pode tirar uma foto 3×4 através do celular e uma boa iluminação. Isso interfere drasticamente na vida dos fotógrafos 3×4”, explica o pesquisador
O pesquisador ainda identifica que a transferência da fotografia impressa para o mundo virtual trouxe à tona uma nova realidade para a sociedade. A representação do mundo real, obtida através da fotografia, hoje não é mais comum de ser palpável e sensível ao toque. O que antes era natural de se ver estampado em documentos impressos e álbuns de família, a fim de proteger a memória, hoje essa realidade foi transferida para o ambiente digital.
O futuro
A fotografia, com seu apelo à memória e às lembranças visuais, ao longo dos anos ocupou papéis diferentes na representação da realidade dentro da sociedade. Segundo Lourenço Cardoso, através de sua experiência de uma vida por trás das câmeras, o uso da fotografia 3×4 impressa, hoje tem um papel muito mais nostálgico do que de fato pela obrigatoriedade nos documentos impressos.
O caminho mais provável a ser desenhado por ela tende a ser o de se tornar uma função de exploração de diferentes linguagens fotográficas para as pessoas que gostam de fotografar e que querem adentrar no mundo nostálgico que a fotografia 3×4 impressa proporciona.
“A tendência é a fotografia 3×4 impressa passar a ter um novo papel na sociedade, de forma mais nostálgica, a fim de explorar diferentes linguagens fotográficas. Porém, o uso para documentação impressa é passível de deixar de existir.”
O tempo trouxe à fotografia, de formas diferentes, uma transformação em diversas áreas. A todos aqueles que admiram poder olhar para as fotos 3×4 emitidas em papel específico, dentro dos álbuns de família ou até mesmo dentro da carteira de alguém que amam, o tempo é apenas mais uma adversidade em meio à esse mundo de memórias e sensações que a fotografia pode nos proporcionar sentir.
Por Andressa Sarkis, Arthur de Lima, Pedro Oliveira
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira