O Beco do Bruno: morte do rapaz que pedia comida e abraço comoveu uma quadra inteira

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Pessoa famosa? Empresário da região? Por que tanta gente cerca esse caixão? A sala do velório estava lotada. Quem o conhecia sabia explicar por que aquela pessoa tinha deixado tanta gente comovida. Diante do corpo inerte de Bruno, que tinha 41 anos e vivia em situação de rua, o lamento geral.

Naquele 12 de junho de 2024, no Cemitério Campo da Esperança, em Brasília, quem o conhecia lamentava a morte (causada por um atropelamento) e a vida (em vulnerabilidade, dormindo em um beco, nas ruas do Gama, região administrativa do Distrito Federal). 

Bruno Ricardo da Silva dormia no beco na quadra 45 do Gama. Ele andava pelas ruas todos os dias. Às vezes, pedia dinheiro. Às vezes, um abraço. Na verdade, os moradores da região o viam como um amigo. “O Bruno nunca passou fome”, recorda a comerciante Saloide Alves, que mora em um prédio com janela virada para o beco onde ele dormia. Ela se lembra do “tia Saló, eu tô com fome” ou “tia Saló, quero um abraço”. E ela dava o que ele queria.  

Bruno ia até o armarinho da Saló, na frente da casa dela e pedia um refrigerante, sabonete ou desodorante. Além dos itens do armarinho e comida, Saló também deu cobertores e barracas para as épocas mais frias.

O teto

Com o material de higiene, tomava banho, e às vezes dormia, na casa e loja do comerciante Daniel Ernesto. Mas Bruno era resistente. Por causa do vício em álcool e drogas, nos momentos em que não estava sóbrio, Bruno não queria ser ajudado. Daniel lembrou que Bruno teve dengue e covid-19 e não teve como o rapaz negar apoio. “Ele me contava das histórias dele: que batiam nele na rua e que sempre era demitido dos empregos. Eu o aconselhava a buscar seus direitos (que o rapaz não conhecia)”.

Daniel, que tem 74 anos, conhece Bruno desde pequeno quando ele morava com os avós em uma casa na rua de trás. O mundo virou pelo avesso quando Bruno perdeu o avô (e, com a dor, passou a usar drogas) e depois a avó. Foi quando entrou em desespero sem as pessoas a quem era muito ligado. Para piorar, sem as pessoas que cuidavam dele, ficou sem ter casa para morar. 

Os vizinhos garantem que os vícios não deixaram Bruno violento, mas com  dificuldades de compreensão e viver uma vida normal. Sem casa, não largou o bairro e foi dormir em outros lugares e escolheu um beco. Como na vida, um beco (que parecia) sem saída.

“Tinha um bom coração”

Alguns familiares apareceram depois da morte dos avós e até tentaram levá-lo para casas de recuperação ou aluguéis baratos. Mas ele sempre negou. “Bruno era carente e tinha um bom coração. Às vezes, saía pedindo abraço para as pessoas da rua”. Daniel acredita que, além dos momentos difíceis que enfrentou, Bruno tinha alguma doença psicológica. Mas, segundo o tio de Bruno, Eurico Martins, isso nunca foi diagnosticado.

Eurico mora em Taguatinga, a cerca de 25 km da rua do Bruno, e ia a cada 20 dias visitar o sobrinho para levar comida, itens de higiene, roupas, sapatos e até colchão. Ele tentou convencê-lo a mudar de vida, mas não conseguiu. Eurico diz que, às vezes, Bruno dava ou vendia os itens que ele levava. Mesmo assim, ele não desistia de ir visitar o sobrinho. “Ele era uma pessoa excepcional quando estava sem drogas e bebida. Muito educado, amoroso, carinhoso. Mas algumas vezes eu comprei coisas para ele, e ele vendia tudo”.  

Bruno sabia que os poucos pertences poderiam sumir. Por isso, preocupado com seus documentos, pedia para um vizinho, Margarido Corrêa, que mora em uma casa em frente ao beco, guardá-los. Inclusive, uma pasta com documentos.

Conselhos

Depois da morte de Bruno, Margarido precisou abrir a pasta em que estavam os papéis e tinha dinheiro guardado. “Ele era muito sincero comigo. Às vezes, batia no portão e me pedia dinheiro. Só que eu sempre perguntava antes de dar se ele ia comprar bebida. Quando ele dizia que não, eu dava e, quando dizia que ia beber, eu não dava”. Margarido aconselhava Bruno a começar a beber menos. 

Alguns dias antes de morrer, Bruno estava dizendo pela esquina que ia parar de beber. Só ia andar sóbrio e  mudar de vida. Disse para todos os vizinhos, incluindo Valdete, dona do churrasquinho da rua. Era ela que fazia as marmitas, lavava as roupas dele e também abriu a casa para que ele tomasse banho. Bruno queria arrumar um trabalho. Uma vez, Valdete  convidou Bruno para vigiar os carros no estacionamento do churrasquinho. “Ele trabalhou o dia todo, conseguiu 60 reais e veio me mostrar todo feliz. Quando eu soube da morte, eu desabei”.

Socorro

Nesse dia do primeiro trabalho depois de tanto tempo, quem o viu testemunhou que ele estava cheio de alegria. Saiu andando pela cidade comemorando os 60 reais que tinha feito por conta própria. Foi andando e andando por cerca de 2 km, provavelmente pensando como poderia ser os próximos dias no trabalho. Ganhar mais dinheiro, talvez sair da rua… Em meio ao delírio da felicidade na noite do dia 27 de abril de 2024, as luzes do farol de um carro chegaram perto demais. Bruno foi atropelado em frente ao Corpo de Bombeiros do Gama no dia em que conseguiu colocar o trabalho à frente do álcool. 

Nessa hora, Brenno, o quase xará, foi mais um que conheceu Bruno, mesmo que rapidamente, sem saber que a poucos quilômetros dali aquela era uma pessoa em situação de rua, mas muito querida e conhecida. Brenno conheceu Bruno jogado no chão, desacordado e com um corte na cabeça, sangrando muito. Brenno Santana, motorista de Uber, estava trabalhando quando se deparou com uma movimentação em uma região de baixa iluminação. Tinha um carro parado, algumas pessoas e um homem jogado no chão. Brenno correu até o Corpo de Bombeiros, que era próximo: “Eu corri até o quartel para informar o que tinha acontecido. Aí rapidamente os bombeiros já saíram e foram até o local socorrer o rapaz”. 

Bruno ficou internado no Hospital de Base de Brasília e depois no Hospital Regional do Gama. Durante os 44 dias internado, havia fila para visitá-lo. Além dos vizinhos, familiares distantes apareceram. Nos momentos mais conscientes, pedia pra voltar “para casa”. Depois de 44 dias, depois da visita do tio Eurico, Bruno morreu. 

Beco vazio

Daniel foi uma das pessoas que mais choraram no velório. Quando recebeu a notícia da morte do amigo, desabou. “Ele apanhou muito na rua. Ele sofreu pelos avós. Ele teve uma vida muito sofrida. A rua ajudava ele, mas a gente não conseguia fazer tudo”.

Hoje quem vive na quadra 45 sente falta do Bruno. O lugar em que o rapaz montava a barraca ou qualquer cantinho para dormir ficou em total silêncio, sem pedidos de ajuda ou de abraço. O lugar sem saída era um beco de piedade. Virou, para sempre, o beco do Bruno. 

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Por Milena Dias

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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