Organizações civis assumem luta pela garantia de direitos na periferia

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O Coletivo da Cidade é uma OSC que atua na Cidade Estrutural
Foto: Madu Toledo

Nesse texto você confere: 

  • História do estudante Gabriel, jovem da Estrutural que é assistido pela Organização da Sociedade Civil Coletivo da Cidade;
  • A realidade da Estrutural em números;
  • O Coletivo da Cidade: como surgiu a iniciativa e área de atuação;
  • Qual é o papel do Estado brasileiro?

“Na minha opinião, as ações do Coletivo não só substituem as ações do governo, como eles têm várias ações que nem o governo faz. Eles dão para a gente  recursos e direitos que o governo não dá. Eles estão aqui para trazer o que o governo não quer que a gente tenha.”
– Gabriel França

Gabriel França é um das 300 crianças e adolescentes que são atendidos pela Organização da Sociedade Civil (OSC) Coletivo da Cidade, que atua na Estrutural (DF). Ele frequenta o espaço desde os oito anos.

A mãe dele, Maria dos Santos, procurou o espaço em um momento de emergência. “Minha mãe me levou para o Coletivo porque ela trabalhava muito para sustentar a nossa casa, e ela precisava de um lugar para colocar a gente. Eu e meus dois irmãos.”

Maria dos Santos veio do Piauí para Brasília na década de 1990, aos 20 e poucos anos, atrás de uma vida melhor. Desde então ela mora na Estrutural. “Hoje a minha mãe está desempregada, mas ela era faxineira. Ela trabalhava na casa de algumas patroas no Lago Sul, limpando as casas delas.”

Cerca de 21 km separam o Lago Sul da Estrutural. As duas cidades são, respectivamente, a maior e a menor renda per capita do DF.

Uma pessoa leva cerca de três horas para ir e voltar da Estrutural de ônibus (Foto: Madu Toledo)

A realidade da Estrutural em números

A Cidade Estrutural é uma das 35 Regiões Administrativas (RAs) do DF. Ela fica localizada a 16km do centro de Brasília e, de acordo com a Administração Regional, a cidade tem sua origem em uma invasão de catadores de lixo próximo ao aterro sanitário do Distrito Federal, que depois foi transferido para Samambaia.

De acordo com o Governo do Distrito Federal (GDF), pessoas de todas as idades foram atraídas para o lixão em busca de meios de sobrevivência e, nessa busca, foram ali, alinhando seus barracos para moradia, ainda nos anos de 1970. 

Foto: Madu Toledo

Em janeiro de 2018, com quase 60 anos de funcionamento, o aterro teve as portas trancadas pelo então governador de Brasília, Rodrigo Rollemberg. “Viramos essa página vergonhosa da história da nossa cidade” ele disse na época – cerca de 2 mil pessoas sobreviviam dos materiais recicláveis encontrados no lixo.

Escute uma parte do discurso do ex-governador de Brasília, Rodrigo Rollemberg:

O ato simbolizou o encerramento das atividades do segundo maior depósito de lixo a céu aberto do mundo.

“As pessoas até hoje terem as suas figuras associadas ao lixão é muito reveladora. Tem um histórico por trás disso. É como, se por você trabalhar em um lixão, virasse parte disso também. Se misturasse com aquilo ali e virasse uma coisa só e isso não é verdade. Isso a gente sabe o nome: racismo. Preconceito mesmo”
– Jackeline de Sousa, pedagoga do Coletivo da Cidade

No início da cidade era possível encontrar pouco menos de 100 domicílios na região. Hoje, de acordo com a Companhia de Planejamento do DF, estima-se que a população da Estrutural ultrapasse os 35 mil habitantes.

Mais da metade da população da Estrutural se declara negra ou parda (Foto: Don/Madu Toledo)

Seis em cada 10 famílias participam de programas governamentais de transferência de renda. E dos mais de quatro mil domicílios pesquisados pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal, mais de 1,7 mil apresentam renda per capita mensal de menos de ¼ de salário mínimo.

Atualmente, o salário mínimo é R$ 1.302 (Foto: Don/Madu Toledo)

Negro e nascido na Estrutural, na opinião de Gabriel França, vir de uma periferia significa perder oportunidades. “Você já cresce com essa marca de ser uma pessoa periférica. Só de você nascer em uma periferia, você já nasce tendo várias barreiras na sua vida que precisam ser quebradas.”

“Isso significa que você é uma pessoa que vai precisar ser forte e que vai precisar trabalhar muito, e que já nasceu com vários desafios. Significa ser uma pessoa guerreira, vir de um lugar onde as pessoas têm vários talentos que não são valorizados.”

 E quais desafios os jovens da periferia enfrentam? – pergunto.

“Desafios na educação, na infância… poder brincar, comer. É mais difícil você ter os seus direitos básicos garantidos”, Gabriel responde.

O número de pessoas em insegurança alimentar grave na Estrutural chega a 5,3% (Foto: Don/Madu Toledo)

“A periferia é um lugar onde as pessoas não têm os direitos garantidos, onde muitas vezes não tem condições básicas… mas é como diz a frase: até no lixão nasce flor. A periferia é um lugar de valor, de trabalho, de muita luta e que deveria ser mais valorizado. Mas a realidade é que a Estrutural e as pessoas que vêm daqui são  discriminadas por serem periféricas, por serem negras,” opina Gabriel.

Essa força que ele enxerga na comunidade também faz parte de quem ele é e o reflete em ideais e na perspectiva de um mundo e sociedade mais justos, sem preconceito e discriminação. O sonho de Gabriel é trabalhar com serviço social e fazer a diferença. “Gostaria de trabalhar na ONU… já imaginou?! (risos) Eu gostaria de ajudar… fazer o papel que eu aprendi no Coletivo.”

O Coletivo da Cidade

Atualmente, 300 crianças e adolescentes da comunidade da Estrutural, como o Gabriel França, entre 6 e 17 anos, são atendidas pela Organização da Sociedade Civil “Coletivo da Cidade”.

O Coletivo é uma Organização da Sociedade Civil localizada na Cidade Estrutural-DF. Ela atua, desde 2011, prioritariamente, com o atendimento de crianças e adolescentes no contraturno escolar, oferecendo alternativas artísticas e educativas como meio de transformação social. 

Além disso, a OSC também atua como um espaço de convivência e capacitação profissional para os moradores da cidade. Desde 2018, o Coletivo trabalha diretamente com a Secretaria de Desenvolvimento do DF (Sedes), em parceria com o Governo do Distrito Federal (GDF).

Foto: Madu Toledo

Em nota, a Secretaria informou que tem dois termos de colaboração vigentes para execução de serviço de convivência e fortalecimento de vínculos com o Coletivo da Cidade: um com 100 vagas para crianças e adolescentes de 6  a 17 anos e outro com 200 vagas para crianças e adolescentes de 6  a 17 anos. Ambos pactuados após o Edital de Chamamento Público.

“Hoje em dia exercemos a política pública de Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, que existe para atender crianças, adolescentes e suas famílias que vivem em situação de vulnerabilidade social e que estão em risco de terem seus direitos violados de maneira direta ou que já vivem essa violação”, explica Jackeline Correa de Sousa, coordenadora pedagógica do Coletivo da Cidade.

Escute ao podcast “Do lado de cá: um podcast sobre a periferia

As pessoas da comunidade, que têm os seus direitos básicos negligenciados, são encaminhadas à OSC, que atua junto ao Conselho Tutelar, por meio dos equipamentos públicos, como por exemplo pelo Centro de Referência de Assistência Social – CRAS, pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS).

A partir dessa inserção é realizado um acompanhamento com assistentes sociais, psicólogos, educadores e pedagogos. Em 12 anos de atuação, o Coletivo desenvolveu uma metodologia própria, as Rodas de Aprendizagem Coletivas, que são divididas em cinco áreas.

“Nessas rodas as crianças vivenciam na prática essa troca, o cuidado com o outro, a possibilidade de brincar junto, de criar e de construir saberes por meio das atividades que a gente desenvolve. A nossa missão é valorizar esse olhar das crianças e dos adolescentes e colocar isso no centro do nosso processo, porque só assim faz sentido. Elas têm potência de fazer.”

Metodologia “Rodas de Aprendizagem” desenvolvida pelo Coletivo da Cidade (Foto: Madu Toledo)

E o que caracteriza a periferia para você? – a pergunto

Acho que duas palavras: resistência e potência. Aqui tem muita potência de vida, muita potência criativa, muita tecnologia avançada de sobrevivência.

“A narrativa que a gente tem é como se aqui só tivesse pobreza, violência e gente que é má e ruim ou então que somos formados de pessoas carentes disso e daquilo… aqui não tem gente carente. Aqui tem gente que sofre com o resultado de um Estado que é absolutamente negligente. Isso não é carência, é resultado de uma política intencional que favorece grupos em detrimento de outros.”

Qual é o papel do Estado?

 A advogada e ex-coordenadora do Núcleo de Desburocratização e Certificações da Sociedade Civil da Comissão do Terceiro Setor da OAB/DF, Janaína Rodrigues, explica que a relação entre o Estado e as Organizações da Sociedade Civil (OSCs) deve ser de parceria. Confira:

A vivência da pedagoga e coordenadora pedagógica do Coletivo da Cidade, Jackeline Correa de Sousa, revela, ainda, um outro lado da moeda. 

Na sua opinião a existência das OSCs revela algum tipo de falta de competência do Estado”  – perguntei a Jaqueline.

As OSCs e o nosso trabalho só existem porque o Estado falha em conseguir suprir essas demandas com os próprios equipamentos. A nossa existência revela que não estamos satisfeitos com esse modelo que é imposto pelo Estado – ela respira e continua – Tudo é político e não tem essa coisa de que não é intencional. Não é sobre incompetência. É sobre intencionalidade”, diz  Jaqueline.

O Governo do Distrito Federal (GDF), através da Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes), afirma que não é possível dissociar a atuação da OSC da atuação do GDF, uma vez que a primeira é parceira da segunda na prestação desse serviço, ou seja, o Coletivo da Cidade é um braço do Estado nesta oferta para a população. “Assim sendo, não há o que falar que um seja melhor que o outro, uma vez que a atuação ocorre em conjunto”, disse em nota.

Assista ao documentário “Do lado de cá”

Por Madu Toledo

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