Rotinas pressionadas: mães encaram machismo estrutural e jornadas exaustivas

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Sob inspiração das músicas “Vai Trabalhar Vagabundo” e “Ana de Amsterdam”

“Prepara o teu documento
Carimba o teu coração
Não perde nem um momento” — “Vai Trabalhar Vagabundo”, Chico Buarque.

Às 5h50, o último alarme toca — ‘tim, tim, tim’, e dessa forma Ana Caroline levanta e se prepara para mais um dia. Por precaução, ela já havia organizado algumas coisas na noite anterior, agora só faltava preparar seu café e acordar seu pequeno Théo. Como toda mãe coruja, Ana Carolina descreve o garotinho de 9 anos como lindo, forte, inteligente e apaixonante. Após tomar o café na correria, Carol, como ela gosta de ser chamada, olha o relógio novamente e vai conferir novamente se o filho e marido já estão prontos para as rotinas. “Sempre dou uma olhadinha para garantir que meu filho está limpinho e cheiroso. Fui ensinada desde cedo que nós, negros, precisamos estar sempre mais arrumados e transferi ao meu filho a informação.”

Ana Caroline da Silva Sérgio, 39 anos, trabalha com gestão de pessoas há 10 anos e  possui pós-graduação em psicologia organizacional. “Meu trabalho vai das 8h às 17h. Meu marido, que também é um homem negro, leva e busca nosso filho a escola, porém não está sempre envolvido em atividades como deveres de casa, cuidados em casos de doença e afins, mas ele é atuante na atividades domésticas”, diz. 

O casal se conheceu pela falecida rede social Orkut, quando Rodrigo ainda morava no Rio de Janeiro e, após eles se conhecerem pessoalmente, se apaixonaram. Era o destino batendo na porta, então logo passaram a morar juntos e construir sua família. “Hoje somos como toda a família negra, cheios de garra, buscando sempre por uma vida melhor”

Ana Caroline tenta expandir os horizontes em meio a uma rotina exaustiva. “Muitas vezes assisto às aulas dos meu cursos on-line enquanto faço a janta, depois ajudo Théo com os deveres de casa e aí finalmente, às 21h, fico mais tranquila, tomo meu banho, faço uma hidratação no black, leio um livro e de vez em quando até tomo uma taça de vinho. Todas nós merecemos esse tempinho depois de um dia corrido”.

Ana acredita que nunca se sentiu valorizada em nenhuma corporação em que trabalhou anteriormente. Nem como mulher negra nem como mãe. Em seu antigo trabalho, após os quatro meses de licença maternidade, foi desligada. “Sabia que a política da empresa era não manter mães pois existe alto índice de absenteísmo, no meu trabalho são previstos seis meses de licença e todo aparato para gestantes”.

Apoio

Como no caso da Ana Caroline, é comum as empresas não respeitarem os direitos garantidos, tais como a licença maternidade, e também a dupla ou tripla atividades da profissional que é mãe. Além das mulheres ficarem sobrecarregadas em casa, patrões chegam a ameaçar e pressionar as funcionárias. 

Segundo informações da Pesquisa Nacional por Amostra por Domicílio (Pnad) em 2023, as mulheres representam mais de 43 milhões dos trabalhadores ativos, e mesmo com essa grande presença, de acordo com dados do IBGE, a remuneração para mulheres no Brasil corresponde a 76,5% do que os homens ganham para desempenhar as mesmas funções. No resto do globo, o contexto é (infelizmente) similar, segundo informações do Fórum Econômico Mundial.

Um estudo realizado pela FGV-Rio, metade das mulheres são desligadas após a licença-maternidade, mesmo com o aumentos discursos sobre diversidade terem ganhado força nos últimos anos. A pesquisa teve o principal objetivo de entender a percepção do público feminino, foram 270 respostas e os resultados foram:

“Estudo realizado pela FGV-Rio – Arte: Birô/Uniceub

Machismo estrutural

A socióloga indigena Silvia Monice Muiramomi, 59 anos, explica que o machismo estrutural está intrínseco ao patriarcado, e parte da ideia de que o trabalho deve ser dividido por gênero, onde a posição de privilégio é dada ao gênero masculino e a de subordinação e submissão é relacionada às tarefas femininas. 

“Essas estruturas sociais machistas ainda resistem em 2024, mesmo com todos os avanços trazidos pela revolução industrial e a entrada da mulher no mercado de trabalho a partir da Segunda Guerra Mundial.  Embora a mulher seja a maioria predominante nas universidades brasileiras, os cargos de comando dentro das empresas e instituições, incluindo-se aí as instituições políticas como Congresso Federal e Ministérios Públicos, ainda são ocupados em sua grande maioria por homens”, diz a profissional.

Silvia também aponta visão social em relação a maternidade, sendo por parte de mães que possuem parceiros ou mães solo, uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas mostrou que até o final de 2022 mais de 15% dos lares brasileiros eram chefiados por mães solo, que em grande parte não possuíam quase nenhum apoio externo.

“Em ambos os casos, a mulher que decide pela maternidade, casada ou não, precisa contar com uma rede de apoio, seja ela familiar ou profissional, o que vai significar um acréscimo de peso ao orçamento familiar. Isso inclui a contratação de cuidadoras e babás ou pela opção de colocar em instituições como creches e escolas infantis.”

Direitos

Viviane Barroso, 41 anos, é mãe solo de três filhos: Clayssiane, de 21, Everton, de 19 e Adrian, de 10, e trabalha como diarista há 20 anos. Nascida e criada na ‘terra do pão de queijo’, em Acauã – Minas Gerais, veio para Brasília quando estava grávida de sua primogênita, em busca de melhores condições de vida, tanto para si mesma quanto para sua amada filha, que na época era apenas um neném dentro de seu ventre. “A parte mais difícil de ser diarista é que não tem muitos benefícios, principalmente em relação aos filhos. E o salário também é aquele negócio… tem que saber se organizar.”

Apesar de todas as dificuldades que já enfrentou por trabalhar para pessoas ruins que nem ao mesmo lhe deixavam comer junto a mesa, a diarista conta que se orgulha de sua história que foi construída com lápides de amor e muita dedicação .“Sobre ser valorizada, atualmente eu sei que sou. Trabalho na mesma casa há mais de 10 anos, comecei como babá e agora sigo como diarista, talvez seja pela conexão forte que criei com a família, mas sempre recebi muito apoio e liberdade dentro dessa casa.”

Com filhos para cuidar e uma casa para manter, ‘Vivi’, como é chamada pelos mais próximos, sempre trabalhou duro, acordando muitas vezes quando o sol ainda nem surgiu ao céu, mas mesmo com o cansaço da rotina, todos os dias ela agradece o que já conquistou — ‘Pai nosso que está nos Céus, nós conseguimos. Obrigada!’ 

“Arrisquei muita braçada
Na esperança de outro mar” — “Ana de Amsterdam”, Chico Buarque.  

A luta pelos direitos das mulheres é algo, e isso inclui as questões de direitos trabalhistas e de maternidade. O afastamento remunerado com licença da maternidade para CLT’s atualmente funciona da seguinte forma: 120 dias para parto; 120 dias para adoção de menor de idade ou guarda judicial para fins de adoção; 120 dias no caso de natimorto (morte do feto dentro do útero ou no parto) — sendo válido também para para mães não gestantes nos casos de união estável homoafetiva.

A advogada trabalhista  Marcelle Chalach explica que, mesmo as mulheres  diaristas que não possuem carteira assinada (e  que pagam o INSS) também possuem a licença de 120 dias de acordo com a lei. A especialista afirma que, apesar dessa garantia, muitas mulheres acabam não usufruindo de seus direitos, seja por ambientes de trabalho incorretos ou por não conhecerem as leis que garantem esses direitos.

Além do físico

A saúde mental, durante e após a maternidade, é um assunto muitas vezes negligenciado. A psicóloga Êdela Nicoletti,  de 42 anos, afirma que o processo de ser mãe é algo muito complexo e estressante, já que a mulher pode ser pressionada para lidar com todos os âmbitos em que atua, dentro ou fora de casa. “As crianças exigem muita atenção, e quando enfrentam problemas de saúde, demandam ainda mais tempo e energia. Muitas vezes recai sobre a mãe o papel de cuidar delas, o que pode ser extremamente exaustivo. Isso leva muitas mulheres a enfrentarem sentimentos de culpa, principalmente ao tentar conciliar carreira e maternidade.”

A profissional também aponta que pressão para “dar conta de tudo” pode gerar desgaste emocional, e, em alguns casos, até o desenvolvimento de transtornos como ansiedade e depressão. Para as mães, os desafios no trabalho são ainda maiores. Além da carga emocional e física de cuidar dos filhos, muitas vezes elas enfrentam ambientes que não reconhecem e respeitam suas responsabilidades familiares. Situações como longas jornadas de trabalho, falta de flexibilidade para ajustar horários quando os filhos adoecem, ou até mesmo a falta de uma política de licença adequada, são fatores que agravam o nível de estresse.  

“Desde o início, nada foi fácil. Fui expulsa da casa da minha tia por estar grávida, sem estudo, tive que ficar uns dias na rua, até encontrar alguém que me acolhesse e então comecei a trabalhar nas casas de outras pessoas, foi a maneira mais rápida de arrumar renda própria na época”, relembra Viviane as tristes cicatrizes do passado. Ela que sempre fez de tudo por todos, quando mais precisava foi largada ao mundo ainda jovem. “Só Deus sabe o quanto me dediquei até porque criar  três filhos sozinha, no Sol Nascente, não foi e nunca será fácil, eu criei eles bem e dou o meu máximo para continuar assim.”

Tendo em vista que grande parte dessas mães possuem um dupla jornada cansativa em suas rotina, Êdela afirma a necessidade de buscar por um equilíbrio, que apesar de ser difícil não é impossível. “Um dos principais aspectos é o autocuidado, que muitas vezes é negligenciado pelas mulheres. Priorizar momentos para descansar, relaxar e cuidar de si mesma é fundamental para manter a saúde mental. Outro ponto é o estabelecimento de limites claros entre o trabalho e a vida pessoal. Isso inclui saber quando desligar do trabalho para se dedicar à família e vice-versa, sem sentir culpa.”

Por Maria Fava
Sob supervisão de Luiz Claudio Ferreira e Gilberto Costa

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