Mulheres ampliam solidariedade e luta na Cidade Estrutural

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Mulheres se organizam para ajudar a comunidade na região que perdeu o Aterro Sanitário e passou a lidar com mais dificuldades.

Distribuição de alimentos para os moradores de Santa Luzia, na Estrutural. Foto: Malu Souza/Agência de Notícias UniCeub

Na rua sem asfalto, a comunidade tenta se organizar. Mulheres, crianças e homens, com baldes, carrinhos de mão e sacolas. No início da fila, um caminhão com a porta aberta próxima às caixas de engradado com frutas e verduras. Abacaxis, batatas, batatas doces, cenouras, abobrinhas e pepinos. Há pessoas de olhos fechados, outras olham para baixo. Na comunidade que tem nome de santa, eles rezam juntos o Pai Nosso.

Renata, uma dentre as líderes comunitárias femininas da comunidade, faz a distribuição de alimentos junto com o marido, filhos e três rapazes. A movimentação na fila começa. As mulheres com criança no colo aproximam-se. Enquanto isso, Ana Cristina Silva sai pelas ruas chamando mais pessoas para buscarem alimentos.

Em Santa Luzia, área de ocupação localizada na Cidade Estrutural, as mulheres são as principais líderes comunitárias. Elas se mobilizam para arrecadar itens básicos para as pessoas da comunidade, como roupas, alimentos, fraldas e, principalmente, água. Que, apesar de comum para quem vive nos espaços urbanos, é algo escasso ali.

 

Chão de cimento

Renata Guimarães é uma mulher branca, baixa, de cabelos claros e cacheados. Seu peso não chega a 50 kg. O rosto é tomado por sardas. Nasceu em Taguatinga e mora na Chácara Santa Luzia há 4 anos, com seus três filhos e esposo. Atualmente, trabalha como empregada doméstica para ajudar nas contas. A casa é diferente das que vimos pelas ruas sem asfalto, sem endereço e sem placa, foi construída pelo marido com materiais que receberam de doações. As paredes e o chão são revestidos com cimento e o telhado é de fibra com o mesmo material.


Localizado na última rua de Santa Luzia, o antigo lar de Renata, antes, era feito de madeirite. “Se chovesse, alagava”, recorda. O filho mais velho, Caio Vinicius, que tem problemas respiratórios, era internado com frequência por conta de crises de asma e bronquite. Na casa havia ratos, andavam em cima da comida, dos móveis e, até mesmo, da filha mais nova da líder, que dormia em um sofá velho.
Ao ver essa situação, Ana Cristina Silva (que também é líder comunitária do local) foi atrás de formas de ajudála. Entrou em contato com o Coletivo da cidade Estrutural que, prontamente, ofereceu os materiais necessários para construir sua casa.


“A Ana fez um vídeo meu, com telha voando, com a chuva molhando. Tudo ensopado e mandou para o coletivo porque ela tinha mais conhecimento. Eu não mexia ainda com doação. Aí eles pegaram e vieram aqui em casa, viram a situação que estava muito precária. Eles doaram 10 sacos de cimento e 250 telhas.”As 250 telhas que receberam eram muitas para eles. Precisavam só de 78. Sobrariam ainda 172. Então, optaram por distribuí-las pela ocupação. Assim, algumas pessoas receberam também. O marido dela nunca tinha feito obras, mas mesmo assim colocou a casa em pé para melhorar a vida e salvar a vida do filho.


Renata organiza, em meio às dificuldades, doações para a população da comunidade. Começou distribuindo algumas roupas que recebia de outras pessoas. Caio Vinícius contou para o professor de geografia que decidiu ajudar também. Assim, Renata iniciou seus “grupos de solidariedade”, onde ela recebe os pedidos dos moradores.

Hoje, a líder comunitária conta com dez doadores regulares que ajudam, como o caminhão de verduras e legumes que chega todo sábado, e com isso, ela é capaz de ajudar mais de 500 pessoas na comunidade. As doações não são capazes de suprir as necessidades de toda Santa Luzia, e para isso, Renata organiza seu grupo para ouvir mais demandas da população. Ela possui um caderno e visita a casa das pessoas para saber quem tem condições e quem realmente vai usar a doação para o próprio consumo.

 

“Sem água e luz, não tem voto”

Renata tem 31 anos e só votou uma vez. Diz que não acredita em política e, muito menos, em políticos. Nas últimas eleições, ela, o marido e um amigo do coletivo, colocaram em frente a casa uma faixa que dizia “Sem água e luz, não tem voto. Onde estão os políticos?”, pois a água encanada e a luz regulamentada lá não existem.

Moradores fazem protesto por não terem água nem luz na comunidade. Foto: Malu Souza/Agência de Notícias Uniceub


A população utiliza “gatos” para luz e poços artesianos, então a água, algo tão essencial, é escassa na comunidade. Renata tem o seu, mas nem todos tem esse “privilégio”. Em 2018, para suprir, minimamente, a falta de água para os moradores, a Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb) construiu um chafariz. Estrutura com caixa de água, que diariamente é abastecida por caminhões pipa.

Esse local que foi feito para ajudar a população, virou motivo de brigas. Moradores das proximidades do chafariz conectaram mangueiras para uso pessoal nas torneiras da estrutura, impossibilitando que outras pessoas utilizem também. Renata já presenciou ameaças com faca no local. A Companhia havia prometido que outra estrutura seria instalada, em outro ponto da comunidade, mas ficou apenas na promessa.

Procurada pela Agência de Notícias Uniceub, a Caesb disse em nota que está impedida legalmente de instalar infraestrutura básica em regiões não passíveis de regularização “O assentamento, localizado em área de proteção ambiental, não tem rede de água da Caesb e não compete à Companhia responder sobre o desabastecimento da região.”

 

Sorriso largo e cabelos molhados

Há alguns metros de Renata, mora Ana Cristina Rodrigues. Mulher de sorriso largo e gargalhada fácil. Ela nos recebe em um vestido rosa com detalhes de renda e cabelos molhados. Diz que se arrumou todinha para dar entrevista para o Esquina. Rapidamente convida a entrar na sua casa, sem nem perguntar nada antes.

No sofá, estavam assentadas espigas de milho, uma acelga, ou couve, e um gatinho branco com preto, que entre lambidas, dorme profundamente. Diferente da casa de Renata que é feita de cimento, a casa Ana se assemelha às outras casas vistas na comunidade, feitas de madeirite. Nas paredes, há quadros com fotos. No chão de cimento, garrafas de cinco litros com água que pegou de vizinhos para beber.

Ana não tem água em sua casa. Ela utiliza o acesso da vizinha para tomar banho. Cavou um poço artesiano recentemente, ganhou uma bomba de seu antigo chefe. Mas, o cano que faz a retirada da água caiu dentro do poço. Ela precisa de alguém que o instale novamente, mas não tem dinheiro para contratar quem o faça.

Ana Cristina é maranhense e nasceu em Passagem Franca (a 400 km da capital São Luís). Ao longo de sua vida morou em diferentes cidades. Rio de Janeiro, Aracaju e São Paulo. Com diferentes parentes. A mãe morreu durante o parto dela e de seu irmão gêmeo, que também faleceu, o que ela relata com dor.


Miss Catadora 2018

Antes de morar na Chácara Santa Luzia, onde está há três anos, ela tinha uma casa em outro local na cidade Estrutural. Ela explica que a justiça tomou e que foi uma advogada que a ajudou a conseguir seu cantinho na comunidade. Em sua antiga casa, ela começou o seu trabalho recolhendo doações e as distribuindo para quem precisa. “Eu pegava carne. Tinha uns saquinhos que eu lavava. Aí colocava na calçada e fazia uma fila de gente. Enchia com verdura também. O carro do frango vinha também.”

Ana Cristina foi catadora no antigo lixão da Estrutural, que foi desativado e se tornou local para depósito da Superintendência de Limpeza Urbana (SLU). Ela relembra com felicidade que participou do concurso Miss Catadora em 2018. A foto do momento está em sua geladeira, fixada com imã.

Hoje, Ana Cristina se sustenta com auxílios que recebe do governo e de bicos. Às vezes é chamada para ajudar na lavagem de uma lanchonete, outras vezes é chamada para fazer limpeza em casa de conhecidos. São as doações diárias que a matem. Doação de frango assado, galinhada, miúdos, pães, roupas e enxoval para gestantes.


“Não vem com negócio de política não”

Como Renata, Ana Cristina não se vê representada na política. Ela relatou que recentemente “um” a procurou, fez com que preenchesse uma ficha, pegou o contato dela e desapareceu.

“Eu não vou mentir pra tu. Eu tenho uma raiva tão grande de político. Minhas coisas não têm nada de política. Eu até queria um que me ajudasse aqui, teve um que veio aqui e queria conhecer todo mundo. Queria conhecer gente que ajuda. Chamei a Carmélia, chamei a Janaina. Falar é fácil.”

A comunidade é visitada com maior frequência em ano eleitoral, quando são prometidas coisas que precisam. Depois, somem.


Tijolo de brinquedo

Em meio a fila de frutas e legumes, estava a pedagoga Carmélia Teixeira, com um carrinho de mão com abacaxis. Iria fazer suco e sobremesa para uma ação social voltada para mulheres, uma roda de conversa para dependentes químicos e quem sofre com violência doméstica.

Por enquanto, ela mantém um almoço para os moradores aos sábados, e as ações sociais ocorrem sempre que recebe doações, mas o maior sonho é inaugurar a creche para ajudar as mães da comunidade. A creche Guerreiros da Alegria já possui espaço físico, mas precisa de doação de alimentos para funcionar regularmente. A previsão é que funcione durante meio período, em junho de 2022.

A ideia dela é que, com a creche funcionando, as mães tenham oportunidade de trabalhar para sustentar a família e o projeto vai ser gratuito. “Ai vocês me perguntam, eu vou trabalhar de graça? Sim, eu tô desempregada, então eu vou dar meu amor, meu carinho, meu afeto.”

Nascida na cidade de Natal (RN), Carmélia Teixeira disse que tinha tudo para ser uma pessoa amargurada, pois a mãe sofreu depressão pós-parto e a rejeitou.

 

“A favela merece respeito”

Líder comunitária, Carmélia disse que recebeu ajuda de um colega missionário para a construção da creche, e também contou que os políticos só a buscam para marcar reuniões com mais de 100 pessoas para tentar arrecadar votos, ao invés de a ouvir para saber o que a comunidade precisa.


CHÁCARA SANTA LUZIA

A Chácara Santa Luzia é uma ocupação localizada na Cidade Estrutural, próxima ao antigo Lixão e que, hoje, é uma Unidade de Recebimento de Entulhos (URE) do Serviço de Limpeza Urbana (SLU). A área está situada na faixa de tamponamento do Parque Nacional de Brasília e, de acordo com a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (SEDUH), não é passível de regularização.

Segundo levantamento da Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal (Codhab), há, aproximadamente, três mil famílias que moram na Chácara Santa Luzia. E, de acordo com dados extra oficiais, calcula-se 10 mil famílias. Por viverem em área considerada irregular, o governo não executa serviços de infraestrutura, ou seja, essas famílias vivem em meio a ruas sem asfalto, sem acesso à água encanada ou própria para consumo, saneamento básico e luz elétrica.

A administração da Cidade Estrutural argumentou que faz serviços paliativos. “O setor Santa Luzia é uma área irregular na Estrutural, está localizada na área de tamponamento do Parque Nacional e existe uma Decisão Judicial, Ação Civil Pública n°. 2015.01.1.057 e só poderemos entrar com a infraestrutura após a finalização desta ação. O que a Administração tem feito são serviços paliativos e estamos em processo de levar para a região atendimentos de alguns órgãos do governo, para facilitar e auxiliar.”

Enquanto isso, as mulheres organizam a fila para que as pessoas da comunidade possam se alimentar, serem vistas e, principalmente, sobreviver.

Por Ellen Travassos e Malu Souza
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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