Essa semana fiz o cadastro de biometria facial para entrar na minha própria casa. Não preciso mais de chave, nem de senha, nem chamar o porteiro. Só meu rosto. Eu olho para a câmera e a porta se abre, como mágica — ou como num desses filmes futuristas. Ainda não me acostumei: sempre sorrio e digo “obrigada”. Não sei se por educação ou por medo de que a máquina fique ofendida e me deixe do lado de fora.
Fiquei pensando no porteiro. Ele, que por tanto tempo foi o guardião das entradas e saídas, agora é coadjuvante de um sistema que reconhece rostos, mas não reconhece pessoas. Por trás dessa eficiência tecnológica, há uma cadeia de mudanças invisíveis: empregos que desaparecem, funções que se tornam obsoletas.
Me perguntei: quem cuida desses dados? No Brasil, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), em vigor desde 2020, define que dados biométricos — como rosto, íris, digitais e até a palma da mão — são dados sensíveis e exigem consentimento explícito para serem coletados e tratados. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) é o órgão responsável por fiscalizar e regulamentar o uso dessas informações, mas o desafio é acompanhar o ritmo frenético da tecnologia.
Lembrei do vídeo que viralizou em junho de 2024: a influenciadora Marina Guaragna mostrando como, na China, é possível pagar compras apenas com a palma da mão. Sem carteira, sem celular, sem senha. Só a mão, como quem cumprimenta a tecnologia e, de quebra, paga o supermercado. A cena parece ficção científica, mas é presente. E o futuro? Já podemos sair de casa apenas com o corpo — rosto, mão, dedo — e ainda assim consumir, circular, abrir portas.
No fim de semana, fui ao clube. “Senhorita, pode encostar o carro? Vamos cadastrar sua biometria facial.” Lá estava eu de novo, frente à câmera. E de presente, também me pediram o dedo — da mão esquerda, claro, que sai da janela do motorista. A vida virou uma sucessão de pequenos cadastros. Agora, na próxima visita, basta olhar, encostar o dedo e, como num passe de mágica, a cancela vai se abrir. Não faço mais carteirinhas: faço biometrias. Mas cada dado entregue é um voto de confiança cega — nem sempre consciente — em sistemas nem sempre transparentes.
Vejo trabalhadores registrando seus próprios desaparecimentos em vídeos tristes. Uma funcionária de supermercado, diante de caixas de autoatendimento, desabafou: “Aos pouquinhos eu vou perdendo meu emprego”. Disse com a voz baixa, como quem já sabe o desfecho. Eu mesma ainda não me acostumei. Continuo sorrindo para a câmera e dizendo “obrigada”, talvez como lembrete de que, no fim das contas, ainda sou humana.
Por Isabele Azenha
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira