A discussão sobre a influência digital e a proteção da infância voltou a ganhar força depois que o influenciador Felipe Bressanim Pereira, o Felca, publicou o vídeo “Adultização” em uma rede social, em agosto deste ano.
O conteúdo já tinha 51 milhões de visualizações até novembro de 2025 e denuncia a exposição de crianças e adolescentes em situações sexualizadas nas redes sociais.
O caso que mais repercutiu envolve um influenciador chamado Hytalo Santos, de 28 anos, e Kamylinha, hoje com 18, que fez parte da chamada “Turma do Hytalo Santos”.
Segundo o vídeo de Felca, ela produzia conteúdos com teor adultizado desde os 12 anos. A repercussão do vídeo de denúncia, que durou cerca de 50 minutos, gerou um efeito cascata na mídia, e estimulou discussões sobre exploração infantil, erotização precoce e a responsabilidade das plataformas digitais.
Não por acaso, depois da repercussão do vídeo, as denúncias de abuso contra crianças cresceram 114%. Mas, para além da denúncia em si, o caso também evidenciou o papel da mídia e dos criadores de conteúdo na potencialização de debates sociais, por meio do agendamento, especialmente no que diz respeito a temas de grande vulnerabilidade.
Nos dias que seguiram à publicação do vídeo, ficou evidente o alcance da influência de Felca. A denúncia passou a pautar a grande mídia, mobilizou autoridades governamentais e levou especialistas a se posicionarem. E, em pouco tempo, um episódio que parecia restrito à internet se transformou em pauta de interesse público e em tema de discussão política sobre a proteção da infância online.
A partir do ocorrido, é possível interpretar que o caso é um exemplo da lógica contemporânea de produção de pautas e na formação da agenda midiática, em que, um assunto repercute inicialmente nas redes sociais, e em seguida, é captado por influenciadores para, só então, entrar nas redações tradicionais. Isto é, os jornalistas passaram a observar o que está “viralizando” nas mídias, para repercutir o assunto por meio das notícias e gerar engajamento, o que difere do fluxo tradicional de produção da notícia, no qual os veículos decidiam o que era noticiável com base em critérios de noticiabilidade. Sob essa ótica, fica em evidência a mudança sobre o que se torna notícia e sobre quem coloca temas em circulação. Atualmente, o fenômeno é visto como “híbrido” e combina a força dos algoritmos com o olhar editorial das redações.
O processo em que o jornalista deixa de ser o criador exclusivo da pauta para se tornar um curador do que já circula é o que o pesquisador australiano Axel Bruns chama de gatewatching, que se opõe ao gatekeeping, modelo clássico em que o profissional da imprensa atua como guardião dos “portões da informação”, decidindo o que entra e o que fica de fora.
No gatewatching, os jornalistas passam a observar o que está em alta entre o público, para aprofundar e transformar em notícia. Bruns define o gatewatcher como aquele que “vigia os portões” para destacar o que o coletivo da internet já acha relevante. Ou seja, em um ambiente onde a informação se espalha antes mesmo de ser checada, o valor do jornalismo passa a estar menos na exclusividade e mais na interpretação e na credibilidade.
Logo, mesmo que o assunto surja online, a mídia tradicional ainda é quem detém o poder de legitimar e massificar um tema. Enquanto nas redes sociais um tópico pode atingir nichos específicos, é a imprensa tradicional que transforma esses assuntos em uma pauta geral, que o insere na agenda do público. No momento em que o tema “entrou no Jornal Nacional” ou “virou manchete na Folha”, por exemplo, é quando o debate passa a ser reconhecido como parte da esfera pública oficial.
Diante desse cenário, é possível dizer que a viralização do vídeo de Felca não foi um acidente. Pelo contrário, ela seguiu uma lógica que hoje estrutura o debate público, onde conteúdos que provocam indignação moral e geram identificação tendem a se espalhar com uma velocidade difícil de acompanhar.
A partir desse ponto, o debate deixou de ser apenas sobre a lógica da viralização. O que se viu foi um deslocamento do tema para outras esferas da sociedade: especialistas passaram a se manifestar, órgãos públicos emitiram notas e tanto o Congresso quanto o governo começaram a discutir medidas específicas de proteção à infância no ambiente digital. Ou seja, a denúncia de Felca não apenas mobilizou a opinião pública, ela também fez pressão para que as instituições respondessem.
Esse é o momento em que casos que nascem nas redes sociais deixam de integrar apenas o ciclo da indignação e começam a produzir efeitos concretos. E no debate sobre a adultização infantil, a repercussão gerada pelo vídeo impulsionou discussões que, em apenas um mês, resultaram na promulgação da Lei nº 15.211/2025, conhecida como “Lei Felca”, que foi criada para regulamentar mecanismos de proteção digital para crianças e adolescentes.
E a partir do momento em que o fenômeno deixou de ser midiático e se tornou sociopolítico, passamos a entender o impacto da interação entre influenciadores, mídia tradicional e Poder Público na construção das agendas atuais.
Resta lembrar que, embora o vídeo de Felca tenha reacendido o debate, a pauta não é novidade. A discussão sobre a adultização infantil sempre esteve presente entre especialistas e órgãos de proteção, mas raramente alcançava o centro do debate público.
Mesmo com relevância social, temas mais técnicos e sem porta-vozes amplamente reconhecidos dificilmente conseguem romper a bolha especializada, vide a mobilização pela revogação da lei de alienação parental.
O episódio revela, portanto, um jornalismo que acompanha, amplifica e legitima o que nasce na internet, mas também uma sociedade que só reage quando a mensagem encontra o mensageiro certo.
Por Bruna Teixeira e Nathalia Queiroz
Supervisão de Katrine Boaventura


