Sentada na borda da sacada, ela segura o celular com uma mão enquanto acende o cigarro de palha com a outra. Os longos cabelos escorrem ao lado do rosto magro e anguloso. Uriellen, de 28 anos, é travesti, moradora de Riacho Fundo 2 e, até 2020, apresentava-se como performer em eventos. Membra do coletivo artístico Culto das Malditas, costumava viver do dinheiro que fazia sob as luzes néon dos bares, clubes e baladas do Distrito Federal. Uriellen é uma das artistas que entendem que o papel artístico é uma postura de resistência que podem ter nesse momento de intolerância.
Com as dificuldades provocadas pela pandemia da covid-19, teve que dar uma pausa nas apresentações artísticas. Hoje, ela trabalha como atendente em uma rede de lojas de artigos esportivos em shopping center de Brasília. Entre as tragadas do cigarro, ela explica com olhos fascinados que ser parte do coletivo artístico significa ter força para enfrentar as demonstrações de agressividade em um país de posturas violentas dentro de casa ou no meio da rua.
“Nós somos malditas porque nos colocam como malditas. Esperam que nós sejamos malditas. Então, ao invés de a gente aceitar essa ‘maldição’ como uma coisa ruim, a gente devolve essa maldição como algo maior e mais forte. Porque é sobre a nossa existência, é sobre o que a gente é”, explica a artista. Uriellen ainda compara as agressões verbais a pedras atiradas. “A galera espera que a gente sempre receba as pedradas deles, mas a gente tá aqui pra pegar essas pedras e fazer a nossa fortaleza”.
A “fortaleza”, que é o Culto, nasceu como parte da casa de Ballroom em um contexto de resistência, ainda em 2016, durante a ocupação da Funarte, em Brasília, contra o que as pessoas entrevistadas para esta reportagem chamam de desmonte do Ministério da Cultura. Desde então, o número de participantes diminuiu de 15 pessoas para quatro, mas as performances não pararam. Somente em março de 2020 o grupo entrou em um hiato forçado devido ao novo coronavírus.
As apresentações do coletivo, claro, não foram as únicas interrompidas no período.
Elasticidade
Em cima do salto das botas de couro, as miçangas brancas e douradas da roupa balançam perante os movimentos precisos de Lee Brandão. Com um batom preto impecavelmente aplicado, a artista de 28 anos move os braços e pernas em exata sincronia às batidas da música “YoYo”, da também drag queen Gloria Groove, até finalizar com um espacate tão natural que me faz questionar a minha própria falta de elasticidade.
Quando menciono o fato, a voz do outro lado da tela me responde de forma ao mesmo tempo soturna e bem-humorada: “Ah, aquilo lá tem tempo. Nem sei mais se consigo. A pandemia deixou a gente com uns quilinhos a mais”.
O vídeo do espacate rodeado por uma multidão em polvorosa é de fevereiro de 2020. O homem que senta à minha frente, barbado e de cabelo curto, com uma única mecha platinada, me parece diferente nas expressões quanto semelhante nas feições da pessoa que assisti performar no vídeo havia alguns momentos.
Brandon Lee Gomes (alter ego de Brandão) é uma pessoa com nanismo, mora em Ceilândia (DF) e trabalha como drag queen em tempo integral há 2 anos. Não começou há tão pouco tempo: já se monta desde 2014, mas o fazia por hobby até, por “um erro do INSS”, parar de receber o Benefício Assistencial à Pessoa com Deficiência (BPC).
Ele decidiu, então, tentar a vida exclusivamente na arte. Pelo menos, até que essa pendência específica fosse resolvida. O grande problema, porém, é que, poucos meses depois, uma pandemia de escala mundial acabou com o que era, assim como para Uriellen, uma de suas principais fontes de renda: as casas de show da capital do país.
A diferença principal das duas histórias, porém, está no suporte de recursos financeiros. Lee Brandão tinha contatos profissionais, algo que a garantiu parcerias e apoio monetário durante o recente período de estiagem de trabalhos.
De Brandon a Brandão
Brandon Lee Gomes costumava trabalhar como professor de dança antes de assumir o manto de Brandão. Fazia bicos como bailarino de artistas brasilienses, o que acabou o levando a dançar, também, no palco de diversas drag queens da capital.
Com o tempo, sua curiosidade foi atiçada. Decidiu tentar se montar pela primeira vez em uma festa de Halloween, história semelhante a diversos relatos de drag queens de primeira viagem; e assim o fez no que, na época, era a maior balada LGBTQIA+ do Distrito Federal.
Gostou do sentimento e decidiu continuar se montando. Dessa vez, com pretensões profissionais. Mas nem tudo foram flores. Por ser uma pessoa com deficiência da periferia, sentiu dificuldades em arranjar trabalhos. Pelo menos, no começo: “Eu mandava mensagens na época, imensas, dizendo ‘eu queria tanto’ e tudo mais, e [os produtores] respondiam ‘ai, vamos ver’. […] Nesse início, eu acho que eu consegui fazer umas oito performances ao todo em Brasília”.
A sorte dela mudou quando algumas de suas performances na boate Capital Club ganharam notoriedade, o que a levou a ser chamada para um evento em São Paulo (SP). A partir desse evento, portas se abriram: foi convidada também a se apresentar no “Programa do Ratinho” (SBT), passou a ser figurinha carimbada da Blue Space (uma das mais tradicionais casas noturnas da capital paulistana) e criou laços com figuras da cena drag brasileira, como Silvetty Montilla.
Lee focou, por um tempo, em ser uma “drag humorista”. Com o olhar distante, recorda que o fato de ter uma deficiência a incentiva em seus shows: “Eu queria que as pessoas rissem comigo, e não de mim. […] Se tiver que ficar só de sutiã e short lá, a gente faz, para as pessoas irem normalizando um corpo deficiente”.
Por pouco, não se radicou em São Paulo. O problema com o Benefício Assistencial à Pessoa com Deficiência (que depois foi resolvido) a forçou a retornar para a maior cidade do Centro-Oeste; e passar a ter o trabalho como drag queen como principal fonte de renda.
O tempo em São Paulo, porém, não foi infrutífero. “Quando eu voltei a Brasília, as portas já estavam bem mais abertas (…)Eles falavam ‘a Lee Brandão, que foi no Ratinho, sabe?’.”
Foi justamente essa notoriedade que a ajudou a segurar as pontas em 2020: mais conhecida, recebeu um convite do Itaú Cultural para participar de uma mostra com outros influenciadores com deficiência, e teve a capacidade de organizar uma série de lives e eventos virtuais com outras drag queens para manter as contas pagas.
Falta de suporte
De outra forma, a travesti Uriellen teve de parar de trabalhar com a arte para se manter durante os anos de 2020 e 2021. Sem conexões com grandes empresas, ela voltou a morar com os pais durante a pandemia e parou de se apresentar para buscar um trabalho considerado mais tradicional.
Mesmo assim, Uriellen ainda pode se considerar sortuda por ter uma casa dos pais para retornar: já é senso comum que uma quantidade absurdamente alta de jovens LGBTQIA+ são expulsos do lar devido às suas sexualidades ou identidades de gênero, mesmo que a falta de dados oficiais cause dificuldades em mensurar o número exatos de casos.
Dessa forma, muitos membros da comunidade acabam tendo que buscar casas de acolhimento ou mesmo outras pessoas LGBTQIA+ para conseguirem locais onde dormir, comer ou, simplesmente, receber alguma espécie de afeto.
Cinthia Santos, travesti, de voz suave e firme, pele preta e um claro interesse por política, é membra também do Culto das Malditas e uma das pessoas que acolhem em suas próprias casas indivíduos queer em situação de vulnerabilidade. Cinthia tem apenas 20 anos, mas é voguer, performer, produtora cultural, trabalha na empresa audiovisual “Olhos Abertos” e é gerente do estúdio de tatuagem “Convés Tattoo”, no Guará. Com um suspiro cansado, me admite de dentro de uma sala de edição escura que não é incomum começar a trabalhar às 7h e terminar somente às 23h.
Acima de tudo, Cinthia é também o que ela chama de ‘Tia’ no grupo de vogue Kza Maldita, da qual o Culto das Malditas faz parte. Para entender o que isso significa, porém, é necessário primeiro entender que papel essas ‘casas artísticas’, por assim dizer, cumprem na cena brasiliense.
A Kza Maldita
A cultura ballroom, na qual os grupos de vogue se inserem, nasceu na Nova-York na década de 1960, criada pela comunidade LGBTQIA+ negra e latino-americana como forma de expressão artística e ocupação política.
Desde então, sua popularização e inevitável comercialização a tornaram tema de documentários, filmes e séries, tais como o ganhador do Oscar Paris is Burning e a premiadíssima série Pose, da emissora FX.
Uma mistura entre um baile e uma competição, o ballroom é um evento em que indivíduos se reúnem e performam para disputar em diferentes categorias, como desfile e dança vogue. Normalmente, os vencedores de cada uma dessas categorias leva para casa troféus e uma certa quantidade de dinheiro, muitas vezes juntado por meio de vaquinhas entre os participantes.
Dentro desses eventos, formam-se o que são chamadas “Casas de Vogue”. Ao contrário do que o nome pode levar a pensar, estão longe de serem espaços físicos: são redes de suporte formadas por indivíduos que se apresentam nesses ballrooms, oferecendo abrigo, afeto e a possibilidade de se expressar artisticamente a pessoas que, por serem quem são, muitas vezes se vêem lançadas em situações de vulnerabilidade.
Essas redes de suporte não são particularmente institucionalizadas, também são grupos de pessoas que, vendo a necessidade de outros indivíduos na cultura ballroom, decidem abrir suas portas para acolher. “A gente passa a criar esses movimentos em que as que tem uma residência em que é possível acolher acolhem as que não tem uma residência”, afirma Cinthia.
A necessidade de abrigo não se faz presente somente naqueles deserdados pela família. “As pessoas […] passam por situações de violência absurdas em casa, mas elas não podem se livrar porque como que elas vão comer? Onde elas vão dormir?”. Assim, não é incomum que o suporte oferecido por essas ‘casas’ se manifeste como uma possibilidade de se escapar da violência familiar.
As ‘casas de vogue’ tendem a se estruturar como famílias. A chefe da casa, denominada ‘mãe’, provê e ajuda seus ‘filhos’ e ‘filhas’, os acolhidos. Contudo, ela não é a única do grupo com responsabilidades. “Todas trabalham para manutenção da casa, como comprar comida para todo mundo, como manter [os espaços] limpinhos e organizados, e isso dentro de várias maneiras. É sobre acesso à saúde, é sobre acesso à cidade, é sobre acesso a ser quem é”.
Por vezes, outras posições também são criadas dentro da “hierarquia familiar” das casas. Cinthia, por exemplo, é conhecida como a Titia Maldita: após a ‘mãe’ da Kza Maldita ter de se afastar da administração do grupo por motivos pessoais, ela tomou a decisão de tomar essa responsabilidade para si, mas optou por se autodenominar ‘Tia’, em respeito a sua predecessora.
Uma vez melhor estabelecidos, os membros da Kza passam a poder se apresentar nos balls, podendo ganhar com a sua arte prêmios finais que muitas vezes se provam valiosos. “Muitas balls têm prêmios em dinheiro, e esse dinheiro salva vidas mesmo. Tem pessoas que não sabem como vão comer na semana seguinte, participam de uma ball, ganham o Grand Prize, que é um dinheiro […] que já ajuda muito para já terem uma ideia de como vão conseguir se alimentar”.
Pergunto a Cinthia quanto costumam ser esses prêmios. “Nunca vi um que passe de R$ 100”. Até o momento em que esta reportagem foi escrita, a média nacional do preço de um botijão de gás de cozinha, por exemplo, estava em R$ 98, de acordo com um levantamento realizado pelo Observatório Social da Petrobras (OSP).
Os coletivos
Se a cena de ballroom já tem, naturalmente, as ‘casas de vogue’ para fornecer suporte, a cena drag apresenta entidades mais politicamente bem-estabelecidas: os coletivos drag.
Criado em 2017, o Distrito Drag é um dos coletivos com maior destaque na capital federal. De acordo com a página “Quem somos?” de seu site oficial, o coletivo é “um espaço de auto-organização e auto-formação de artistas”, mas suas ações apontam um papel maior que esse. Converso com Ruth Venceremos, uma das drag queens por trás do coletivo. Quando pergunto quantos anos ela tem, recebo um “artista não tem idade, querido”; com a exata quantidade de descontentamento na voz para que eu ache a resposta charmosa. Ao contrário das outras artistas que entrevistei, Ruth não costuma atuar como performer: é uma comunicadora, utilizando da arte drag para educar sobre mensagens políticas e sociais.
Ela me conta que o objetivo inicial do coletivo era potencializar a cena drag do Distrito Federal de uma forma que mantivesse um vínculo forte com pautas pertinentes à comunidade LGBTQIA+, mas que o coletivo não se limita a isso.
“No início, a gente debatia muito, querendo saber quem nós éramos enquanto coletivo. […] E no fundo, a gente pensou ‘cara, a arte é também um posicionamento político’. Então não dava pra a gente falar sobre a arte drag sem ter o cunho social, sabe?”.
Assim, além de organizar projetos e eventos de promoção à arte LGBTQIA+ no geral, como o Fest Drag (evento cultural anual com mostra audiovisual, mostra competitiva, shows musicais e Talk-Show), o Distrito Drag também é responsável por organizar uma série de iniciativas sociais, como o Fundo de Apoio Emergencial a Artistas LGBTQIA+ do DF em situação de vulnerabilidade.
Há casos em que as duas missões do coletivo se casam. O Calendrag, um dos projetos mais conhecidos do Distrito, é, como o nome dá a entender, um manifesto artístico em forma de calendário, com várias drag queens e artistas da comunidade fotografados.
Ao mesmo tempo, porém, é mais que isso: ao ser vendido, parte da renda do calendário é direcionada para instituições que também têm trabalho voltado à comunidade LGBTQIA+. “Nesses anos todos de calendário foram mais de 30 mil reais, que nós já doamos para pelo menos quatro entidades”.
No entanto, com a ascensão da pandemia do novo coronavírus, o Distrito Drag se viu forçado a focar suas ações no controle de danos: com a quantidade de artistas que se viram subitamente sem uma fonte estável de renda, o coletivo precisou lutar pela simples subsistência dos que precisavam, deixando a promoção da arte, tão importante para a sua criação, em segundo plano. Daí surgiu, por exemplo, o já mencionado Fundo de Apoio Emergencial, criado para ajudar indivíduos da comunidade afetados pela pandemia. Além disso, passaram a realizar ações de arrecadação e distribuição de cestas básicas e estabeleceram parceria com o Conselho Regional de Psicologia do DF (CRP DF), visando oferecer apoio psicológico àqueles que, em decorrência da quarentena, precisavam.
Os esforços do coletivo trouxeram frutos: no ano de 2020, o Distrito Drag foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) por meio de uma seleção para o edital Nas Trilhas do Cairo, projeto que apoia o trabalho de instituições que se dedicam à promoção dos direitos humanos.
“Essas ações fortaleceram o Distrito Drag, mas fundamentalmente elas contribuíram para qualificar a própria comunidade LGBT” explica Ruth. Ela me conta ainda que, aos poucos, o coletivo tem também retomado a sua capacidade de articulação política e cultural. O Calendrag de 2021, por exemplo, teve seu evento de lançamento no dia 10 de novembro deste ano.
Apesar de ser um dos mais conhecidos, o Distrito Drag está longe de ser o único coletivo de drag queens da capital, cujos números parecem ter crescido exponencialmente nos últimos anos. Observo Bonnie Butch falar, a camisa amarela combinando com o cabelo platinado e com os óculos de hastes grossas. A drag queen de 27 anos, auto-intitulada “a primeira drag sapatão”, é responsável pela recente criação do coletivo Quebrada Queen, focado em fomentar a arte e dar suporte a artistas transformistas das periferias do Distrito Federal. Natural de Ceilândia, Bonnie era DJ nas boates de Brasília, e viu a necessidade de um novo coletivo surgir durante a pandemia, para dar auxílio aos artistas de regiões periféricas do DF.
A falta de oportunidade que aflige esses indivíduos, contudo, é algo que já vinha de antes da chegada do coronavírus: “Algumas pessoas viam que a gente era da periferia e começavam a não dar tanto crédito, não dar visibilidade pros artistas. E a periferia é um celeiro de artistas”.
Assim, o Quebrada foi criado como uma forma de criar novas oportunidades, trazendo mostras artísticas, oficinas culturais e projetos sociais, como a Gaymada (série de jogos competitivos de Queimada, organizados com o intuito de arrecadar agasalhos e alimentos para os meses mais frios), para os bairros menos abastados da capital.
Segundo Bonnie, porém, as atividades do recém-criado coletivo estão apenas começando: “Infelizmente, devido à situação de aglomeração, a gente não podia fazer tanto. Então a gente planejou muita coisa pro ano que vem”. Dentre os eventos que estão por vir, a artista destaca a criação de um bloco de carnaval e a organização de diversos eventos culturais, todos na Ceilândia.
Ambos os coletivos trabalham em parceria: O Quebrada Queen foi criado com a ajuda do Distrito Drag. “O Distrito, quer queira ou não, foi a porta de entrada para a gente começar a fazer, tanto que o próprio Distrito estava presente na nossa primeira oficina”, afirma Bonnie.
Ruth e as drag queens do Distrito Drag, então, atuam majoritariamente no Plano Piloto, enquanto Bonnie e as artistas do Quebrada Queen estão se estabelecendo para complementar o trabalho em bairros do subúrbio. Além deles, diversos outros coletivos, drag ou não, têm se esforçado para que os artistas brasilienses consigam persistir perante as diversas dificuldades que os atingem como membros da comunidade LGBTQIA+.
A importância fica, então, no trabalho em conjunto. Ruth me conta que, para que a arte não só sobreviva mas floresça, é necessário que os artistas passem a trabalhar uns com os outros.
“Chega de a gente pensar na dimensão artística e cultural como uma dimensão apenas do artista, aquele ser iluminado que produz a sua arte sem conexão com os outros. A gente precisa ajudar a fomentar cada vez mais processos que sejam coletivos”.
As palavras de Ruth parecem ressoar, inclusive, em todas as conversas que tive. Para Uriellen, Lee, Cinthia e Bonnie, também, a resposta parece ser caminhar juntas. Não se sobrevive a um ambiente hostil só. A coletividade, enfim, parece ser o que irá fazer a arte prosperar novamente.
Por André Viana
Supervisão de Luiz Cláudio Ferreira