“Vendo tudo tão risonho, achei Ceilândia tão bela, e se ela nasceu de um sonho, meus sonhos nasceram dela”. Cabelos acinzentados cobertos por um chapéu, camiseta branca, calça preta, chinelo nos pés. Foi assim que o poeta e repentista Donzílio Luiz de Oliveira, 83 anos, recebeu a reportagem na Casa do Cantador, local onde ele venera e considera o segundo lar. O espaço fica em Ceilândia (região administrativa mais nordestina do Distrito Federal). O cantador traz a tiracolo a viola e o matulão (bolsa) que carrega. Instrumentos de prosa fácil, mas em rimas ricas dos versos repentistas. À espera de uma contribuição no chapéu, artistas como ele criaram na cidade rotinas culturais agrestinas e sertanejas em pleno Centro-Oeste. Poesia popular refinada e rimada já com identidade ceilandense.
Nascido em Itapetim (PE), a 385 quilômetros do Recife, o repentista veio para a capital do país buscando melhores condições de vida não só para si, mas também para a família. A esposa e o filho, de apenas quatro anos, vieram logo após ele se estabilizar. O repentista chegou a Brasília em 1968, onde foi chamado para trabalhar na construção civil pela companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap). Morou durante três anos na Cidade Livre, atual Núcleo Bandeirante. Passado esse tempo, o poeta teve que seguir um novo rumo.
Donzílio Luís from Jaqueline Amanda on Vimeo.
Donzílio era um dos candangos que estava presente em março de 1971, quando Ceilândia foi inaugurada. “Aqui era só pó e terra, nem cascalho tinha, nos colocaram para morar aqui e disseram: ‘te vira’, e assim as famílias foram se abrigando, construindo os barracos com tábuas velhas, que vinham das localidades esquecidas da capital, e com orgulho eu digo que vi a cidade crescer, construindo a identidade de Ceilândia”, lembra.
Desde muito novo, o artista já trabalhava para ajudar no sustento da família. Segurava a enxada e saía para labutar com o irmão mais velho, Zé Luiz. Juntos, os irmãos faziam rimas para o trabalho ficar mais distraído. O repentista mal podia imaginar que a brincadeira o tornaria, futuramente, bastante conhecido nesta categoria. “Depois de um dia de suor, chegava em casa, pegava um papel e começava criar as rimas e assim fui descobrindo no que sou bom, porque ser repentista é um dom”, comenta. O artista não tem vergonha de expor o amor pelo trabalho. “Meu amor pelo repente sobreviveu por décadas. Tenho mais de oitenta anos, sou aposentado, mas continuo firme e forte como repentista”, o artista.
Aposentado desde 1998, seu Donzílio é o atual presidente da Associação Dos Repentistas (Acrespo), localizado no mesmo prédio da Casa do Cantador, em Ceilândia. Venceu a eleição por duas vezes consecutivas e exerce há cinco anos. “Luto para que a nossa cultura seja conhecida por toda a Ceilândia. Essa é minha missão como representante dos repentistas”, avalia. O artista quebrou paradigmas. Apesar de ter apenas o ensino fundamental, já escreveu e publicou onze livros, e está prestes a lançar mais um, intitulado “Viagem através dos livros”, o qual reúne e comenta as publicações que o serviram de inspiração.
“Pra dar lugar às canetas
E os garranchos passaram
Das roças às cadernetas
Quem rachou os calcanhares
Foi aos grupos escolares
A procura dos anéis
Quem na terra deixou riscos
Passou a deixar rabiscos
Sobre as pautas dos papeis”.
(Poema retirado do primeiro livro, ganchos e arranjos publicado em 1996)
Mesmo com o grande número de publicações, Donizílio afirma não ter apoio de editoras, mas escreve mesmo assim porque “ser escritor não é uma forma de ganhar pão, mas sim amor pela literatura e pela cultura”. Para publicar um livro o repentista gastou cerca de R$ 5 mil em cada publicação, e apesar do montante gasto, não obteve o retorno financeiro estimado, mas não reclama. “Me sinto bem, quero mostrar a cultura de onde eu vim, quero que as pessoas me leiam, sem nada em troco, recebo um dinheiro ali, um acolá, mas nunca supriu o que eu já gastei’, explica o artista.
Dons
O paraibano Geraldo Queiroga, 59 anos, nascido em Sousa, já trabalhou como garimpeiro, agricultor, comerciante. Hoje se define como “poeta repentista”. O cantador experimentou muitas profissões antes de sua total exclusividade à arte. Somente aos trinta anos dedicou-se exclusivamente à cultura nordestina. O poeta só percebeu que tinha habilidade para a cantoria quando um grupo de repentistas se apresentava. Logo veio o interesse pela rima cantada. “Meu pai viveu 60 anos como cantador e eu nunca tinha me interessado. Só depois de velho que percebi que tinha herdado dons do meu pai”, explica.
Ouça poema
Hoje Geraldo é um dos repentistas que lutam para manter essa cultura viva. “A diversidade existe, as novas culturas estão hoje bem representadas na cidade, mas nós queremos o nosso espaço, pois queremos passar para os mais jovens, a cultura viva do nordeste na Ceilândia, para que essa tradição nunca morra’’, comenta o artista.
Já o colega de profissão, João Santana tem 38 anos e é repentista profissional desde os 21. No entanto, diferente dos demais repentistas, nasceu em Brasília. “Mas tenho um pé no nordeste. Minha família por parte de mãe é do Piauí e ama a cultura de lá”, comenta. O poeta desde pequeno já gostava de improvisar, junto do seu pai músico e compositor. Mas só adulto teve contato com repentistas profissionais, o qual foi indicado para fazer dupla com Chico de Assis, premiado repentista ceilandense do DF. A reportagem não encontrou o artista. Estava em outros compromissos profissionais.
O artista além de trabalhar como repentista, faz produção de projetos voltados para a literatura de cordel. Desde 2004 o artista, junto com a Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal (FAC/DF), leva artistas nas escolas para a divulgação do que é o cordel e o repente. Ele já visitou 38 escolas em todo o DF. “O objetivo é que as crianças e jovens possam ter a oportunidade de conhecer e poder gostar desse estilo artístico brasileiro’’.
Além disso, é idealizador do site “Verso Encantado”, que criou para mostrar e distribuir obras artísticas do universo da poesia, da literatura de cordel e do repente. Nele, compartilha, gratuitamente, divulgação de eventos e informações sobre a cultura nordestina. “É um conteúdo tem sido acessado cada vez mais”, garante o artista.
De repente, repente
Repente também conhecido como cantoria é uma arte brasileira baseada no improviso cantado, alternado por dois cantadores. A origem do repentista brasileiro tem suas raízes na região de Teixeira, na Paraíba, século 19. É facilmente confundido com o cordel, mas enquanto este último é caracterizado pela poesia escrita em folhetos, o repente é cantado. Entretanto, o Cordel também figura junto aos repentes e suas histórias se cruzam em paralelos caminhos, e os segmentos unidos são mais fortes que sozinhos. Juntos formam um belo par.
Nordeste em Ceilândia
Donzílio Luiz faz parte da população que ajudou a construir Brasília. Ele representa uma parcela de pessoas que vieram de longe para ter nova perspectiva de vida, mas acabou se instalando em Ceilândia, que na época era a mais nova Região Administrativa do Distrito Federal. Geraldo Queiroga veio quando a cidade já estava em desenvolvimento, mas também chegou à região em busca de novas oportunidades.
Ceilândia surgiu a partir de um plano urbanístico ultrapassado e totalmente diferente do proposto por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer para a construção de Brasília. A região começou a se desenvolver a partir de vinte famílias lideradas pela primeira dama Vera de Almeida Silveira, esposa do então governador Hélio Prates.
A primeira dama liderou a Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), sigla que deu origem ao nome da cidade. Ela, a partir da instituição, teve o objetivo de reconhecer a gravidade dos problemas e suas consequências: violência, crescimento desordenado e infraestrutura tão precária quanto à dos grandes centros urbanos.
De acordo com a Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), Ceilândia é a região administrativa que mais abriga nordestinos. Cerca de 48% dos moradores são de estados dessa região. Entre os imigrantes, o Estado do Piauí é quem mais possui representantes, 23,4%, o equivalente a cerca de 55 mil pessoas. Outros Estados também possuem representatividade expressiva: grande parte da população do Maranhão, da Bahia e do Ceará também imigraram para a Ceilândia, com 18,3%, 18,1% e 16%, respectivamente.
Após 46 anos, Ceilândia tornou-se a região administrativa mais populosa do DF, com cerca de 490 mil pessoas, conforme pesquisa da Codeplan. A região representa o outro lado da história de Brasília, não aquele romantismo que remete ao sonho de Dom Bosco, mas o de lutas e conquistas por meio de muito esforço e muito suor daquelas famílias, grande parte nordestina, que precisavam fugir de condições precárias devido à seca e a falta de recursos.
Carência
O comerciante Francisco Anísio também faz parte da população de Ceilândia que veio do Nordeste para uma tentativa de condição de vida melhor. Morador da região há 34 anos, Chiquim, como é conhecido no local, procura sempre sentir-se como se estivesse na sua cidade natal, Quixadá, no interior do Ceará.
“Aqui eu tenho os meus amigos, amigos que reencontrei nesse local e que vieram de onde eu nasci. Tem pessoas que eu não conhecia antes, mas temos coisas em comum, só pelo fato de termos vindo do Nordeste”, explica.
Chiquim gosta de frequentar locais onde a música nordestina está presente, mas diz que o canto repentista ainda é muito fraco na região em que abriga a maior concentração de nordestinos do DF. “Vou à feira da Guariroba no ‘P’ Sul, aos finais de semana, lá eu faço as minhas compras, vou comer o meu mocotó e aproveito para assistir as apresentações das duplas de repentistas’’ conta.
Contudo, o comerciante lamenta a desvalorização da cultura nordestina na capital. “Aqui na Ceilândia, nós sabemos quem são os repentistas, pois há uma maior concentração, mas se você for para Brasília e perguntar para um jovem ele vai desconhecer’’, lamenta. Assim como Francisco, os artistas nordestinos acreditam que a cantoria repentista, ainda é desconhecida pelos jovens. “Isso porque em alguma escolas não é ensinado sobre o repentistas”, afirma Donizílio.
De acordo com o atual diretor da Casa do Cantador, Francisco de Assis Chagas Filho, ainda não há projetos para a expansão da casa do cantador. Contudo, “com mais de três décadas da sua inauguração, a Casa do Cantador permanece sendo referência da cultura nordestina na cidade de Ceilândia’’ comenta. Com a falta de espaços para acolher a diversidade cultural da região, a comunidade artística de outros segmentos utiliza a Casa do Cantador como um dos poucos locais físicos para abrigar os mais diferentes grupos que vivem em Ceilândia.
Incentivo
De acordo com a Secretaria de Cultura (Secult), há um projeto para lançar um edital de chamamento com vinte vagas para duplas de repentistas do DF para realização do projeto Sexta do Repente (é novo isso?). A proposta segundo a Secult, contratará 10duplas de repentista de notoriedade nacional.
Reconhecimento
Apesar de todos os obstáculos, os quatro repentistas que foram entrevistados afirmam, que com o passar do tempo, o canto repentista tem crescido, tem ganhado mais visibilidade, e não se assusta com a diversidade cultural existente na região. “A diversidade faz o progresso, e é isso que mantém viva a cultura da Ceilândia, só do que precisamos é sermos valorizados’’, relata Geraldo.
Por Jaqueline Amanda