Irmãs fazem de grupo cultural paraense ação de memória e resistência no DF

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A história da criação e a luta de resistência do Sensação Paraense, grupo comandado por Maria de Lourdes e Cleideomar Reis

Às 19h em ponto, Cleideomar Reis trancou o portão de casa e começou a pequena caminhada em direção à pracinha que fica ao lado do Lago da Estrela, assim como faz todas as quartas e sextas-feiras. As crianças que a mulher de 58 anos reuniu na comunidade do Vale do Amanhecer, cidade que pertence à região administrativa de Planaltina (DF), já estavam à sua espera.

A irmã dez anos mais nova, Maria de Lourdes Reis, ligava a caixa de som enquanto Cleideomar distribuía parte dos figurinos: saias longas e coloridas para as meninas, chapéus de palha para os meninos. O som familiar do carimbó indicava que a dança estava para começar. Pelas próximas duas horas, a dupla conduziria o ensaio com os integrantes do grupo folclórico Sensação Paraense.

A organização comunitária nasceu ali mesmo, na pequena região do Vale, fruto do esforço de mulheres do Pará recém-chegadas no Distrito Federal e que desejavam continuar vivendo a cultura da terra natal, mesmo estando tão longe de casa. E assim tem sido a rotina de Cleideomar e Lurdinha para resgatar um pouco das tradições do Norte pela dança há 15 anos.

Grupo Folclórico Sensação Paraense

Os mais novos põem a ‘mão na massa’

Na casa de Cleideomar, logo acima da cama, estão pendurados um cocar e dois costeiros adornados com flores e penas, acessórios que ficam sobre os ombros e compõem a indumentária pelas costas e por trás da cabeça. E os armários lotados de vestidos, saias, roupas de índia e outras peças. Cada detalhe foi feito a mão pelas meninas que fazem parte do grupo.

“Tudo isso foram elas que fizeram. A gente ensina tudo”, disse Cleideomar, diretora do grupo “Sensação Paraense”. “Nós damos oficinas para que elas aprendam a produzir as roupas. Tem pintura à mão, costura, impressão em tecido, incentivamos as garotas a criar de formas diferentes”

Os ensaios para apresentações acontecem nas noites de quartas e sextas-feiras. E quando não há nenhuma apresentação em vista, o grupo se reúne mesmo assim, de forma a motivar as crianças a persistir nas atividades e a evoluir na dança. Às quintas-feiras, Maria de Lourdes dá aulas técnicas de movimentação, interpretação e caracterização. As irmãs também buscam fazer brincadeiras com as crianças em datas comemorativas e passeios ao longo do ano, para mantê-las entretidas e fortalecer o senso de comunidade do grupo folclórico.

Segundo Lurdinha, presidente do grupo, não há faixa etária nem gênero definidos para o corpo de dançarinos, mas a grande maioria das integrantes são meninas e, atualmente, a totalidade do grupo é composta por crianças e adolescentes. Cleideomar tem um projeto de iniciar uma turma com a terceira idade no futuro.

“Nosso grupo sempre foi assim, mais menina do que menino, e sempre novinhos”, esclarece Maria de Lourdes. “Parece que menina se interessa mais pela dança, menino com o tempo começa a achar chato. Nós tentamos manter a parcela masculina, mas nem sempre dá certo.”

Dançarinas do sensação Paraense / Foto: Divulgação Instagram

Carimbó e lendas urbanas

O grupo folclórico Sensação Paraense se apresenta como uma associação sem fins lucrativos que luta pela transformação social por meio da manifestação da cultura da região norte do Brasil. Hoje o carro chefe das apresentações é o carimbó, manifestação cultural de origem afro-indígena característica do estado do Pará, mas Cleideomar e Lurdinha tem apostado em uma diversificação do repertório desde a criação da organização, como as toadas do Bumba meu Boi de Manaus e quadrilhas juninas com a figura da Miss Caipira.

Uma das mais significativas formas de expressão da identidade paraense, o carimbó originalmente consiste em uma dança de roda que também integra o canto, a música e a formação instrumental, com destaque para instrumentos de percussão. Os movimentos ritmados, tanto em dupla quanto individuais, são embalados pelas canções que refletem práticas festivas seculares e, muitas vezes, religiosas, incorporadas aos costumes de povos interioranos do estado nortista.

As informações são de uma pesquisa em dossiê do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) sobre o carimbó, realizada em junho de 2014 através da metodologia de pesquisa da entidade que identifica e documenta conhecimentos sobre determinados bens culturais brasileiros, o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC).

As letras das músicas geralmente fazem alusão ao cotidiano dos trabalhadores locais, e podem levantar pautas políticas, sociais e ambientais. Isso sem falar na contação de histórias de personagens do folclore brasileiro. O Sensação Paraense costuma interpretar índias, a figura do pajé, a Mãe Terra e a Cunhã-poranga por exemplo, a última definida pelo regulamento oficial do Festival Folclórico de Parintins como “moça bonita, guerreira e guardiã que expressa força através da beleza”.

No carimbó os tocadores dividem-se entre instrumentos de sopro e percussão, sendo o tambor curimbó um dos mais característicos dessa manifestação. O Sensação Paraense não possui tocadores, apenas dançarinos. Para suprir essa falta, o grupo tem o apoio de músicas gravadas de carimbó, celebrações juninas e toadas do Bumba meu Boi de Manaus para conduzir as performances.

Estas são as três principais vertentes do arcabouço cultural nortista que são protagonistas nas apresentações do grupo, mas as coordenadoras também buscam adicionar eventuais lendas urbanas e celebrações religiosas nas interpretações cênicas: coreografias da orixá Ewá e da manifestação católica Círio de Nazaré da cidade de Belém, o conto amazonense do boto-cor-de-rosa e a lenda popular de Matinta Pereira, uma bruxa que se transforma em ave à noite e parte a incomodar o sono dos moradores, que só conseguem fazê-la parar ao oferecer um presente. Mais um conto criado no Norte do país, é bastante popular na região amazônica.

Com a cara, a coragem e a falta de incentivo governamental

“Cada uma de nós tem uma história. Eu vim para o DF por conta da doutrina a pedido de uma entidade. Vim com meu marido, que já faleceu há quatro anos. Ainda tenho dois filhos no Pará. Um veio comigo.”

Cleideomar Reis

“Já eu vim para me aventurar, sabe? Eu vim com uma malinha, minha filha de três anos de idade e com a cara e a coragem. Mais nada.” 

Maria de Lourdes Reis

Cleideomar e Maria de Lourdes Reis / Foto: Divulgação Instagram
Cleideomar e Maria de Lourdes Reis / Foto: Divulgação Instagram

Por doutrina, Cleideomar refere-se à doutrina espiritualista cristã, que caracteriza a comunidade do Vale do Amanhecer e que tem sido o caminho guia da paraense ao longo da vida. A moça teria vindo para fazer um curso de Sétimo Raio, classificação elevada nos planos espirituais de acordo com os preceitos do espiritismo. Já Lurdinha decidiu acompanhar a irmã mais velha na jornada em sair do Norte e aventurar-se em terras candangas, no improviso e em meio ao futuro incerto. Com a cara e a coragem mesmo.

“No começo a gente não tinha nem onde dormir, minha amiga”, Maria de Lourdes riu enquanto conversava comigo no intervalo do ensaio de sexta-feira. “O filho de Cleide alugou uma quitinete e a gente dormia na rede.”

Logo que conseguiu um emprego em Brasília, qualquer ideia de Cleideomar de retornar ao Pará findou-se, e a senhora estabeleceu-se de vez em uma pequena casa no Vale com a família. Mas à Lurdinha pesava muito a falta da cultura do seu estado, tão presente no cotidiano desde quando era criança. 

Ela relembra que o incentivo escolar à prática de diversas expressões culturais em Belém sempre foi muito forte, motivo da sua iniciação em danças folclóricas desde os três anos de idade. “Lá eu dançava carimbó, participava de concurso de Miss Caipira, já levei troféu pra minha quadrilha… e quando cheguei aqui, senti saudade disso. O governo do Pará apoia e divulga muito a nossa cultura, mas aqui no DF é diferente. Se a gente quiser um apoio que seja, tem que correr, tem que se humilhar. É bem desvalorizado.”

Foi graças ao desejo de continuar vivendo os costumes da terra natal e torná-los conhecidos aos brasilienses, além da insatisfação pela falta de incentivo que sentia por parte do governo do Distrito Federal à cultura paraense, que Maria de Lourdes decidiu criar um grupo folclórico na capital brasileira que cultuasse as tradições nortistas pela música, dança e artesanato. Com ajuda de Natasha, nora de Cleideomar, fundou o Sensação Paraense em 1º de abril de 2009.

Aos trancos e barrancos, mas sem desistir

A iniciativa começou com uma única dançarina: Hemely Camila, a filha de Lourdes. A garotinha tinha três anos, a mesma idade da mãe quando começou a dançar em Belém. Em época de festa junina, a paraense costumava vesti-la a caráter para ir à escola, o que chamava a atenção da pequena comunidade do Vale do Amanhecer. Com a fundação do Sensação Paraense e o destaque da filha de Lourdes como performer única em danças de Miss Caipira, o pessoal começou a se interessar por aquilo.

Um ano e oito novas integrantes depois, Lurdinha e Natasha se deram a liberdade de experimentar colocar um carimbó nos ensaios. E desde então a bagagem cultural só foi aumentando. No começo, Cleideomar era como se fosse a organizadora nos bastidores do grupo ou, nas próprias palavras, uma espécie de patrocinadora.

“Se precisava de tecido, acessórios, algum material, era eu que comprava. Na época eu já tinha conseguido arrumar emprego”, esclarece Cleideomar. “Mas em termos de dança, técnicas, ensinamentos, era tudo a Lurdinha e minha nora Natasha.”

Por razões pessoais, Natasha acabou saindo do grupo alguns anos depois, enquanto Maria de Lourdes permaneceu como a única presidente. A irmã mais velha então assumiu o posto de diretora cultural. Dois anos após a saída de Natasha, uma amiga das irmãs chamada Eugênia Santos passou a compor a turma de dançarinas. Hoje ela auxilia as duas como coordenadora, sendo a terceira e última integrante do corpo administrativo do Sensação Paraense.

“A gente continua aí até hoje, mas aos trancos e barrancos, porque tem época que a gente fica com só uma dançarina”, diz Lurdinha. “Mas a gente não desiste. Já estamos na quarta geração de integrantes e a nova geração é muito esforçada. Até o ano passado ainda tinha as veteranas, mas a gente apoia quando surge uma nova oportunidade profissional pra elas.” Cleide contou que uma veterana abriu um salão a domicilio para fazer sobrancelhas. Outra montou um ateliê para manutenção de cílios. 

O Sensação Paraense nunca recebeu auxílio financeiro do governo. Todos os gastos são por conta das irmãs há 15 anos. A associação também sobrevive de doações e parcerias com outros grupos culturais do Distrito Federal. Cleideomar explica que elas possuem um relacionamento de amizade e parceria profissional com a equipe do Boi de Seu Teodoro de Sobradinho, que já convidou o Sensação a participar de algumas apresentações em conjunto mediante o pagamento de cachê.

O Grupo Pellinsky, associação sem fins lucrativos sediada no Cruzeiro e que realiza trabalhos culturais com crianças e adolescentes, assim como o grupo de Lurdinha e Cleideomar, costuma doar materiais às irmãs para a confecção dos figurinos e indumentárias.

“Eu acho que o governo precisa incentivar mais trabalhos como o nosso, até porque lidamos com um público jovem. Criança e adolescente precisa muito de incentivo, senão fica difícil”, lamenta Cleideomar. “Não temos uma sede, todo o material fica guardado na minha casa, como você viu os costeiros e o cocar pendurados em cima da minha cama. E os ensaios são nessa pracinha a céu aberto. Se chove, não tem ensaio.”

Sensação Paraense durante ensaio / Vídeo: Giovanna dos Santos

“A gente te agradece por vir nos visitar”

Lurdinha e Cleideomar sabem que podem contar com a parceria com grupos como o Grupo Pellinsky e o Boi de Seu Teodoro, mas um dos principais palcos que o Sensação sempre teve é nas escolas da rede pública do DF. “Sempre somos convidados para apresentar em escolas, e às vezes damos a sorte de ser contratadas para algum festival”, argumenta a irmã mais velha. 

“Já levamos as crianças para Taguatinga, Samambaia, Águas Claras. Eu acho que não é só sobre montar um grupo com as crianças, né? Temos que levar pra apresentar, porque isso mexe com a autoestima delas e aumenta o interesse por permanecer no grupo. Já fomos convidados para apresentar dois anos seguidos no Festival BrasilArte, lá na antiga Funarte. De vez em quando acontecem uns projetos legais assim.”

Apesar dos trancos e barrancos inevitáveis, quando não se tem o auxílio financeiro ou o incentivo adequados, o Sensação Paraense segue na missão de divulgar a rica bagagem cultural da região Norte e continuar trazendo mais pessoas para viver um pouco dessa diversidade. O trabalho educacional e recreativo realizado com as crianças até hoje reflete o grande desejo de Lurdinha com esse projeto desde o início: viabilizar um espaço para a manifestação dos costumes e tradições de sua terra natal no centro do Brasil, tão longe de casa.

Da perseverança e das investidas das irmãs paraenses e demais mulheres que as ajudaram ao longo do caminho, o resultado é um grupo de crianças interessadas em se expressar por meio da dança e entusiasmadas em mostrar seus talentos ao público. Os pequenos não hesitaram nem por um segundo em esboçar sorrisos ao longo das danças no ensaio, nem em vestir de bom grado os figurinos que tinham na casa de Cleideomar, somente para posar para uma foto a pedido de uma estudante de jornalismo na Asa Norte que nunca havia pisado no Vale do Amanhecer.

“A gente te agradece por vir nos visitar, porque é a primeira vez nos 15 anos do grupo que alguém se interessa em fazer um trabalho sobre a gente”, afirma Cleideomar. Ao passo que novas parcerias e convites para performances vão surgindo, tudo indica que a comunidade só tende a se fortalecer.

Foto: Giovanna dos Santos

Esta reportagem faz parte de uma série de reportagens para a Revista Mosaico. Para ler mais, acesse www.revistamosaico.net.

Por Giovanna dos Santos

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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