As águas de março fechavam o verão e abril de 1964 dava início a uma obscura revolução.
Em meio a um país confuso e em transição. Cidades abarrotadas, miscigenação de costumes e transfiguração de cultura. Pessoas migravam do campo para as cidades, a economia despencava e o cenário tupiniquim ia de mal a pior.

Ninguém falava sobre isso, que o cenário que se instaurava era caótico. E uma grande parcela da população não aguentava mais o aglomerado de pessoas que lotavam os centros urbanos.
Para o historiador Ivan Lima, é necessário contextualizar a necessidade de entender as dificuldades que o Pais passava naquele momento.
“Eu acho que a gente não pode romantizar a ideia de que os militares deram o golpe, não os militares, uma parcela pequena do Brasil. Existe uma grande parcela da população brasileira (civis), maior do que a que queria a manutenção da democracia, muita gente queria que aquelas confusões na rua acabassem.”
O 24° presidente do Brasil, João Goulart, foi deposto e um novo regime emergiu a fim de colocar uma régua determinista sobre a moral e os bons costumes que deveriam vigorar pelos próximos 21 anos.
Leia mais sobre os 60 anos da Ditadura Militar
A era da TV
Ao ritmo do Iê, iê, iê e da segunda onda da Bossa Nova, as televisões brasileiras com os programas de auditório como o Fino da Bossa comandado pela cantora Elis Regina, tornou possível a difusão da nova era tecnológica e associando diretamente a música a esse novo aparato.
Um veículo de amplo alcance foi adentrando as casas das famílias pouco a pouco.
E deste modo, quando surgiu um regime com a proposta conservadora, muitos questionaram e foram contrários. Principalmente os artistas como músicos, poetas, cineastas, atores, etc. Mas, não necessariamente, contra o regime de fato, foram contrários ao conservadorismo e aos costumes que ele pregava.
Tanto que, o historiador e musicólogo, Ivan Lima, defendeu que quando os artistas decidiam publicar as músicas que possivelmente iriam gerar grande repercussão e ocasionalmente, a temível censura, havia planejamento e estratégia.
As gravadoras decidiam somente publicar aqueles que de fato gerariam lucros e logo em seguida já contratavam advogados para lutarem pelas publicações.
Tropicália
O movimento, que surgiu em meio a todo esse período e confusão de informações, foi instigado pela ditadura a se posicionar contrário ao regime.
“São reconstruções de padrões. Eu acho que, claro, a ditadura potencializa o nascimento e o surgimento do tropicalismo enquanto movimento. É, mas também tem isso de refazer a cultura nacional, da mistura desse caldeirão que é o Brasil. Não é necessariamente só contra a parte política, mas é contra a estética e contra a linguagem do mundo. Eu acho que o tropicalismo é isso.”
Historiador e musicólogo, Ivan Lima
E a canção se tornou um veículo de resistência, já que ela é um artefato artístico muito diferente dos outros por sua circulação ser diferenciada.
Ela dura cerca de três a quatro minutos, o que torna muito bem resolvida para passar a mensagem.
A lei e a denúncia
A canção “Amantes” de Odair José, por exemplo, foi censurada por nada menos o termo de seu título, por ser considerada uma má influência e por transgredir os bons costumes.
“É uma coisa conservadora, intocável, super tradicional para a família. No momento que você faz uma música que você fala de amantes, você está transgredindo a sociedade. Se você fizer, você vai contaminar outra pessoa”, diz o pesquisador.
De fato, a censura que era aplicada esmiuçou diversos assuntos e temas que anteriormente não haviam sido colocados em destaque, ganharam devido a censura.
Não é algo que havia apenas sido tratado na década de 60, mas muito antes disso já havia sido trazido em canções e na própria literatura. Então, por que foi algo que ficou marcado nesta época?
Ivan Lima explica que muitas das repressões que foram ocasionadas durante o período ditatorial, de maneira geral, foi devido às denúncias que a própria população fazia, logo, o maior inimigo, era o próprio vizinho.
“Porque nossos maiores vigilantes eram nossos vizinhos, não eram os censores. Se você pegar várias cartas, as pessoas relatavam.”
A justificativa para que tantas músicas acabassem taxadas pela censura era justificada pelo artigo 77 da lei 20.493 de 24 de janeiro de 1946: “Fica proibido a irradiação de trechos musicais cantadas em linguagem imprópria à boa educação do povo, anedotas ou palavras nas mesmas condições.”
Logo, não tinha jeito, se os órgãos fiscalizadores recebiam denúncias ou mesmo percebiam que uma letra estava fugindo da grande régua da moral e os bons costumes, era censurada e colocada de lado.
É o fim
As águas de março que fechavam o verão em primeiro de abril de 1964. Novamente, fecham em 15 de março de 1985 encerrando o turbulento ciclo do regime militar no país. Levando com elas a censura e prometendo uma vida diferente com a nova Constituição em 1988, sendo mais humanizada e tornando-se a mais cidadã.
Por Ana Beatriz Cabral Cavalcante
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira