Em meio a muros pintados de resistência, há quem insista em transformar cor em caminho. Na favela, onde a arte é muitas vezes reduzida a expressões preconceituosas como “rabisco” ou “vandalismo”, há pessoas que gritam com spray. Por aqui, a música hip-hop é realidade, a customização é ofício, a ideia vira sustento e as cores não pedem licença para existir.
Em Ceilândia, a maior região administrativa do Distrito Federal, Rivas Álibi, de 55 anos, transforma a arte em instrumento de resistência e empreendedorismo. Criador de uma marca de roupas que leva seu nome e carrega mais de 40 anos de história no hip-hop, a forma dele ganhar dinheiro é vendendo suas artes visuais, customizações, grafite e ainda com produção musical.
A arte do hip-hop está presente em toda sua família. Foto: Arquivo Pessoal
Customização
Entre os elementos do hip-hop, foi o estilo dos cantores da época que mais chamou a atenção do brasiliense, depois da batida marcante, claro. Roupas largas, boné de aba reta, correntões e óculos escuros logo se tornaram referência para Rivas, que passou a adotar o visual como forma de se conectar ainda mais com aquele universo.
Além do estilo marcante, customizar blusas e bonés com arte se tornou uma tendência. Álibi começou a pintar as próprias roupas como forma de expressão. Segundo ele, as peças chamaram a atenção dos amigos que também se identificavam com aquele estilo. Foi então que surgiram as primeiras encomendas: pinturas personalizadas em roupas e bonés.
E desde então, Rivas tem produzido figurinos e uniformes para grupos o seu e outros grupos de breaking do DF. Na década de 90 o designer chegou a grafitar mais de 100 camisetas que foram enviadas pra Alemanha.
“Naquela época ainda não se falava em empreendedorismo”
As vendas surgiram de forma espontânea, motivadas pelo interesse das pessoas da região e pela necessidade de transformar a arte em fonte de renda.
“Eu começo a customização nessa década de 80, quando a gente começa a pintar blusas e bonés com tinta acrílica. E a galera fala: ‘Pô, bacana, faz um desse pra mim.’ Então, a partir dali, a gente começou a vender essas coisas, mas nunca entendendo essa palavra: ‘você está empreendendo’, essa coisa. Isso ainda era novidade, vender a sua arte.”
A partir das pinturas nas roupas, Rivas teve a ideia de criar sua própria marca de vestuário. Usando o apelido que tinha na época, Kabala, ele pediu à tia que fosse até Goiânia, cidade conhecida por vender tecidos a preços mais acessíveis, para comprar o material necessário.
O processo contava com a ajuda da tia, que além de comprar os tecidos, também auxiliava o sobrinho na costura. Depois levava as peças para uma serigrafia, onde estampava cada uma com seus próprios desenhos. “A gente começou a produzir, colocava as etiquetas e falava: ‘Pô, a gente tá vendendo as camisetas do Kabala’. A gente vendia, negociava e articulava, fazia tudo.”
Apesar das boas vendas, Rivas reconhece que um dos principais desafios foi não compreender, naquele momento, que empreender na favela ia além de simplesmente repassar produtos às pessoas. Era preciso pensar o negócio de forma estruturada.
“O nosso problema é que a gente ainda não conhecia a ideia de empreendedorismo, a gente vendia muito, mas não pensava em capital de giro, em reinvestir o dinheiro. Mas a gente passou a vida inteira passando por esses processos, abrindo lojas e vendendo coisas que são totalmente produzidas pela a gente”.
A arte em roupas é considerada pelo artistas uma forma de expressão. Foto: Arquivo Pessoal
Parcerias
Em 2020, um marco na trajetória do empreendedor no vestuário foi a escolha de sua coleção de jaquetas para representar a Cidade Estrutural também no Distrito Federal em uma campanha da loja de departamento C&A, que selecionou cinco designers de comunidades do país.
Na coleção, ele recorreu ao bordado como linguagem central ao pensar em um modelo unissex que transmite, por meio de palavras e símbolos, o desejo constante de cultivar e espalhar a paz no dia a dia.
O desejo de empreender na moda continua firme. Rivas já lançou quatro coleções autorais de roupas e também desenvolveu peças exclusivas para outras marcas. O próximo passo será assinar a arte das camisas do Ceilândia Clube.
O seu trabalho como grafiteiro, artista e empreendedor de moda integra um setor que está em crescente expansão: a economia criativa. De acordo com o 2º Relatório Panorama da Economia Criativa do DF, produzido pela Fundação de Amparo à Pesquisa (FAP), esse setor movimentou mais de R$ 9 bilhões em 2022, o que representa cerca de 3,5% do PIB do Distrito Federal.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), a economia criativa não tem uma definição única, mas é compreendida como a junção da criatividade e das ideias humanas aplicadas à geração de valor econômico. Esse setor engloba atividades como design, moda, cinema, vídeo, fotografia, música, artes cênicas, publicações, pesquisa e desenvolvimento, softwares, jogos digitais, publicações eletrônicas, TV, rádio, publicidade e arquitetura.
O economista Newton Marques afirma que o empreendedorismo cultural em comunidades mais pobres é o caminho mais apropriado e rápido para a criação de emprego e geração de renda para os próprios moradores. Porém, ainda de acordo com o especialista sem políticas públicas para a capacitação fica difícil.
“Existem algumas atividades das ONGs e os próprios artistas com projetos sociais para mitigar essas lacunas do empreendedorismo cultural, mas ainda é muito insuficiente”.
Mas aos poucos o negócio foi se estruturando, hoje o artista tem o seu próprio ateliê, espaço aonde ele produz as suas obras. Neste ano, ele também inaugurou a Casa do Hip-Hop DJ Jamaika, que tem como objetivo oferecer espaço para a exposição de obras, eventos culturais e oficinas de arte para a população.
Grafite
Pouco tempo depois, a partir das pinturas com tinta acrílica, Rivas começou a levar sua arte para as ruas. Usando uma pistola de aerografia, passou a receber pedidos para pintar portas de lojas, muros e fachadas. Suas obras, em grande parte, refletem seu olhar sobre o mundo.
Com elementos da cidade e traços da própria vivência, o hip-hopper traduz em cores e formas tudo o que vê e sente: o preconceito, a cor da sua pele, a criminalidade e, sobretudo, a esperança de dias melhores.
A professora Maria Fernanda Derntl, especialista em intervenção urbana, explica que, em Brasília, o grafite tem sido utilizado por artistas como ferramenta para contar histórias da própria cidade. Segundo ela, isso é evidente em Ceilândia, onde as pinturas muitas vezes retratam experiências, visões e memórias locais.
Entretanto, essas artes nem sempre seguem um sentido único, podendo mesclar fatos históricos com outras referências, como explica a especialista.
“E aí em Ceilândia, também existem os temas da história local, só que misturados com temas mais globais, o você não precisa ir no não preciso ir no que fica bem interessante. Então, às vezes, tem um personagem que lembra mangá, mas está vestido como nordestino, tem feições de nordestino”.
Na região, é impossível não se deparar com alguma obra de Rivas. Seus grafites estampam muros e, inclusive, duas estações de metrô da Ceilândia. O seu desejo é fazer com que a cidade vire um museu a céu aberto.
Estudos afirmam que o grafite surge ainda na antiga Roma, há dois mil anos, como forma de manifestação política. Mas a arte só se popularizou mesmo nas periferias de Nova York, nos anos 70, com o surgimento da cultura hip-hop.
De acordo com o especialista em arte visuais e mestre em comunicação social pera UnB, Alex Vidigal, o grafite também está ligado ao movimento de cultura urbana. Por isso, além das favelas a arte pode estar presente em muitos outros centros urbanos, como nas paradas da Asa Sul ou no Setor Comercial Norte, no centro de Brasília.
Confira abaixo trecho da entrevista com pesquisador
Identificação
Tudo começou ainda “moleque”, nos anos 80, em meio ao crescimento da cultura urbana, por meio do funk, um garoto negro descobria um novo som que falava diretamente a sua realidade. Quem cantava não era um branco, e as letras narravam, com crueza, o que se via nos becos da sua cidade.
A primeira música de hip-hop que ouviu foi na caixa de som de um amigo que tinha conseguido o CD no Rio Janeiro, a “Planet Rock” do cantor americano Afrika Bambaataa. Para ele, a primeira vez que ouviu a música foi uma surpresa. Aquele som era diferente de tudo o que ele já tinha escutado.
“A gente começou a ouvir música, a assistir alguns filmes que chegavam na década de 80, tipo Beat Street, e nesse filme tinha grafite, tinha break, tinha rap, DJ ‘s, e era uma cultura que a gente ainda não conhecia tanto”.
Na cidade onde Rivas Álibi vive desde criança, a cultura do hip-hop gerou uma forte identificação em muitas pessoas. A partir desse ponto, os grupos de dança, o grafite e o estilo musical passaram a ganhar força e a se desenvolver na comunidade.
Poucos anos depois de se apaixonar pelo estilo musical, em 1986, Rivas, o irmão falecido DJ Jamaica e o amigo Calaco tiveram a ideia de criar um dos primeiros grupos de hip-hop da época, o BSB Boys. A partir dali, a cultura hip-hop deixou de ser uma curiosidade e passou a fazer parte da vida do então jovem.
Ceilândia Centro, cinco da tarde
Clima bom, muito bom, só com os de verdade
No meio do quadradão, daquele jeitão
tudo cinco ponto cinco até chegar o oitão
O pipoco e a orelha do sargento voou
Ninguém escapou, o bope chegou
E quem lembra: na drogamed foi assim
No meio do rap, aniversário da Cei
Ouça a música Contos da Cei:
Com letras que retratam o cotidiano nas ruas e as dificuldades da vida na quebrada, Rivas Álibi acredita que não há como um artista da periferia cantar algo que não vive. Suas músicas abordam temas como a abordagem policial, o preconceito racial, a busca por transformação e a força da fé.
Para ele, falar sobre o que se passa nas favelas, seja a violência, seja as batalhas internas de quem resiste, é essencial. “Mas é preciso saber como comunicar isso para quem vai ouvir”, ressalta o rapper.
Atualmente, Rivas conta com mais de 7 mil ouvintes mensais no Spotify e entre seus principais singles estão Maloqueiro Vida Nova, Não é Segredo pra Ninguém e Mãe.
Representação
“O hip-hop nasce na periferia norte e ele vai para as periferias do mundo inteiro. Ele não vai para um movimento de elite. Ele vai para um movimento de periferia, periférico, de favela. Então, por mais que ele o hip-hop tenha essa ação, ele sofre o preconceito também, porque a sua existência mesmo é de foi criado pelo povo negro”, afirma o artista multimidia.
Lugar de muitos outros talentos, como o cantor Hungria e o rapper DJ Jamaica, Ceilândia se tornou importante no hip-hop de Brasília e do Brasil. Isso porque os artistas da cidade tem lutado diariamente para levar a sua arte para outros lugares, enquanto a comunidade local continua a cuidar e fortalecer essa cultura, como se fosse uma forma de falar, um espaço para ser livre e uma força muito grande para as pessoas que moram lá.
Mesmo sendo uma forma de arte, o hip-hop ainda passa por muitos preconceitos. Segundo o produtor musical, algumas pessoas ainda acham que é uma arte de segunda classe, ligada à rua e ao crime. Diante dos inúmeros preconceitos enfrentados, a produtora cultural e esposa de Rivas, Jane Alves, acredita que transformar suas modalidades em esporte é um caminho para desmistificar essa visão na sociedade.
“A discriminação vai acontecer durante muito tempo, assim como várias outras culturas e danças populares do Brasil, como o samba e o skate. São totalmente diferentes, mas ainda sofrem essa discriminação, né? Mesmo, por exemplo, o skate se tornando modalidade olímpica, e a dança da cultura hip-hop, que é o break, também se tornou modalidade olímpica”.
Oportunidade
Além de aproximar realidades semelhantes à da favela, o hip-hop tem se mostrado um caminho fértil para gerar oportunidades. Atualmente, Rivas e sua família lideram diversos projetos sociais na região, com o objetivo de incentivar os jovens da cidade a reconhecerem seus talentos e encontrarem, na própria arte, uma forma de empreender.
O projeto Arte Urbana leva até escolas públicas de Ceilândia, Sol Nascente e Estrutural workshops de grafitti, oficinas de danças urbanas e rap. Além disso, a iniciativa propõe rodas de conversa sobre bullying, prevenção às drogas, bem como combate à discriminação.
De acordo com Jane Alves, os artistas da cidade costumam se apoiar e colaboram entre si durante o ano todo. Um exemplo disso é o projeto Tem Graffiti na Minha Escola, desenvolvido pelo artista e grafiteiro Elom.
Rivas e Elom trabalham juntos em diversos projetos. Foto: Redes Sociais
No final de março, um evento transformou a cidade em uma galeria a céu aberto. As paredes, com o azul como pano de fundo, exibiam obras de arte em seus retoques finais, impossíveis de ignorar para quem passava a caminho do metrô.
Outro projeto coordenado por Rivas Álibi, com apoio do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal (FAC), é o Brasil Super Battle – Edição Graffiti. A iniciativa levou arte urbana às paredes da estação Ceilândia Centro, que ganharam novas cores e significados com obras de 30 grafiteiros do Distrito Federal.
Nesse dia, lá estava o artista Kupido. Com um sorriso tímido, fez questão de dizer que era da Ceilândia Sul. Ele, que também iniciou sua jornada no hip-hop nos anos 90, começou pela pichação antes de se aprofundar na arte do grafite. Para ele, a arte foi uma forma de ganhar dinheiro e não ir para a criminalidade.
“No meu caso, o grafite salvou minha vida. Porque na Ceilândia a gente tem as escolhas de ou ir para criminalidade, ou jogar bola, ou fazer arte. Eu fui pela arte. Então, acho que adiantou”.
Grande parte das suas obras são com letras de caligrafia. Foto: Nathália Maciel
Segundo Rivas, a exposição de grafite é crucial para que a população compreenda que a arte é acessível a todos, independentemente de onde vivem.
“Para a gente, a essência do projeto é levar o hip-hop, levar o grafite para onde? Para lugares onde a comunidade vai ver diretamente. A gente tem também projetos para fazer os mutirões de grafite no Sol Nascente, ou seja, locais onde possam estar degradados, que no caso aqui no metrô não é porque ele estava degradado, mas é pela visibilidade onde toda a Ceilândia passa aqui”.
Além do lucro
Gilberto Braga, economista e professor do MBA no Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais, explica que ao contrário dos negócios tradicionais, o empreendedorismo cultural não é necessariamente um projeto que visa o lucro, embora ele possa trazer desenvolvimento econômico. O cultural visa muito mais gerar impacto social e, consequentemente, impacto econômico de uma forma secundária.
“Então, na verdade, o que o empreendedor cultural visa é o resgate, a valorização, a disseminação e a inserção social. Toda vez que você tem um produto que, de alguma maneira, é valorizado, o empreendedorismo cultural permite isso e traz circulação econômica. Portanto, de certa forma, é um resgate, uma valorização e uma materialização de tudo que acontece naquele local.”
Outras formas de arte
O projeto social Jovens de Expressão, que também funciona na Ceilândia, oferece gratuitamente oficinas e cursos direcionados para habilidade e profissão de jovens de 18 aos 29 anos. A iniciativa tem quatro principais eixos: empreendedorismo, cultura, educação e saúde mental.
Tatiana Reis é artista visual e professora de fotografia no projeto, ela afirma que o principal objetivo da oficina é transmitir os primeiros conceitos básicos da fotografia, trazer os alunos para pensar em arte e também inserir os alunos no mercado fotográfico de Brasília.
Tatiana Reis se dedica ao Jovem de Expressão desde de 2011. Foto: Redes Sociais
Além disso, uma das principais atividades da oficina é a produção de fotos artísticas em campo, em eventos culturais, shows, festivais e peças de teatro. A proposta é permitir que os alunos construam um portfólio sólido e se sintam preparados para empreender na área.
Confira abaixo o trecho da entrevista
“Ver esses jovens seguindo a carreira na fotografia é gratificante”, diz Reis. Foto: Arquivo Pessoal
Outro ponto importante da iniciativa é incentivar os alunos a começarem na produção fotográfica com os recursos que já têm em mãos, seja um celular ou uma câmera antiga. Mais do que a técnica, a proposta é desenvolver o olhar criativo e a autonomia.
A professora também destaca a importância de ensinar estratégias de prospecção de clientes. “A gente mostra que não é só fotografar bem, é saber oferecer seu trabalho, conversar com as pessoas e construir oportunidades a partir disso”, explica.
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