As linhas amarelas formam, pouco a pouco, o desenho de um ipê, um dos símbolos do cerrado brasiliense. Fio a fio, as formas revelam mais do que um desenho do pano branco a ser vendido. Mais do que o objeto colocado à venda, a costura une e entrelaça partes de histórias feitas de amor aos filhos que são crianças com câncer e homeopatias. Essas mães transformaram-se em microempreendedoras para garantir a sobrevivência dessas famílias envolvidas com o tratamento dos pequenos.
A iniciativa se trata do projeto Abrarte, que consiste em uma atividade organizada para mães de crianças com câncer e hemopatias que tiveram que deixar seus trabalhos devido ao tratamento de suas crianças. Elas encontraram na costura e no bordado, um escape da rotina do tratamento.
Acima de tudo, o projeto auxilia essas mulheres a encontrarem uma renda para lidar com as contas de casa e se manterem estáveis economicamente.
O projeto Abrarte foi criado como uma ação de empreendedorismo social pela Associação Brasileira de Assistência às Famílias de Crianças Portadoras de Câncer e Hemopatias (Abrace), ONG de Brasília, e reúne em todas as segundas, quartas e sextas em sua casa de apoio, localizada no Guará II (região administrativa a 20 km da capital).
Além do caos
As mães de crianças com câncer precisam de renda para continuar além de uma terapia em meio ao caos do tratamento de seus filhos, uma renda.
Para auxiliar as mães, o Abrarte conta com a professora Fátima Rodrigues Lima, de 63 anos, que trabalha com artesanato desde 1999.
Ela ensina, além da costura e do bordado, técnicas de venda. Fátima afirma que apesar de ser a professora, ela muitas vezes promove apoio emocional.
“Eu ouço elas falarem dos problemas delas, e eu vou aprendendo com elas. A gente sente a dor delas também. Aqui, a gente está pra ouvir, aconselhar e ensinar“, diz a orientadora.

Costuras do recomeço
O Abrarte além de uma geração de renda, contempla um recomeço, e tem como objetivo a qualificação profissional para estas mães que tiveram que largar seus trabalhos.
Além disso, o projeto prepara essas mães para o período pós-Abrace, devido as crianças serem desligadas da instituição depois de completarem 18 anos.
Dessa forma, a ONG cuida de todas as despesas gastas com materiais para a produção dos produtos, as levam em feiras para venderem seus produtos e deixam toda a renda obtida para ser dividida apenas entre as mães.
Assistente social da Abrace, Geyll Galvão comenta que o papel da entidade é fornecer os materiais necessários para produção e contratar uma professora para auxiliá-las. Contudo, a renda depende do empenho e dedicação de cada uma.
“É um grupo de mães que vem fazendo os artesanatos, e os valores variam de acordo com a produção de cada uma. Então, elas têm uma caixinha para organizar questões de alimentação nas feiras, os gastos com o grupo”.

Uma das artistas é Dinamária Rodrigues, de 46 anos, mãe de Tiago, moradora de Ceilândia (DF), a 20 km do local das atividades. O filho foi diagnosticado com câncer aos cinco anos de idade. Ela, que mora em Ceilândia (DF), não abaixou a cabeça mesmo ao largar tudo e se dedicar inteiramente ao tratamento do filho.
No ano de 2018, ela descobriu o Abrarte e segue no projeto. De acordo com ela, o apoio financeiro do projeto é indispensável em sua vida. Tudo o que é vendido fica para elas.
“Essa renda aqui é indispensável de verdade, é indispensável, ajuda muito, muito mesmo”.
Dinamária diz que, após se dedicar ao Abrarte, ela conseguiu conquistar sua carteira de artesã. A renda do Abrarte além de suprir as despesas, também auxilia a dar uma vida mais alegre ao seu filho com lanches que ele não costumava ter acesso, como o hamburguer.
Aprendizados
Outra participante do Abrarte é Vanusa de Jesus, de 49 anos, mãe de Osvaldina, de 13 anos. Elas moram em Barra do Bugres (MT), a cerca de 1 mil km da capital. A adolescente foi considerada curada, mas realiza ainda acompanhamento.
Ela recorda que está no Abrarte desde 2015. Além disso, Vanusa diz que não sabia bordar e costurar, e tudo que sabe hoje é por conta do projeto.
“Desde que entrei na Abrace, eu venho com o bordado. Além de ser uma renda, é uma terapia. E eu aprendi a bordar e costurar aqui, eu não sabia. É a renda que paga as minhas contas”.
Assim como Dinamária, Vanusa também largou seu emprego após receber o diagnóstico de sua filha, quando a menina tinha 3 anos de idade.
“A partir do momento que a gente tem um filho que nasce doente, a gente não trabalha para fora. É só em casa. Essa renda desse bordado me ajuda na alimentação dela, ajuda na energia, no gás. Eu nunca fiquei sem bordar desde quando eu aprendi”.
Além da renda, o Abrarte também ensina essas mães como vender seus produtos, e acima de tudo, a acreditar no potencial de seus trabalhos.
A cearense Francisca Alves, de 33 anos, mãe de Cristina, diagnosticada com retinoblastoma (câncer no olho) com 11 meses de idade, lembra-se que, no início, não acreditava no próprio potencial.
“Hoje, minha mentalidade é outra. Sei que eu vou fazer uma peça e eu vou vender. A minha peça é de qualidade. Posso expor aonde for”.
Francisca entrou no Abrarte no ano de 2017. Atualmente, ela é a encarregada pela contabilidade dos ganhos obtidos com o projeto, e por distribuir o dinheiro para as outras mães.
Diferentemente das outras integrantes, Francisca é casada e possuiu o auxílio financeiro de seu marido. Contudo, a renda conquistada no Abrarte também é de extrema importância.

Outra empreendedora, Alessandra Rodrigues, de 41, mãe de Walter Lourenco, diagnosticado com leucemia aos 4 anos de idade, diz que o principal lugar de vendas do Abrarte são as feiras da Abrace, que ocorrem uma vez por mês. A família reside em Boa Vista (RR), a 2 mil km da capital federal.
“É a Abrace que consegue os contatos pra gente levar os produtos para as feiras, quando está tendo algum evento, eles chamam a gente”.
Mãe de Caíque, Josefina da Silva, de 56, morava em Salvador (BA), a 1 mil km de distância de Brasília, afirma que, se não fosse pela renda obtida, ela teria que ter voltado para a Bahia, já que teria dinheiro para o aluguel em Brasília. O bordado garante a cesta básica.
“Hoje, eu tenho a minha casa, mas já pensei até em ir embora para Bahia por causa de aluguel, contudo eu consegui a minha casa e a Abrace me ajudou a conquistar os utensílios da minha casa”.
Arte que cura
Quando a dor aperta, a agulha alivia.
Quando a cabeça não para, as mãos se ocupam.
É assim que essas mães seguem: ponto por ponto, costurando um pouco de paz em meio a tempestade que virou a vida.
O que começa como um pedaço de pano e uma linha solta, logo se transforma em alívio, silêncio e refúgio.
“A atividade me ajuda muito psicologicamente. Às vezes, eu tô preocupada e começo a bordar e esqueço de tudo até de dormir”, diz Vanusa.
Porém o artesanato não resolve o diagnóstico. Não muda a preocupação da próxima consulta. Não apaga o trauma. Mas, ainda que mínimo, é uma pausa no meio da angústia.
“Com o artesanato, eu comecei a retornar aquilo que eu já fazia antes porque eu não fazia nada depois, era só hospital. Hoje eu já me sinto uma pessoa totalmente diferente”, diz Francisca, mãe de Cristina, diagnosticada com retinoblastoma.
Cada obra feita, cada ponto bordado, é uma tentativa de seguir, de lembrar que, além do hospital, ainda existe algo além. Com o tempo, o “pedaço de pano” começa a falar por elas.
No início pode não ser fácil, mas aprender a empreender com obras pessoais é, com certeza, mais fácil do que aprender a lidar com, o que um dia, foi apenas medo.

Para todas as mães do projeto, o artesanato virou também um reencontro. Longe das exigências, da rotina pesada.
O bordado, por fim, se transforma em alívio. Quando a mente não silencia, as mãos fazem seu trabalho. Empreender com o bordado, então, passa de um hábito para uma ferramenta de apoio.
“O bordado é uma terapia”, concluiu Alessandra, roraimense que veio a Brasília para conseguir tratar sua filha.
Para as assistentes sociais que acompanham de perto a rotina dessas mães empreendedoras, o impacto do artesanato vai muito além do produto final. Estar em um ambiente acolhedor e de mútuo aprendizado é de extrema importância para a autoestima delas.
Elas dizem que o trabalho fortalece autoestima e autonomia.
Longe de casa, perto umas das outras
Vindas de diferentes cantos do país, essas mulheres não escolheram Brasília por vontade própria, mas por necessidade. Longe de suas cidades natais, familiares e redes de apoio, encontraram nos corredores da Abrace o apoio aos seus filhos. Depois, nos fios da costura e do bordado, um novo lugar de pertencimento e empreendedorismo.
Vanusa conhece bem o trajeto entre a incerteza e a coragem. Sai de Barra do Bugres, no Mato Grosso, e cruza o país com a filha quinzenalmente para garantir um tratamento que sua cidade não oferece. Apesar da distância e da exaustão, ela aprendeu que não está sozinha.
“Ter mães com outras histórias aqui é muito bom. Não precisamos ter medo de nada, todas se entendem e se apoiam”, disse Vanusa.
É nesse empreendedorismo, entre dores semelhantes, que nasce um tipo de acolhimento que nenhum hospital oferece. Entre agulhas, panos e trocas de olhares, formam-se laços mais firmes que qualquer costura.
Francisca chegou do Ceará com a filha Cristina ainda bebê. O diagnóstico de retinoblastoma veio quando a filha mal completava um ano. Em meio ao diagnóstico, a Abrarte foi mais do que abrigo.
“No artesanato, com essas outras histórias de pessoas que passaram por coisas parecidas… Eu já me sinto capacitada pelo que eu passei aqui, pelo que eu convivi com essas outras mães.”, conta Francisca
É como se, ao aprenderem a bordar, também estivessem juntando forças para continuar. Cada ponto no tecido é também um ponto na alma, costurando o trauma da dor.
No caso de Alessandra, o diagnóstico do filho veio cedo, aos quatro anos de idade. Sem alternativa de tratamento no estado de origem, a mudança foi inevitável.
“Aqui, na Abrarte, uma sempre tenta ajudar a outra. Quando uma tem qualquer problema, a outra tenta ajudar. E é assim. Cada uma se apoiando e trabalhando por todas”, falou.
Longe de casa, essas mães reinventam o sentido de pertencimento. Unidas pela experiência comum da dor, criam entre si uma rede invisível, mas firme. Um bordado entrelaçado ponto a ponto por mãos diferentes, mas movidas pelo mesmo amor.
Josefina também cruzou o mapa: saiu da Bahia com o filho Caíque, e trouxe na mala a fé e o amor que não cede.
“Abrarte é uma mãe pra mim, não tenho que reclamar, não. Muito bom. Esses anos que passei aqui, com essas mães e professoras todo dia ajudando, é muito bom.”, afirmou.
A gratidão aparece em sua fala como um ponto firme no bordado: constante, forte e cheio de significado. A cada vez que ela puxa a linha, não costura só o tecido, mas também reescreve sua própria história.
Dinamária, do Distrito Federal, viu a infância do filho Tiago ser interrompida por manchas roxas nas pernas, sinais de uma leucemia inesperada. Entre dois empregos e a urgência do tratamento, encontrou no convívio com outras mães empreendedoras uma luz no fundo do poço.
“Quando tá aqui a gente conversa, a gente brinca, a gente até discute, porque é do ser humano. Mas é muito bom estar aqui. É muito bom ver outras pessoas. A gente acha que o problema da gente é grande até conhecer a história de alguma outra mãezinha. A gente chora junto e a gente tenta ajudar, porque não é fácil passar por isso. E a gente juntas, a gente consegue uma ajudar a outra pra tentar amenizar a dor. Só quem sabe o que é o fundo do poço é quem passa pelo câncer.”, concluiu Dinamária
Entre dúvidas e esperança
A luta contra o câncer e outras hemopatias é uma batalha diária. Dessa forma algumas das mães do Abrarte compartilham que receber o diagnóstico que seu filho está com câncer é algo desafiador.
Alessandra, por exemplo, morava em Roraima, e começou a notar que seu filho, Walter, andava pálido e cansado, dessa forma decidiu o levar ao hospital.
A partir de exames, foi notado que as plaquetas de seu filho estavam baixas e foi necessário realizar uma transfusão de sangue.
Os médicos de sua cidade não conseguiam dizer ao certo o que seu filho apresentava. Assim, foi necessário que um especialista viesse ao hospital analisar a situação de Walter. O especialista informou a Alessandra que seu filho estava com leucemia e disse que ela teria que ir para fora pois não havia tratamento no hospital.
Ela conta que ao receber a informação ela entrou em pânico, e comenta como foi o tumulto na vida de sua família após o diagnóstico.
“O chão se abriu ali na minha frente, eu me desesperei. A gente não sabia para onde iria“

Após a espera, ela foi encaminhada para Brasília, ao Hospital da Criança, e deu início ao tratamento de seu filho.
Devido à parceria entre o Hospital da Criança (unidade de referência no atendimento dessa faixa etária no DF) e a Abrace, a assistente social entrou em contato com a ONG a fim de Alessandra ter um lugar para se hospedar. Assim, ela e o filho moraram durante um ano e meio na casa de apoio da Abrace.
Além de Walter, ela é mãe de outros quatro filhos. Com lágrimas no rosto, ela não poupa palavras para dedicar o amor, diz que se torna um ser humano melhor a cada dia por conta de seus filhos.
Assim como Alessandra, Dinamária também começou a notar um comportamento preocupante no filho, Tiago Fábio. Ela verificou que Tiago apresentava manchas roxas em suas pernas, e caia com frequência.
Ele então fez vários exames, contudo, não foi diagnosticado com nada, foi analisado que suas plaquetas estavam baixas, mas não recebeu nenhum resultado preciso.
Tiago estava cada vez mais fraco, até que chegou ao ponto dele não conseguir mais andar e sua coluna entortar. Então ele foi imediatamente levado ao hospital e diagnosticado com leucemia linfóide tipo B.
Procurou vaga em diversos hospitais. Ela e o filho só conseguiram vaga no Hospital Araújo Jorge, dessa forma, Dinamária e Tiago foram encaminhados para Goiânia (GO), onde a luta se iniciou.
“O único lugar que tinha vaga era em Goiânia, no Hospital Araújo Jorge, e aí foi onde nossa luta começou. Meu filho não andava mais. Aí a médica falou para eu luta pela vida dele”.

Após o tempo em Goiânia, Dinamária teve que voltar para Brasília. Afinal, além de Tiago, ela tem outros três filhos que ficaram na Capital federal.
Ela conseguiu vaga no hospital da criança, e conheceu a Abrace. A mãe empreendedora conta que em sua ida para Goiânia vendeu a maioria de suas coisas para a ajudar lá. Na volta para a Brasília a Abrace deu “um grande suporte”.
Assim como Alessandra, Dinamária não poupa palavras de amor para seus filhos. Ela fala que apesar de amar todos seus filhos, Tiago é muito importante, por ensiná-la tanto.
“Apesar da história dele ser muito dolorosa, e muito sofrida, é uma história de vitória. Eu ensinei meu filha a andar de novo porque a coluna dele entortou. E o Tiago é meu tudo”. O amor está em cada laço dessa costura.
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Por Lucas Alarcão e Mateus Péres
Supervisão e edição de Luiz Claudio Ferreira