Uma sala quadrada, vazia de móveis e cheia de esperança. Uma mesa pequena encostada na parede. Um espelho e algumas máscaras. A janela quadrada formava as portas para a luz, que de dentro da Fundação Casa (Centro de Atendimento Sócio Educativo ao Adolescente), era uma das poucas coisas que os jovens enxergavam do “mundão” de fora. Foi este o cenário escolhido pelo diretor Diogo Noventa para gravar o documentário “Recado Para um Mundão”, filme exibido no 49º Festival de Cinema de Brasília. Ele entrevistou 38 jovens menores de idade, entre eles 30 meninos e oito meninas, de quatro unidades da Fundação Casa no estado de São Paulo. De casa, o lugar só tem o nome. Na realidade, não passa de uma prisão. Após a exibição do filme na capital, o público fez questão de elogiar em debate a iniciativa da produção documental.
O destaque do filme é o fato de os jovens usarem máscaras, já que as identidades deles não podiam ser reveladas. O diretor do filme explica que optou por esse recurso para fugir do padrão televisivo de tarja preta por cima dos olhos dos entrevistados. “A máscara deu um pouco de conforto e quebra de timidez. Não é fácil entrar em uma sala com quatro câmeras e um diretor ali fazendo perguntas”, afirmou Diogo. Sem roteiro pré definido, o diretor convidou os internos a darem um “Salve para o Mundão”, que seria debatido depois. “O convite para os meninos e meninas era assim: a ideia é que vocês entrem na sala e mandem um salve”.

Em debate, Diogo Noventa relata que apesar de protagonizarem a produção, os personagens não tiveram a oportunidade de assistir ao resultado final do longa-metragem. Apenas a versão editada, considerada curta-metragem, foi permitida pela Secretaria de Segurança Pública a ser exibida nas Fundações Casa. Dos entrevistados, quatro faleceram e outros quatro voltaram ao cárcere.
“A câmera quis traduzir um pouco a sensação da cadeia. Para os que assistiram, a forma geométrica predominante nas imagens é o quadrado. Tem quadrado no chão, tem quadrado na janela, tem quadrado na parede. Então a imagem tinha que ser quadrada e essa imagem traduz como que as câmeras de segurança estão vigiando o espaço público o tempo inteiro.”
Segundo o diretor do filme, foram necessários entre oito e nove meses de conversa para a equipe de filmagem ter acesso à Fundação. “Foi muito difícil conseguir entrar para filmar com equipe. Aí tem dois lados, eu encontrei pessoas ali da equipe Fundação Casa que foram muito legais, muito sensíveis, mas tem uma hierarquia da Secretaria de Segurança Pública terrível”, explicou.
A padronização de comportamentos é uma das características na prisão.“Acordo de manhã cedo, escovo os dentes, arrumo a cama, me arrumo, tomo o café, vou para a aula, almoço, vejo malhação, nossa distração. É bom ver uma novela para distrair a mente”, conta um dos jovens em depoimento. Diogo Noventa reforça essa visão. “Dentro da Fundação Casa e de outras prisões de jovens, existe um total aniquilamento de quem é aquela pessoa, existe uma padronização de comportamento, não pode falar gírias, não pode cantar funk, não pode uma série de coisas”.

Família
De acordo com Diogo, a família é o pilar de apoio para a maioria dos jovens, que contam com visitas semanais de parentes. Apesar disso, o processo de visita é desencorajado por fatores como distância, falta de dinheiro e tempo. Os que visitam, passam por revistas em que são obrigados a ficarem nus, o que, para os jovens, é sinônimo de humilhação. Relatos mostram a importância da presença das famílias.
“Ontem eu tive minha primeira visita. Foi muito importante para mim. Fiquei um tempo sem visita. Minha vó e minha priminha me visitaram. Foi muito especial, foi um dia que me marcou muito. Conversamos muito. Eu conversei sobre minha família, sobre o meu afilhado, sobre minha filha, e de vários assuntos, de como a vida está difícil lá fora. Como está bom ficar junto da família. A família está sempre reunida. Está todo mundo se unindo de volta. Está ficando mais harmonioso ter o convívio com a família. Estou muito feliz por eles.”
“Estou aqui há um ano e dois meses por homicídio. Por causa de briga. Estamos aqui agora prontos para ir embora, pensando que o que fiz foi burrice, o desgosto para a coroa já foi um extremo. Minha mãe não podia passar por isso. Meu pai…não tive, afastou quando era criança, nem queria mais ver ele. Troco várias ideias com minha mãe. É a única que vem visitar. Se humilha por mim.”
“Dois filhos, eu e mais um. Moro com meu pai. Certo e justo. Foi meu melhor amigo, me ensinou tudo. Meu pai vem todo final de semana, não deixa faltar nada para mim. Isso que me machuca um pouco, aqui é um lugar triste, pessoas têm depressão e doenças. Tem que ser humilhado e ser revistado. Ver o filho dele triste por dentro e não poder fazer nada. Já passei por aqui três vezes, quase três anos. E sempre meu pai veio.”
O objetivo maior do diretor é contribuir para que o sistema carcerário seja modificado e que essas pessoas tenham a oportunidade de se recuperar e serem reinseridas na sociedade.
“O meu interesse, enquanto pessoa que faz cinema e que intervém na sociedade, é conseguir mostrar as falhas desse sistema que está aí. Espero que um dia esse filme passe em uma mostra como essa, mostrando ‘olha como era antigamente as pessoas presas’. Infelizmente, é o cinema agora”.
Leia um dos mais impactantes depoimentos de uma jovem, que mandou um salve para todo o mundo.
“Oi, eu queria mandar um salve para todo mundo. Viver no mundo sem tomar consciência do significado do mundo é como vagar pela imensa biblioteca sem tocar nos livros. Para mim, essa frase é muito importante porque o conhecimento é uma coisa que ninguém pode arrancar da gente. É uma coisa que é nossa e, quanto mais a gente tem, mas a gente consegue crescer espiritualmente. As pessoas podem arrancar nossa liberdade, podem ferir a gente, mas é uma coisa que ninguém pode tomar, é uma coisa que é nossa. Por isso que eu falo, leiam muito que é muito importante.”
“Lendo, estudando, conversando, até brincando a gente aprende. E, tipo, viver é o maior crescimento que a gente pode adquirir porque a vida é curta. Mas a gente aprende várias coisas.”
“A maior dificuldade do ser humano é lidar com outro ser humano, porque a gente nunca está contente. É difícil agradar outras pessoas. Nem tudo que a gente faz ou fala as pessoas vão concordar. As pessoas têm pontos de vista diferentes. Então nem sempre a gente vai agradar. Por isso que é vivendo e aprendendo. Uma hora a gente acerta.”
“É importante as pessoas assistirem a esse filme para as pessoas conseguirem ver um pouco como é a nossa casa, para saber como as pessoas se sentem, o que elas pensam, para ter uns cinco minutos de reflexão, porque nem tudo que fica estampado no jornal e que passa na tela é verdade, porque eu acho que a televisão só é pra maquiar, a vida é muito mais do que uma tela, muito mais do que um jornal. Para a gente poder julgar, a gente tem que viver, ficar presenciando de perto porque apontar o dedo na cara das pessoas e falar é fácil, difícil é se colocar no lugar delas.”
“Claro que eu já fui julgada pela sociedade. Quem nunca foi descriminado, quem nunca sofreu preconceito? A gente que é negro, a gente tem que ser melhor em tudo. Porque a gente já sofre o preconceito desde quando a gente nasce. É negro! É ladrão, é traficante, é pobre, é porco, é esses adjetivos que a gente recebe. Só porque a pessoa é branquinha e tem olho azul, acham que as pessoas são mais inteligentes. Não é a cor que faz a pessoa e sim seu caráter. Não importa de onde ela vem.”
“O mundo é capitalista. As pessoas só vivem por dinheiro, elas não se importam com o próximo. Quando mais você tem, mais você vale.”
“Tenho esperança. Porque acho que é a única coisa que a gente pode ter. Mas também não adianta ter esperança e ficar sentado, esperando. A gente tem que se mover. A gente tem que fazer por onde, a gente tem que procurar fazer a diferença. Por um mundo melhor. Porque se a gente não fizer, quem é que vai fazer?”
“Eu sonhei que eu estava em uma imensa biblioteca e eu queria tocar nos livros. Quando eu ia pegar o livro, tinha uma corrente muito grossa que eu não conseguia arrebentar. E, tipo, eu queria adquirir conhecimento e eu não conseguia, eu não podia. Porque eu tinha uma corrente muito forte para ela ser quebrada, e é uma coisa me machucou muito. Porque o conhecimento é uma coisa que eu gosto de adquirir, uma coisa que ninguém pode roubar. Imagina a gente não ter conhecimento? O que que a gente vai carregar?”
Por Bruna Maury e Nabil Sami