Paraísos no Conic: farras e igrejas no coração de Brasília

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As pessoas se reúnem entre as paredes coloridas dos edifícios e se preparam para celebrar. Um grupo desce uma das várias escadas do local. Degrau após degrau, cheios de vida. Outro abre as portas de uma pequena sala, que se transforma em uma grande festa. Não importa o andar; a ideia é conviver e celebrar. Sexta-feira, 18h. Setor de Diversões Sul. Fim do expediente e início do final de semana. O momento que todos esperam. Ali, no coração do avião, entre as Asas Norte e Sul – o centro produtivo da capital brasileira, corações de todos os tipos batem alto. Algumas pessoas descem dos ônibus; outras, caminham 5 minutos da estação de metrô; há ainda quem prefira ir de carro. Todas elas encontram no Conic um espaço para desfrutar de momentos de relaxamento e criar memórias.

Uns, com a bíblia nas mãos; outros, com o skate sob os pés; passam por lá aqueles com instrumentos nas costas e todos com muita fé e esperança no peito. Há também aquelas pessoas que já têm lugares reservados nos bares e passam as noites nos concretos da praça central. No Conic, como é popularmente conhecido o Setor de Diversões Sul, todas a tribos têm espaço, e cada uma se diverte da sua maneira.

Pensado por Lúcio Costa, o arquiteto e urbanista responsável pelo projeto de Brasília, para ser um centro de entretenimento e cultura, o local foi inaugurado em 1967 e se desenvolveu de acordo com a vida da cidade. De acordo com a Terracap, a área destinada ao Setor de Diversões Sul possui 18.551,20 m² e foi dividida em 18 lotes que foram adquiridos por diferentes proprietários. Isso explica a pluralidade do local. Hoje, o Conic é formado por estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços diversos, além de restaurantes, salões de beleza, óticas, sindicatos, sedes de partidos políticos, templos religiosos e teatros.

Fotos: Luca Valerio

Convite

“Você já faz parte de algum grupo de jovens? Vem com a gente, vai ter encontro da juventude e almoço para a comunidade”, convida uma funcionária da Igreja Universal do Conic, a maior da Igreja Universal de Brasília. “Aqui é o centro, né? A ideia de toda igreja é sempre se estabelecer nesses lugares de fácil acesso para as pessoas. E quem em Brasília não conhece o Conic?”, destaca o pastor Ivo sobrenome, da Igreja Mundial do Poder de Deus. “O objetivo principal é ganhar almas, só isso”, resume o pastor Wagner, responsável pela administração geral da Igreja Universal de Brasília.

“Vamos, é aqui embaixo, a entrada é barata e a bebida é gelada. Vai ter música boa e gente bonita”, conversam dois jovens. “É um espaço que precisa de ocupação cultural para não cair no abandono novamente, a gente precisa dar respaldo para essas iniciativas”, argumentam. “É um espaço sem moradias e a gente acredita estar fazendo um bem à cidade como um todo ao trazer, aqui para o centro, uma opção de cultura, lazer e entretenimento”, defende Kaká Guimarães, parceiro da Fundação Brasileira de Teatro e produtor de eventos culturais. No fim de 2015, a empresa dele fez parceria com a fundação para realizar a revitalização do subsolo do Dulcina e da praça do Conic. O objetivo dele é “transformar de fato o Setor de Diversões Sul em um Setor de Diversões e entretenimento”.

Subsolo

No subsolo do Conic, uma pequena porta esconde um grande salão, sem janelas. “Entre sem bater”, avisa a placa. “Aqui se abrem as portas para o céu”, diz o responsável pela administração da Igreja Pentecostal Deus é Amor. Em um momento de oração, uma senhora de joelhos, em tom de desespero, agradece e pede perdão ao Senhor, no microfone. A plateia aplaude. O desenho de um arco-íris é o símbolo do local. “Foi uma revelação de Deus para o fundador da Igreja”, explica a administração. Bandeiras dos países do continente africano enfeitam o altar. “Nossa igreja está presente em 136 países”, justifica. “Ao meio-dia, o culto é mais rápido, dura só 1 hora, pro pessoal aproveitar a hora do almoço e vir orar, mas nossas portas estão sempre abertas e todo mundo é bem-vindo. Aqui, por ser um centro comercial, tem muita gente toda hora”, diz.

No subsolo do Conic, uma porta um pouco maior é a entrada para um grande salão, também sem janelas. O Sub Dulcina, um espaço onde também acontecem diversas celebrações.  Aqui, o único milagre esperado é finalmente conseguir dar um beijo no crush. “Deus, me ajuda a conseguir dar um beijo daquela garota, por favor, eu nunca te pedi nada!”, os jovens brincam. “Em nome de Jesus, tira uma foto minha”, suplicava uma jovem enquanto posava sob as luzes piscantes da balada.

O local, que se assemelha a um depósito abandonado, com grades para todos os lados, corredores estreitos, chão irregular e muita poeira, é usado atualmente como o novo ponto de celebração dos jovens da capital federal. As paredes grafitadas vibram junto o som das músicas e o piscar intenso das luzes. A luz vermelha e baixa evidencia o clima sombrio. Sob o teto de tubulações, a atmosfera é pesadamente animada. O cheiro de mofo, característico dos porões, se mistura ao aroma do álcool das bebidas.

Não é preciso passar pelos portões para começar a festa. Ainda na fila para adentrar o Céu & Inferno, como a festa era chamada, as pessoas já bebiam cerveja, fumavam cigarros e conversavam sobre aleatoriedades. Ao cruzar os portões, tudo fica mais quente e mais escuro. Elas pulam conforme a música, que muda a cada minuto, e glorificam com as mãos para o alto, canção por canção, de acordo com o ritmo. O evento, que prometia tocar todo tipo de pop e rock, agita o público, formado por jovens entre 18 e 21 anos. Sem regras. Sem preconceitos. Sem rótulos. O único mandamento é se divertir.

Nos corredores estreitos do espaço, duas jovens pulam e dançam ao som de uma banda de rock pesado. Elas levantam os braços, fervorosas, como se agradecessem aos céus por estarem ali. No fundo da pista de dança, um casal gay divide um cigarro. Apesar da fumaça e das luzes escuras, não há como negar a expressão de felicidade no rosto dessas pessoas.

A salvação chega às 6 horas da manhã, quando alguém te empresta o carregador do celular para você conseguir chamar um uber. Enquanto uns saem da festa, outros chegam para o culto. Na igreja Universal, o primeiro culto é às 7h30. “Eles fazem as festas deles e nós também fazemos as nossas. Às vezes, nesses nossos eventos, a igreja fica lotada, ocupamos todas as vagas do estacionamento e eles também não vieram reclamar com a gente. Nossa convivência é pacífica”, garante o Pastor Nei, responsável pela igreja Universal do Conic.

Térreo

No andar de cima, duas senhoras recebem, em pé, de frente para o altar, a bênção do pastor da Igreja Universal. “Vem agora, ó Espírito Santo, manifestar o teu poder e transformar o coração dessas pessoas”, exalta o pastor, no microfone. O discurso comovente e exaltado combina com o local. Anos atrás, dos auto-falantes que hoje emitem pedidos de salvação, saíam diálogos românticos, gritos de terror e até mesmo explosões de granadas. No altar onde o pastor se posiciona para fazer a bênção, havia uma tela de cinema. O Cine Atlântida, a maior sala de cinema de Brasília na época, perdeu espaço para a Igreja Universal em 1995.

Grafites coloridos enfeitam o muro dos fundos da Igreja Universal. “Foi a gente mesmo que permitiu”, diz o pastor. “É a arte da juventude né? Ficou muito legal, ficou muito bonito, deu outra vida para aquela parede”, diz. Feiras, brechós, festas, shows e tantos outros eventos culturais acontecem praticamente na porta da igreja. “Eu tenho uma mente muito aberta a essas coisas. Eles tão ali, no teatro. Eu mesmo também fiz teatro”, admite o pastor Nei. “Eu não acho que seja nenhuma perturbação. Eles até pedem: ‘Pastor, posso usar o banheiro?’ e  eles entram e utilizam os banheiros da igreja. Isso não me agride. Até agora eles não me deram nenhum problema. A gente respeita o lado deles e eles respeitam o nosso lado”, relata.

Ainda no térreo, atrás de uma porta de vidro com cartazes colados com os dizeres de “Ocupado” e fotos da atriz Dulcina de Moraes. O espaço é singular. Na frente tem a sede do PSDB; atrás, há sedes de sindicatos, do PT e da CUT. De um lado, tem a Igreja Universal, a maior de Brasília. No subsolo, a Comunidade Athos recebe fiéis lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.  Cercado por toda essa diversidade, é aqui que ele organiza os eventos culturais do Conic e do Sub Dulcina.

O Movimento Dulcina Vive! atrai muita gente diferente, inclusive as minorias, que agrega os movimentos sociais, o movimento LGBT, alunos da faculdade de teatro e artes cênicas, o movimento negro e transexuais. Segundo entrevistados, a relação e a convivência com a Igreja Universal é pacífica. “Depois que eu conversei com o pastor e vi que eles não tinham nada a se opor contra a gente, nós conseguimos manter um bom relacionamento. Até brinquei com o pastor uma vez: ‘a gente é parceiro, né? O pessoal vem pra minha festa a noite, se arrepende, e de manhã já tá na tua igreja’. Ele falou: ‘é isso aí, tamo junto!'”, diz Kaká Guimarães.

Além de dividir espaço com as atividades culturais, as igrejas do Conic convivem com uma pluralidade religiosa. A maioria é protestante, mas nem todas seguem a mesma doutrina. Há ainda lojas de artigos de umbanda e candomblé. “Eu não vejo mal nenhum. Inclusive eu sou amigo de muitos pastores que estão aqui, mesmo de outras religiões. A gente não tem nenhum problema com nenhuma outra religião”, garante pastor Nei.

No interior do prédio Espaço Galleria, uma porta de madeira esconde a famosa sauna gay de Brasília. Em papel sulfite, as informações: R$ 30, proibido para menores de 18 anos. Na frente, um bar. Ao lado, a  Igreja Apostólica Plenitude do Trono de Deus. “Quem pode dizer que Deus está só lá e não aqui?”, questiona o garçom que trabalha no bar. “Deus está em todos os lugares”. Apesar disso, ele não vê com bons olhos essa coexistência. “Não acho certo. Quem vai a igreja tá procurando um lugar de tranquilidade espiritual e não uma baderna”, desabafa.

Para o pastor Nei, ‘tá tudo certo’. “Inclusive, tem algumas pessoas que saem do bar e vêm aqui na igreja pedir uma oração. Tem gente que tá ali no barzinho, ou ali na praça com os amigos e às vezes tá passando por algum problema na família ou no trabalho, ou de repente bate uma tristeza e quer uma oração. Eles pedem: ‘vocês podem fazer uma oração pela gente?’ Na hora a gente já acolhe. ‘Claro! Vem aqui, entra, vamos orar e conversar’. Isso sem importar qual seja o problema dessa pessoa”.

“A cidade inteira aplaudiu quando a gente veio para cá e começou a trazer cultura para o centro da cidade”, garante Kaká. Até as igrejas: “eu acho até bom que façam os eventos aqui porque sempre acaba vindo alguém pra cá também”, destaca pastor Nei. “O estilo das festas às vezes mexe um pouco com a gente. As senhoras de mais idade nem vêm na igreja quando tem esse tipo de evento. Elas têm medo, receio, ficam assustadas. Mas ‘graças a Deus’ nunca aconteceu nenhum tipo de desavença”, afirma pastor Ivo, da Igreja Mundial do Poder de Deus.

O próprio pastor Nei, da Igreja Universal, brinca: “o nome é Setor de Diversões Sul, não ‘setor de igrejas sul’”. Cabe igrejas em um setor destinado ao entretenimento? “Cada um tem sua forma de se divertir”, explica. Há quem vá ao teatro. Há quem prefira ir dançar. Há quem se contente em sentar numa mesa de bar e jogar conversa fora com os amigos. E há quem encontre esse momento de diversão dentro da igreja. Por que não? Não existe certo ou errado quando se fala no Conic. Se divertir é o que importa. Se sentir bem, em paz e pleno.

 

Visão aérea do Setor de Diversões Sul, com os principais pontos do local.

A ex-professora da Faculdade Dulcina de Morais, Flor Marlene nos deu uma entrevista sobre a arte produzida no Conic e como o lugar se tornou um espaço de convivência urbana. Vem com a gente num passeio pelo local.

Por Larissa Galli e Luca Valério, do Esquina On-line

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