Não há como falar de cultura popular no Distrito Federal sem falar de Martinha do Coco, nome que representa uma das principais referências do samba de coco na capital do país. Martinha já recebeu do Ministério da Cultura o título de Mestra da Cultura Popular, já foi homenageada na Câmara Legislativa do DF em uma celebração ao Dia do Patrimônio Cultural e recebeu o Prêmio Mulher Negra da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa (SECEC-DF).
É inegável a influência da mestra na cena da música e de ações sociais que promovem educação pela arte, mas antes de ser cantora, compositora, brincante e ativista, quem é Martinha do Coco? Conheça um pouco da história da pernambucana que lutou bastante para se estabelecer no Planalto Central e consolidar as raízes de expressões culturais nordestinas e afro-brasileiras tão longe de sua terra natal.
A infância em Pernambuco
Marta Leonardo de Oliveira nasceu em 11 de junho de 1961 no bairro da Encruzilhada, na divisa entre Olinda e Recife, em Pernambuco. Mas toda vez que alguém pergunta se ela é de Recife, Martinha concorda. Se perguntam se ela é de Olinda, também concorda. Isso porque pouca gente conhece o tal bairro da Encruzilhada.
“Digo que sou pernambucana mesmo, mais fácil”, ri Martinha. “Boa parte de minha infância vivi em Olinda mesmo, minha mãe criou eu e meus irmãos na periferia do município”.
Josefa Leonardo de Oliveira não tinha residência fixa, relembra a filha. Mãe solo, ainda por cima, com cinco filhos para cuidar. Ia para onde o aluguel era mais barato. Por isso que Martinha conta que já morou em tudo quanto é bairro de Olinda e entorno. Além do valor do aluguel, Dona Zefa sempre levava em conta um segundo fator na escolha das casas para se mudar com os filhos: a marca do nível de água na parede deixada pelas enchentes.
“Eu lembro muito bem, minha mãe sempre fazia uma vistoria nas casas antes de escolher alguma, procurando marca d’água na parede para ver até onde a água batia”, conta Martinha. “Se encontrava marca, já não pegava a casa. Mas se não tivesse como evitar, era boa em consolar a gente. Lembro de várias noites ela falar ‘Não chorem, mas a água já entrou, vai dar tudo certo’ enquanto colocava eu e meus irmãos em cima da cama com o que mais pudesse salvar do alcance da enchente”.
A vinda para Brasília
Dona Zefa trabalhava como empregada doméstica em Olinda. Em 1977, a família para quem trabalhava mudou-se para Brasília, cidade ainda muito recente e em expansão. Seus patrões sugeriram que ela fosse junto. Foi assim que Josefa deixou momentaneamente os cinco filhos aos cuidados de uma comadre, Adelaide Pereira.
“Ficamos com minha madrinha. Ela já tinha dois filhos, e ainda abrigou mais cinco crianças. Minha mãe passou dois anos na capital, disse que aceitou esse emprego para ir atrás de melhores condições pra gente”, esclarece Martinha.
“Passou esse tempo fazendo essa transição, se adaptando, e então voltou para Pernambuco para nos buscar.”
Foi assim que Marta Leonardo de Oliveira chegou ao Planalto Central, com 17 anos. Ela, Frederico Leonardo de Oliveira, Maria de Fátima Leonardo de Oliveira, Kátia Ferreira e Celestino Ferreira. Filha do meio, Martinha conta que demorou dois anos para que a família se reunisse novamente devido ao fato de que Josefa não tinha casa para morar, passando as noites na casa dos patrões.
Somente quando conseguiu garantir emprego aos filhos mais velhos, graças a alguns contatos que fez com donas de casa pelos arredores, que precisavam de cozinheira, faxineira, copeira, foi quando pôde trazer os filhos para Brasília. Os patrões que aceitaram contratá-los concederam as passagens de avião.
Vieram quatro na época: o mais velho, Frederico, com 25 anos, ainda permaneceu por mais um tempo em Pernambuco devido ao emprego que tinha em uma fábrica. Martinha estima que se passaram uns dois meses para que ele desse baixa no trabalho, comprasse um pequeno lote em Brasília e se juntasse ao restante da família.
Maria de Fátima, 22 anos, foi contratada por uma família como cozinheira. Marta, 17 anos, foi junto com a irmã mais velha para ser arrumadeira e copeira, a pedido de Dona Zefa. “Minha mãe disse à patroa de minha irmã para eu ir junto para cuidar dela. Pense, a mais nova cuidando da mais velha. Mas era porque minha irmã só chorava na época, numa ‘agoniação’ só”, relembra Martinha.
Kátia, com 13 anos, foi morar com uma senhora cheia de cachorrinhos, que estava precisando de alguém para auxiliar nos cuidados com os pets. E Celestino, com 9 anos, era novo demais para ficar sem a mãe. Por isso passou a morar com Josefa na casa dos patrões da pernambucana.
A vista pelos cobogós
Eventualmente, a irmã mais velha retornou para Pernambuco, dada a saudade que sentia da terra natal. Marta foi percebendo uma certa insatisfação no ofício de arrumadeira. “Eu não entendia muito bem, como é que alguém dorme, não faz a própria cama depois e outra pessoa que tem que fazer?”, indagava Martinha na época. “E tira prato, e guarda prato, dobra edredom. Uns edredons super grossos, que eu nunca tinha visto nada parecido em Olinda. Lá era um lençolzinho fino e olhe lá.”
A jovem tinha o costume de ir para a área de serviço do apartamento no Plano Piloto onde trabalhava, para “ver a vida passar” através dos clássicos cobogós que adornam os prédios da região. Um dia, por um desses cobogós, Martinha lembra de ter visto um grupo de mulheres que pareciam bem felizes, sentadas em um parquinho debaixo dos blocos e brincando com crianças.
Ela desceu para conversar com as mulheres e perguntar que tipo de emprego elas tinham. A resposta: eram babás. Em seguida, Martinha perguntou o que faziam as babás.
Quando soube que a função era cuidar de crianças, dar comida, dar banho, colocar para dormir, retornou para o apartamento pensando que “isso eu sei fazer! Não estou certa nesse meu emprego de agora e quero ser feliz em Brasília.” Se apaixonou pelo trabalho das moças que observava pelos cobogós e tomou a decisão de mudar de ocupação. Após muito procurar, conseguiu um emprego de babá em uma casa no Lago Norte, na mesma rua em que Josefa trabalhava.
A vontade de ampliar os horizontes
De 15 em 15 dias, Dona Zefa e os filhos podiam tirar um dia de descanso para passear. Era comum que a família visitasse os pontos turísticos no Plano Piloto, como a esplanada e a Torre de TV. Uma das memórias de Martinha da capital é a vista da cidade do alto da Torre, tentando identificar os bairros que conhecia. De lá, conseguia enxergar um pouco do Lago Norte, a Asa Norte e Asa Sul.
Mas desse hábito agradável compartilhado pela família surgiu uma inquietação no coração de Martinha: a jovem passou a desejar conhecer regiões que não conseguia enxergar do alto da Torre de TV. Expandir os horizontes para além do Plano Piloto. A pedido da filha, Josefa passou a levá-los para as cidades-satélites ao redor de Brasília, e a região administrativa que mais mexeu com a nostalgia de Martinha foi Ceilândia.
“Era tudo o que eu queria ver. Era como se fosse a volta da minha periferia de Olinda. Demos de cara com coisas que eu conhecia tão bem, o povão, gente andando descalça, de sandália, sem camisa, cachorro sem coleira. Bem diferente do Plano”, conta Martinha que, até aquele momento, só havia presenciado a realidade dos habitantes do Lago Norte e do centro de Brasília. E a partir desse novo hábito de conhecer e explorar as RAs do entorno da capital, foi que a pernambucana se deparou com a região que é seu lar até hoje: o Paranoá.
As novas oportunidades no Paranoá
Além de ser mais perto do Lago Norte, onde Dona Zefa e Martinha estavam instaladas nos respectivos empregos, o Paranoá tinha uma feira que atraía muito a família. Sem contar que Martinha sempre viu na região um local que valorizava a cultura. Bumba Meu Boi, Reisado (ou Folia de Reis), apresentações de vários gêneros musicais, enfim, uma gama cultural bastante presente no dia a dia dos moradores.
Enquanto isso, o irmão mais velho, Frederico, costumava arrumar vários “bicos” como mecânico e entregador de jornal, por exemplo. Devido a rede de contatos de Frederico, que crescia conforme o rapaz transitava entre empregos, uma das pessoas para quem ele ofereceu serviço lhe concedeu um lote justamente no Paranoá. Frederico então presenteou a mãe com esse lote, que acabou sendo usado para abrigar também os filhos em uma espécie de “puxadinho” que fizeram.
Outra porta que o Paranoá abriu para Martinha foi a oportunidade de voltar a estudar. Quando chegou em Brasília, aos 17 anos, a adolescente havia estudado até a sétima série do fundamental. Muitas fases de vida e acontecimentos depois, já aos 40 anos, com quatro filhos e trabalhando como gari, Martinha um dia passou pelo Centro de Ensino Fundamental (CEF) 03 do Paranoá e viu um panfleto que dizia: “inscrições para o EJA” (Educação de Jovens e Adultos – Fundamental), serviço destinado para pessoas jovens, adultas e idosas que não puderam estudar/concluir os anos finais do Ensino Fundamental.
Foi a partir desse momento que ela conseguiu concluir o ensino médio, influenciada por dois professores com os quais mantém uma forte relação de amizade até hoje, Rômulo – professor de artes – e Edna – professora de português. Não restam dúvidas à Martinha que foi graças ao apoio e influência desses professores que ela tomou ainda mais gosto pelas artes e pelo prazer de educar.
A retomada da musicalidade
Desde que se instalou permanentemente no Paranoá, a pernambucana passou a frequentar bastante os coletivos da cidade, principalmente rodas de mulheres. Passou a frequentar também a Feira da Economia Solidária, que acontecia no Centro de Cultura e Desenvolvimento do Paranoá e Itapoã (CEDEP). E foi justamente em uma das visitas à feira que Martinha se deparou com uma apresentação de um grupo musical chamado Tambores do Paranoá.
“Eu olhei aquilo e pensei: Meu Deus, isso é maracatu! Isso aí é lá da minha cidade de Olinda, é um grupo de maracatu!” Martinha recorda da surpresa que teve ao ouvir aquele pessoal tocando, a primeira vez que vivenciou uma vertente da sua própria cultura pernambucana dentro do Planalto Central de uma forma tão marcante.
Um dos ritmos populares mais importantes do Nordeste inteiro, o maracatu é uma manifestação do folclore brasileiro que envolve dança e música acelerada com batuques distintos. Acontece que o grupo Tambores do Paranoá oferecia aulas de dança e musicalidade para crianças, com projetos para ampliar para o público adulto. Martinha se envolveu com aquele grupo de toda a forma que podia, levando a família e amigos para assistir a apresentações e, posteriormente, auxiliar nos bastidores.
Desde menina gostava de pular carnaval. A paixão pela música sempre esteve presente no coração de Martinha. Enquanto membro do Tambores do Paranoá, passou a escrever músicas como se fossem cartas: escrevia as letras, mostrava ao grupo e trabalhavam na harmonização.
Nessa fase da vida, Marta conheceu um musicista que percebeu o seu talento artístico e teve um importante papel na ascensão da música como prioridade na vida da pernambucana. Mas mesmo quando tinha outras prioridades, nunca havia deixado a música de lado.
Quando era gari, por exemplo, montou uma bandinha com os colegas tirando sons de materiais reciclados, como baldes e tampas de lixo. Em casa, praticava músicas de percussão com os filhos batucando no tanque de lavar roupa. Um dos filhos de Martinha jogava capoeira, então possuía um pandeiro que a mãe sempre o incentivava muito a praticar.
As contribuições da mestra
“Para mim, a vida é uma sequência de encontros. Você está destinado a encontrar com determinada pessoa, vê um pouco da sua história ali, e vai se conhecendo melhor”, acredita Martinha do Coco. E foi graças ao encontro predestinado com o grupo Tambores do Paranoá que a pernambucana foi desenvolvendo o dom de escrever músicas, até se aventurar no samba de coco, área musical que domina e pela qual é conhecida hoje em dia.
Samba de coco, maracatu, frevo, ciranda. A artista aposta na transição entre as mais diversas vertentes de sua cultura e se reinventa todos os dias na cidade candanga. A influência de Josefa Leonardo de Oliveira também contribuiu grandemente para o caminho trilhado pela filha na cultura popular.
Dona Zefa fazia festas juninas na própria casa para a comunidade, se vestia de baiana na escola de samba Capela Imperial em Brasília e até recebeu do Tambores do Paranoá o título de Rainha do Maracatu. Morreu em março de 2009, mas a valorização que dava para as raízes culturais é missão herdada pela filha, que dedica a carreira para manter viva a cultura pernambucana no distrito Federal.
Em 27 de abril de 2024, Martinha inaugurou a Casa de Cultura Martinha do Coco, espaço destinado para oficinas, eventos culturais e de incentivo à arte e educação. Para se ter uma ideia do repertório, a casa já foi palco de oficinas de composição musical, confecção de instrumentos, toques de maracatu, criação cênica e poéticas negras, dança e percussão afro, dança contemporânea afro-brasileira, escrita poética, artesanatos diversos e até grafite.
A Casa de Cultura conta com diversos professores, mas boa parte da organização e administração dos trabalhos ficam ao encargo da assessora de Martinha, Cleudes Pessoa. Moradora do Paranoá, Cleudes conheceu a mestra do coco por trabalhar no CEDEP. Desde então, trabalham em conjunto na tarefa de viabilizar a cultura nordestina e afro-brasileira por meio de projetos diversos, como as atividades na Casa de Cultura Martinha do Coco e a Mostra da Diversidade e Cultura Popular do Paranoá, celebração proveniente das festas juninas que Dona Zefa fazia em casa, que tomaram proporção tamanha que acabaram se expandindo para toda a comunidade no Paranoá.
Por: Giovanna dos Santos
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira