Saramago, 100 anos: “Ele nos instiga a tirar a venda que cobre os olhos”, diz pesquisadora

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Hoje (16), o escritor e jornalista José Saramago completaria 100 anos de vida. Mas o que o torna tão inesquecível e o faz ser lembrado, comemorado e estudado até hoje? Por qual motivo a morte, que, em teoria, é o esquecimento, não o fez ser esquecido, pelo contrário, o faz ser lembrado e comemorado? Ouvimos uma especialista e um admirador da obra do autor que salientam a atualidade e o legado desse português que trata de temas universais.

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Segundo a professora de literatura Vera Lopes, não devemos misturar biografia com obra, porque podemos encontrar um homem insignificante e até medíocre, mas esse mesmo homem pode ser um grande escritor. Em Saramago, ela afirma que não é possível não misturar essas duas coisas, pois, segundo Vera, José Saramago foi um grande homem e escritor. 


“Ele foi um homem ético. Isso é uma coisa impressionante nele, e tem uma obra ética. Mas a obra dele não é uma obra que não é estética, porque tem gente que faz uma obra de denúncia e acaba perdendo o lado estético, não há isso em Saramago. Ele é um autor estético, político, filosófico e um ser humano estético, político e filosófico”, afirma a professora.

A pesquisadora entende que o autor compreendia o papel que tinha na sociedade, que era um papel totalmente social e de denúncia. Vera Lopes defende que Saramago era uma pessoa que não se deixava levar pelo conformismo e, além de realizar uma mudança, fazia com que suas obras incentivassem as pessoas a terem  uma espécie de ânsia por fazer algo, quase que um chamado para ação. 

Com essa veia social muito forte dentro de si, especialistas recordam que a literatura de Saramago, por muito tempo, foi taxada como uma literatura de “panfletagem comunista”. Isso porque além de ser engajado com a causa, ele também era participante de fóruns sociais, e suas obras tinham como foco representar o homem comum e os seus dilemas.

Estudante de letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e bolsista do Centro de Estudos Portugueses, o paranaense Felipe Carvalho tem o autor como inspiração e foco de estudo. “Saramago está engajado demais em representar a gente, representar esses dilemas do indivíduo moderno, que, ao mesmo tempo que  são individuais e muito nossos, eles são extremamente gerais. Todos nós enfrentamos problemas que apenas mudam de rosto e de endereço, mas ainda continuam sendo os mesmos problemas.

Foto: José Saramago – Fundação José Saramago (Flickr)


A cegueira

Carvalho complementa que Saramago está sempre tentando imaginar futuros possíveis, mas colocando como o centro da questão problemas reais e gerando o incômodo da não resolução dessas questões. O admirador reforça que os leitores ficam incomodados diante de situações expostas nos livros. Entretanto, essas  questões abordadas podem ser facilmente associadas a acontecimentos do nosso cotidiano. “Isso nos instiga a parar de ser tão coniventes com elas e nos chama para tomar a iniciativa de resolvê-las, ou ao menos tentar. Essa seria a nossa cegueira branca, como foi relatado no livro “Ensaio sobre a cegueira”. 

Na obra, Saramago conta a história de um mal que vai atingindo pouco a pouco os moradores de uma cidade. Os habitantes ficam cegos sem nenhuma explicação ou algo que justificasse tal enfermidade. Contudo, o que chama a atenção é que diferente da cegueira normal, a narrada no livro é branca, como se o olho estivesse embaçado, impedindo a pessoa de enxergar. Para a professora Vera Lopes, podemos associar essa cegueira com todas as coisas que acontecem à nossa volta, mas escolhemos não ver por achar que não é um problema nosso. 

Para a pesquisadora, o livro fala muito mais do que apenas uma epidemia sem explicação. No olhar dela, a obra vai abordar o quanto somos pessoas vendadas. “Tudo o que acontece quando eles estão no manicômio também está no nosso cotidiano: estupros, competição, desrespeito humano, doença, abandono. Não tem nada que acontece em ensaio sobre a cegueira que não acontece no nosso dia a dia, independentemente de haver uma epidemia ou não”.

Em “Ensaio sobre a cegueira”, Saramago critica a sociedade que não consegue enxergar isso. “Você não vê que a pessoa que pede pra vigiar o seu carro está desempregada, as pessoas que batem na sua porta pedindo por comida não tem o que comer. Agora eu posso não enxergar e dizer que nada disso acontece, que não existe gente passando fome, que não existe estupro, que as pessoas não estão desempregadas. Isso acontece porque quando nós estamos no conforto não enxergamos mesmo as coisas, e, às vezes, até quem não está no conforto”, considera.

Já para Felipe Carvalho, o “Ensaio sobre a cegueira” também é sobre os futuros possíveis, sobre o que nós podemos fazer para garantir o bem comum. “Pensar no bem comum parece até uma coisa meio boba, meio hipócrita e até religiosa, mas do jeito que o Saramago traz pra gente, esse bem comum que não é altruístico de um jeito messiânico, mas sim de um jeito social. É uma narrativa densamente antropológica e essa é outra versão do Saramago que o faz ser atual, o quanto ele é antropológico, como ele consegue ir em mazelas sociais mesmo e no final das contas pedir para a gente pensar em todo mundo”, entende o estudante.

Por Gabriella Tomaz

Supervisão da reportagem: Luiz Claudio Ferreira

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